SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.24 número4Intervilite Crónica com Predomínio de Histiócitos: Uma Causa Rara de Eventos Obstétricos Placentários Associado a Elevação Isolada de Fosfatase Alcalina?Síndrome Melkersson Rosenthal índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Medicina Interna

versão impressa ISSN 0872-671X

Medicina Interna vol.24 no.4 Lisboa dez. 2017

https://doi.org/10.24950/rspmi/CC211/16/2017 

CASOS CLÍNICOS / CASE REPORTS

Intoxicação Aguda por Ferro: Uma Entidade Frequentemente

Acute Iron Poisoning: A Frequently Underrated Event

Raquel Moreira da Cruz, Margarida Cruz, Filipa Sousa, Fani Ribeiro, Inês Zão, Gorete Jesus

Serviço de Medicina Interna - Centro Hospitalar do Baixo Vouga, Aveiro, Portugal

Correspondência

 

RESUMO

A intoxicação aguda por ferro é comum e constitui um problema potencialmente grave. O seu reconhecimento precoce é crucial para um melhor prognóstico. É classificada como leve, moderada e grave, consoante a clínica e doseamento de ferro sérico. Relata-se o caso de uma jovem de 18 anos, com intoxicação voluntária de 25 comprimidos de sulfato ferroso 329,7 mg. Apresentou-se com náuseas, vómito com inúmeros comprimidos e dor abdominal difusa. Sem alterações ao exame objetivo. Foi monitorizada, iniciou fluidoterapia, não tendo realizado lavagem gástrica. Analiticamente com ferro sérico 537 ug/dL, saturação transferrina 131,3% e radiografia abdominal com presença de comprimidos radiopacos na câmara gástrica. Por apresentar intoxicação grave por ferro iniciou Desferroxamina, com normalização dos valores de ferro sérico. Teve alta após avaliação por Psiquiatria. Os autores trazem a discussão deste caso clínico por se tratar de uma intoxicação frequentemente desvalorizada, cujas complicações são muitas vezes desconhecidas.

Palavras-chave: Compostos Ferrosos/intoxicação; Desferroxamina/uso terapêutico; Ferro/intoxicação; Intoxicação medicamentosa voluntária

 


ABSTRACT

Acute iron poisoning is common and can be potentially severe. Early recognition is the key to a good prognosis. It can be classified into mild, moderate or severe, according to clinical manifestations and serum iron levels. We report a case of an 18-year-old female patient admitted with voluntary poisoning of 25 pills of ferrous sulphate. She manifested with nausea, vomit and diffuse abdominal pain, with normal physical examination. She was monitored and started endovenous fluids, but gastric lavage was not performed. Her serum iron level was 537 ug/dL and transferrin saturation level was 131.3%. The abdominal radiograph showed a small amount of pills on the stomach. Beholding severe iron poisoning desferroxamine was initiated. Serum iron dropped to normal levels and the patient maintained hemodynamic stability. She was discharged after Psychiatric evaluation. We present this case, because it reports a frequently underrated intoxication and alerts to its often unknown serious complications.

Keywords: Deferoxamine/therapeutic use;/poisoning; Iron/poisoning; Iron Overload.

 


 

Introdução

A intoxicação medicamentosa voluntária é um motivo frequente de recorrência aos cuidados de saúde.1

O reconhecimento precoce da intoxicação por ferro é crucial para um melhor prognóstico e para prevenir a morbi-mortalidade associada.2,3 Pode ser classificada como leve (ferro sérico < 300 ug/dL); moderada (300 ug/dL - 500 u/dL) e grave (> 500 ug/dL).2

