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Medicina Interna

versão impressa ISSN 0872-671X

Medicina Interna vol.24 no.4 Lisboa dez. 2017

https://doi.org/10.24950/rspmi/PPresidente/2017 

PÁGINA DO PRESIDENTE / PRESIDENT LETTER

Integração de Cuidados: A Reforma que Falta!

Care Integration: The Missing Reform!

Luís Campos

Presidente da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna

 

A integração de cuidados é um tema inscrito na agenda atual de muitos sistemas de saúde e a Organização Mundial de Saúde dedicou-lhe mesmo um relatório em 2015: Global Strategy on People Centred and Integrated Care Services.1 Este interesse deve-se ao crescimento de uma população cada vez mais numerosa, idosa, com multimorbilidades, complexa, com um amplo espectro de necessidades e que beneficia claramente desta integração. Como em algumas outras áreas em que Portugal foi pioneiro na década de 90, Portugal foi também pioneiro na tentativa de integrar diferentes cuidados de saúde, através da criação das Unidades Locais de Saúde (ULS), tendo a primeira sido criada em 1999. No entanto, algumas das inovações organizacionais introduzidas nessa década sucumbiram na transição dos ciclos políticos ou não foram devidamente avaliadas. A experiência das ULS expandiu-se, existindo atualmente oito, mas nunca foi avaliada com rigor e os estudos que têm sido feitos não demostram resultados positivos ao nível dos indicadores de continuidade de cuidados, o que nos permite concluir que não basta fundir hospitais e centros de saúde sob a mesma administração para garantir integração de cuidados.

Na realidade os cuidados que prestamos atualmente aos nossos doentes crónicos, e particularmente aos mais idosos e com multimorbilidades, continuam a ser fragmentados, episódicos, através das urgências, reativos e centrados na doença. Esta abordagem é uma das razões porque Portugal é o país onde sete em cada dez portugueses recorrem anualmente à urgência hospitalar,2 sendo este o valor mais elevado da Europa. Lamentavelmente estamos a falhar numa dimensão fundamental da qualidade, que é a continuidade de cuidados. Há que mudar este paradigma e proporcionar a estes doentes cuidados integrados, proactivos, contínuos e centrados no doente.

Creio que a integração de cuidados é a maior oportunidade de mudança que se apresenta ao nosso sistema de saúde no horizonte próximo e aquela que poderia ter mais impacto no centramento da organização nas necessidades e preferências dos doentes. O Ministério da Saúde lançou as chamadas “Reformas de Proximidade”, que incluem a gestão de percursos, a literacia e a integração de cuidados, liderada pelo Prof. Constantino Sakellarides, a cuja equipa tenho o prazer de pertencer, mas várias contingências têm feito com que esta reforma avance a um ritmo lento e com pouco estímulo financeiro, embora seja positiva a introdução, pela primeira vez em Portugal, na contratualização entre a ACSS e os hospitais, de incentivos a este tipo de programas.

Os grupos privados de saúde tiveram a intuição, de forma consciente ou não, de multiplicar unidades onde juntam cuidados primários e secundários, a quase totalidade dos exames complementares, muitas vezes um bloco cirúrgico, camas de internamento, com partilha do processo clínico, facilidade de comunicação, que são verdadeiros centros integrados de cuidados, modelo que vem ao encontro das preferências dos cidadãos doentes ou não doentes e que explica, em parte, o crescimento dos grupos privados de saúde em Portugal.