Quando identificada e tratada atempadamente tem excelente prognóstico.4

Caso Clínico

Apresenta-se o caso de uma jovem de 18 anos, caucasiana, com anemia ferropénica, suplementada com sulfato ferroso. Foi admitida no Serviço de Urgência 5 horas após intoxicação voluntária com 13 comprimidos de desogestrel + etinilestradiol 150 + 20 mcg e 25 de sulfato ferroso 329,7 mg de libertação prolongada (doseamento ferro elementar: 37,5 mg/kg). Após a ingestão iniciou cefaleias, dor abdominal difusa, náuseas e teve vómito com saída de inúmeros comprimidos. Encontrava-se apirética, com tensão arterial de 120/79 mmHg, frequência cardíaca 112 batimentos/minuto, saturação de oxigénio em ar ambiente de 99%, glicemia capilar 125 mg/dL, corada e hidratada, auscultação cardiopulmonar sem alterações, abdómen indolor e sem rash cutâneo. Foi monitorizada, iniciou analgesia e fluidoterapia. O estudo analítico realizado às 8 horas após a ingestão revelou: hemoglobina 12,8 g/dL, VGM 90,0fL, HGM 29,4 pg, sem leucocitose ou neutrofilia e plaquetas 177 x 109/L, estudo de coagulação, função renal e provas hepáticas sem alterações. Ferro sérico 537 ug/dL, transferrina 409 mg/dL, saturação transferrina 131,3%, ferritina 13 ng/mL. Exame sumário e pesquisa de drogas de abuso na urina sem alterações. Gasimetricamente: pH 7,414, pO2 101,8 mmHg, pCO2 35,2 mmHg, HCO3- 22 mmol/L, lactatos 0,3 mmol/L, anion gap 7,60 mmol/L. Na radiografia abdominal verificava-se presença de pequena quantidade de comprimidos radiopacos na câmara gástrica (Fig 1). Foi contactado o Centro de Intoxicações e, após conhecimento e discussão conjunta do caso, não realizou lavagem gástrica e iniciou terapêutica quelante de ferro com desferroxamina 15 mg/kg/h (12 horas após ingestão), mantendo monitorização. Objetivou-se diminuição gradual dos valores de ferro sérico, sendo suspensa a perfusão 26 horas após a ingestão. Manteve vigilância até às 40 horas, encontrando-se assintomática, com o valor de ferro sérico normal (Tabela 1). Foi avaliada por Psiquiatria, tendo alta.

 

 

Discussão

A doente apresentou intoxicação grave por ferro (537 ug/dL), apesar de sintomatologia ligeira. Esta discrepância pode dever-se a vários fatores: vómito com saída de inúmeros comprimidos, evitando que grande quantidade de ferro fosse absorvido; comprimidos de libertação prolongada, não sendo a absorção imediata; terapêutica de suporte adequada; identificação precoce de valores séricos elevados, previamente ao transporte para os tecidos e início de toxicidade sistémica; abordagem precoce com desferroxamina quelando o ferro livre circulante.

Verificou-se elevação da saturação de transferrina superior a 100% (131,3%). Sendo a saturação da transferrina um valor calculado (ferro sérico/capacidade total de ligação do ferro x 100), relacionamos este aumento com a ingestão aguda de uma quantidade elevada de ferro, ficando uma porção livre no plasma ou ligado de forma não específica a outras proteínas plasmáticas com saturação completa da transferrina plasmática.5

Discute-se ainda, se o facto de a doente estar cronicamente medicada com ferro estaria relacionado com os valores elevados. Madiwale T6 analisou intoxicações agudas em grávidas que faziam suplementação de ferro diariamente. Verificou que nem todas tiveram níveis de toxicidade nem clínica grave, não sendo possível corroborar a teoria de que a suplementação crónica contribuiu para a intoxicação.6 Na doente apresentada apesar do ferro sérico e saturação de transferrina estarem elevados, a ferritina permanecia baixa, indicando défice de ferro, pelo que interpretamos estes resultados no contexto da intoxicação aguda e sem relação com na suplementação crónica.

Na admissão não foi realizada lavagem gástrica. Não está recomendada por rotina, sendo muitas vezes ineficaz a remover os comprimidos de ferro do estômago.7 Deve ser ponderada quando a radiografia abdominal mostra elevado número de comprimidos a nível gástrico, devendo ser repetida a radiografia após o procedimento para avaliar a sua eficácia.4,6 Neste caso, considerou-se sem benefício pela estabilidade clínica, pelo episódio de vómito e por apresentar pequena quantidade de comprimidos a nível gástrico, ponderando os possíveis riscos (progressão distal dos comprimidos, perfuração de víscera ou aspiração de vómito).7

Apesar do risco de hipotensão associado à administração endovenosa de desferroxamina, a doente apresentou perfil tensional adequado, com boa resposta à perfusão do fármaco.

Na revisão da literatura verificou-se que a incidência da intoxicação aguda por ferro tem aumentado, relacionando-se com a disponibilidade e acesso aos suplementos de ferro usados na pratica clínica.1,6,7

Segundo o relatório anual da Associação Americana dos Centros de Controlo de Venenos de 2014,8 existiram 5455 casos de intoxicações por ferro (excluindo multivitamínicos contendo ferro), correspondendo a uma prevalência de 0,36% num total de 1 451 094 intoxicações medicamentosas. Ocorreram mais relatos em crianças com idade igual ou inferior a 5 anos, e adultos acima dos 20 anos. A principal causa de intoxicação foi acidental, mas em 547 casos foi voluntária. Tiveram necessidade de cuidados hospitalares 1152 doentes. De todos estes episódios, apenas está descrito um com desfecho fatal e um com evolução grave.8

A principal causa de intoxicação aguda nos adultos é a intoxicação voluntária ou sobredosagem acidental durante a gravidez.2,7

A avaliação na intoxicação aguda deve incluir história clínica com quantificação da quantidade de ferro elementar ingerida (mg/kg), tempo decorrido desde a ingestão e formulação de ferro.3,4 Uma ingestão superior a 20 mg/kg pode provocar efeitos tóxicos e superior a 180 mg/kg geralmente é letal.1

Deve ser avaliada e mantida via aérea permeável, garantindo boa oxigenação e circulação, se necessário com fluidoterapia intensiva (solução isotónica).3 Deve ser realizada gasimetria arterial para avaliação de pH; hemograma, função renal e provas hepáticas com estudo de coagulação, para excluir disfunção de órgãos; radiografia abdominal simples para pesquisa de comprimidos radiopacos; valores séricos de ferro, saturação de transferrina e ferritina, para quantificar o grau de toxicidade, caso a amostra seja colhida de forma apropriada (4-6 horas após ingestão).1,3,6,7 Este doseamento pode ser subvalorizado se se tratar de composto férrico de libertação lenta (devendo ser doseado 8 horas após a ingestão).3,4,9 Ocasionalmente a severidade dos sintomas não se relaciona com os valores séricos de ferro.9

O mecanismo protetor da transferrina é rapidamente extinto na intoxicação aguda e o ferro absorvido é retirado da circulação e captado pelos tecidos, onde altas concentrações levam a disfunção mitocondrial.3,6,7,10

A toxicidade relaciona-se com a produção de radicais livres e peroxidação lipídica.1,2-4,6 São vários os efeitos tóxicos a nível celular: vasodilatação direta, inibição de proteases séricas, necrose de mucosas, alteração da permeabilidade capilar e da membrana lipídica mitocondrial, inibição de enzimas no ciclo de Krebs e rotura de ligações de fosforilação oxidativa.1,3,4,6,11 Não existe nenhum mecanismo fisiológico para eliminar o excesso de ferro do organismo.9,12

Valores de ferro sérico superiores a 500 ug/dL, acidose metabólica com anion gap elevado, alteração do estado de consciência, vómitos persistentes, instabilidade hemodinâmica, diarreia, hemorragia digestiva e radiografia abdominal com elevado número de comprimidos visíveis indicam toxicidade grave.1,2-4 Geralmente ocorrem hiperglicemia e leucocitose quando superior a 300 ug/dL.3,4,7

Existem cinco fases clínicas progressivas na intoxicação por ferro, cujas manifestações variam consoante o tempo decorrido da ingestão e traduzem a absorção e toxicidade do ferro nos tecidos (Tabela 2).

O carvão ativado não tem indicação na intoxicação por ferro visto que não absorve os iões metálicos.1,2,4,11

Deve iniciar-se irrigação total do cólon quando existe número significativo de comprimidos a nível gástrico ou duodenal, aumentando a motilidade gastrointestinal e diminuindo o tempo de absorção dos comprimidos pela mucosa.7 Consiste na administração entérica de grandes volumes de soluções osmoticamente balanceadas (ritmo de 1,5-2 L/hora nos adultos), até ser obtido um efluente limpido.4,7 Está contraindicada nos doentes com obstrução intestinal, perfuração visceral, insuficiência renal crónica, insuficiência hepática e instabilidade hemodinâmica.1 As principais complicações são náuseas, vómitos, enfartamento, cólicas, angioedema e reações anafiláticas, perfuração esofágica e aspiração de vómito.13 As sondas utilizadas devem ser de grande calibre, visto que os comprimidos de ferro tendem a formar conglomerados pegajosos, podendo obstruir as sondas.1,4

A terapêutica com desferroxamina (quelante do ferro) está indicada nos casos de intoxicação grave.1,3,6 A dose de perfusão é 15 mg/kg/h, podendo ser aumentada (máximo de 35 mg/kg/h).1,3 Não deve ser mantida mais do que 24-48 horas pelo risco de toxicidade pulmonar.6 A sua administração deve ser precoce, pois o ferro é rapidamente transportado e incorporado a nível intracelular, onde o efeito quelante não é possível. É excretada por via renal, podendo dar uma coloração rosada à urina.6,11,14 A principal complicação da sua administração é a hipotensão, devendo o doente estar monitorizado durante o tratamento.1,4,15 Estão descritas outras complicações como síndrome de dificuldade respiratória aguda, ototoxicidade, toxicidade ocular e infeção por Yersinia enterocolitica.15