Nenhum sistema tem uma solução mágica para integração de cuidados mas desde a primeira proposta de um modelo de reposta global para os doentes crónicos: The Chronic Care Model, apresentada nos EUA por Thomas Bodenheimer, no fim dos 90, como uma solução multidimensional para um problema complexo, que algumas componentes deste modelo têm vindo a ser constantes nas várias soluções.3 Destes componentes destaco a necessidade de estratificar o risco dos doentes e identificar as suas necessidades, a coordenação de cuidados, o trabalho em equipas multidisciplinares, o apoio aos autocuidados, a diversificação dos contactos com os doentes, a necessidade de bons sistemas de informação e da monitorização dos resultados, para que todos os programas sejam avaliáveis. Em 2006 propus uma versão actualizada deste modelo e adaptada à realidade portuguesa.4

Alguns dos primeiros exemplos bem-sucedidos para melhorar a resposta aos doentes crónicos, resultaram de profundas reengenharias organizacionais e vieram de organizações americanas, que em termos de dimensão servem quase o mesmo número de doentes que a população portuguesa. Falamos da Veterans Affairs Health Care System (VAHCS) e da Kaiser Permanente (KP).

A VAHCS iniciou este processo em 1995, e as componentes principais da mudança assentaram num melhor uso de tecnologia de informação, na avaliação sistemática e feedback do desempenho, num sistema centrado nos cuidados primários e ambulatório, integração de serviços (163 hospitais e nursing homes em 22 redes de cuidados), realinhamento das políticas de pagamento, financiamento por capitação e descentralização da gestão.5

A Kaiser Permanente focou o seu processo de mudança, também, nas doenças crónicas, com integração de cuidados de acordo com estratificação do risco, numa gestão pró-activa dos doentes crónicos, centrada nos médicos de família e nos hospitalistas (um modelo próximo da Medicina Interna portuguesa), no apoio aos autocuidados e também numa aposta nas tecnologias de informação.6

A integração de cuidados, como disse, beneficia mais as populações no topo da pirâmide de risco da Kaizer Permanente, mas algumas das experiências de maior sucesso evoluíram de programas centrados numa doença ou num grupo alvo para programas de base populacional. Na Europa podemos citar o programa Barcelona-Esquerra, que envolve mais de meio milhão de habitantes desta cidade, o modelo Gesund Kinzigtal, na Alemanha, o programa Norrtaelje, na Suécia e o North West London Whole System Integrated Care, em Londres, entre outros.

Este caminho não é apenas recheado de sucessos, entre os casos de insucesso destaco uma iniciativa do NHS inglês, que implementou uma solução integrada de cuidados em nove trusts de cuidados primários, que intitulou Community Matron Policy, e que consistiu na selecção de um grupo alvo dos doentes com mais de 65 anos, que tinham recorrido à urgência duas ou mais vezes no último ano e que eram acompanhados no domicílio por enfermeiras diferenciadas (Community Matrons). Este programa, baseado no modelo Evercare, representou um enorme investimento mas não reduziu a mortalidade, nem o número de admissões na urgência nem o número de dias de internamento. A explicação do insucesso poderá ser por se ter focado especialmente nos aspectos sociais e menos nos cuidados de saúde e por ter subvalorizado a importância do médico no acompanhamento destes doentes que são complexos e têm equilíbrios instáveis difíceis de gerir medicamente.7

A multidisciplinaridade é uma das características das equipas envolvidas nestes programas e, apesar de todas as dificuldades sentidas no Serviço Nacional de Saúde (SNS), quando as mudanças beneficiam claramente os doentes, o que eu vejo é que os profissionais de saúde continuam a envolver-se de forma comprometida em programas inovadores que façam a diferença na melhoria dos cuidados aos nossos doentes.

Pelo lado dos internistas posso assegurar que estamos completamente disponíveis e empenhados na criação destes programas, assumindo um papel de liderança e coordenação dentro do hospital, fazendo a ponte com os cuidados primários, cuidados continuados, cuidados paliativos e segurança social. A Medicina Interna portuguesa está alinhada com os médicos de família, através da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna e da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar, num espírito de parceria, para alavancar esta importante reforma.

A integração de cuidados não se cinge à articulação com os cuidados primários mas estende-se também aos outros níveis de cuidados, sendo fundamental, no contexto atual, a ligação à assistência social porque os serviços de Medicina Interna estão transformados em centros de resolução dos problemas sociais dos nossos doentes. A Escócia tem sido exemplar na resposta a este problema, tendo promovido uma integração completa, a nível nacional, entre a saúde e assistência social.

No Hospital São Francisco Xavier/CHLO iniciamos um programa de gestão integrada de cuidados com o ACEs de Lisboa Ocidental e Oeiras e a Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados, dirigido aos doentes idosos com multimorbilidades, grandes utilizadores do serviço de urgência. Este programa tem por objetivo melhorar a comunicação e a articulação entre estes níveis de cuidados, garantindo a continuidade dos mesmos a este grupo de doentes, de forma a evitar internamentos inapropriados e diminuir o recurso sistemático às urgências.

Este programa está a ser operacionalizado por uma equipa que integra internistas e médicos de medicina geral e familiar assim como outros profissionais como sejam, enfermeiros, farmacêuticos, assistentes sociais, fisioterapeutas, dietistas e psicólogos. A decisão dos cuidados mais adequados para cada doente é decidida em equipa, de acordo com as necessidades e a complexidade de cada caso, cabendo aos internistas o papel de garantir a continuidade de cuidados dentro do hospital, entre episódios, e de consensualizar com os médicos de família o plano de cuidados médicos. Desta forma pretende-se incrementar o acompanhamento destes doentes pelos cuidados primários, na medida em que estes doentes, pela sua complexidade, ficam demasiado dependentes do hospital.

Este não é um caminho fácil, temos que vencer barreiras e desconfianças. Existem barreiras estruturais como sejam a ausência de órgãos de coordenação conjuntos entre hospitais e centros de saúde fora das Unidades Locais de Saúde, o modelo de financiamento que não tem estimulado estes programas, os modelos organizativos das USF que fecharam demasiado estas organizações a objectivos de impacte transversal, a falta de médicos de família em algumas regiões, a insuficiência de internistas e a carga assistencial a que estão sujeitos, a dificuldade de contratação que existe atualmente no SNS, a pouca capacidade do equipamento informático, as dificuldades na comunicação e partilha de informação. Alguns destes aspectos estão a ser corrigidos. No entanto, desde que seja garantido o apoio ativo das administrações, que é fundamental, é possível vencer barreiras de desconfiança, tendo o cuidado de escolher bem as lideranças, garantir o envolvimento das múltiplas profissões, garantir espaços, orçamentos e profissionais dedicados a estes projetos, explicar bem os objectivos aos profissionais envolvidos e aos doentes, partilhar os problemas e as soluções e demonstrar os benefícios alcançados.

Creio que a integração de cuidados é uma oportunidade fantástica para o Serviço Nacional de de Saúde, para a Medicina Interna e para os doentes. Em Portugal temos muito boas condições para o seu sucesso porque temos cuidados primários fortes e uma Medicina Interna bem implantada, mais do que em qualquer outro país europeu. Pode ser um longo caminho, mas não há outro.

 

Referências

1. World Health Organization. Global Strategy on people centred and integrated care services. Copenhagen: WHO Regional Office for Europe; 2015.         [ Links ]

2. Berchet C. Emergency Care Services: Trends, Drivers and Interventions to Manage the Demand, OECDHealth Working Papers, No. 83. Paris: OECD Publishing; 2015.         [ Links ]

3. Bodenheimer T, Wagner EH, Grumbach K. Improving primary care for patients with chronic illness: the chronic care model. JAMA. 2002; 288:1775-9.         [ Links ]

4. Campos L. Porquê o I Forum Nacional sobre o doente crónico? Gestão Hosp. 2006: 28-33         [ Links ]

5. Oliver A. The veterans health administration: an american success story? Milbank Q. 2007;85:5-35.         [ Links ]

6. Feachem RGA, Sekhri NK, White KL. Getting more for their dollar: a comparison of the NHS with California’s Kaiser Permanente. BMJ. 2002; 324:135-43.         [ Links ]

7. Gravelle H, Duscheiko M, Sheaff R, Sargent P, Boaden R, Pickard S, et al. Impact of case management (Evercare) on frail elderly patients: controlled before and after analysis of quantitative outcome data. BMJ. 2007; 334:31.         [ Links ]

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