A hemodiálise apenas remove o ferro livre circulante, antes do transporte intracelular. É útil quando persiste deterioração clínica e o valor de ferro sérico permanece elevado, apesar da administração de desferroxamina.3

Conclusão

Conclusão Apresentamos um caso de uma jovem de 18 anos, com intoxicação aguda por ferro no contexto de intoxicação voluntária. Consideramos o caso pertinente por se tratar de uma intoxicação frequentemente desvalorizada e cujas sérias complicações são muitas vezes desconhecidas. Apesar de apresentar clínica ligeira, os resultados analíticos mostraram sobrecarga grave por ferro, com necessidade de terapêutica com desferroxamina. A doente apresentou uma ótima evolução clínica e analítica, tendo alta após normalização dos valores de ferro e avaliação psiquiátrica.

 

Referências

1. Sipahi T, Karakurt C, Bakirtas A, Tavil B. Acute iron ingestion. Indian J Pediatr. 2002; 69:947-9.         [ Links ]

2. Menéndez JM, Abramson L, Vera RA, Duza GE, Palermo M. Total gastrectomy due to ferric chloride intoxication. Acta Gastroenterol Latinoam. 2015; 45:129-32.         [ Links ]

3. Gumber MR et al. Successful treatment of severe iron intoxication with gastrointestinal decontamination, deferoxamine, and hemodialysis. Ren Fail.2013; 35:729-31.         [ Links ]

4. Baranwal AK, Singhi AC. Acute iron poisoning: management guidelines. Indian Pediatr.2003; 40:534-40.         [ Links ]

5. Zanen AL, Adriaansen HJ, van Bommel EF, PosthumaR, Th de Jong GM. ‘Oversaturation’ of transferrin after intravenous ferric gluconate (Ferrlecit(R)) in haemodialysis patients. Nephrol Dial Transplant.1996; 11:820-4.

6. Madiwale T, Liebelt E. Iron: not a benign therapeutic drug. Curr Opin Pediatr.2006;18:174-9.         [ Links ]

7. Chang TP, Rangan C. Iron poisoning: a literature-based review of epidemiology, diagnosis, and management. Pediatr Emerg Care.2011; 27:978-85.         [ Links ]

8. Mowry JB, Spyker DA, Brooks DE, McMillan N, Schauben JL. 2014 Annual Report of the American Association of Poison Control Centers’ National Poison Data System (NPDS): 32nd Annual Report. Clin Toxicol.2015; 53:9621147.

9. Skoczynska A, Kwiecinska D, Kielbinski M, Lukaszewski M. Acute iron poisoning in adult female. Hum Exp Toxicol. 2007; 26:663-6.         [ Links ]

10. Tenenbein M. Toxicokinetics and toxicodynamics of iron poisoning. Toxicol Lett.1998;102-103:653-6.         [ Links ]

11. Mariano D,Cabrerizo S,Docampo PC. Sulfato ferroso: intoxicación grave con un medicamento de empleo frequente. Arch Argent Pediatr.2011; 109:1-3.         [ Links ]

12. Mahoney JR, Hallaway PE, Hedlund BE, Eaton JW. Acute iron poisoning. Rescue with macromolecular chelators. J Clin Invest.1989; 84:1362-6.         [ Links ]

13. Thanacoody R, Caravati EM, Troutman B, Höjer J, Benson B, Hoppu K et al. Position paper update: whole bowel irrigation for gastrointestinal decontamination of overdose patients. Clin Toxicol.2015; 53:5-12.         [ Links ]

14. Cheney K, Gumbiner C, Benson B,T enenbein M. Survival after a severe iron poisoning treated with intermittent infusions of deferoxamine. J Toxicol Clin Toxicol.1995; 33:61-6.         [ Links ]

15. Tenenbein M. Benefits of parenteral deferoxamine for acute iron poisoning. J Toxicol Clin Toxicol.1996; 34:485-9.         [ Links ]

 

 

Correspondência: Raquel Moreira Cruz mrmrmc@hotmail.com
Serviço de Medicina Interna - Centro Hospitalar do Baixo Vouga, Aveiro, Portugal
Av. Artur Ravara - 3810-501 Aveiro

 

Protecção de Seres Humanos e Animais: Os autores declaram que não foram realizadas experiências em seres humanos ou animais

Direito à Privacidade e Consentimento Informado: Os autores declaram que nenhum dado que permita a identificação do doente aparece neste artigo.

Conflitos de Interesse: Os autores declaram a inexistência de conflitos de interesse na realização do presente trabalho

Fontes de Financiamento: Não existiram fontes externas de financiamento para a realização deste artigo

 

Recebido: 10/11/2016

Aceite: 14/03/2017

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons