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Medicina Interna

versão impressa ISSN 0872-671X

Medicina Interna vol.25 no.2 Lisboa jun. 2018

https://doi.org/10.24950/rspmi/Op/2/2018 

ARTIGO DE OPINIÃO / OPINION ARTICLE

Valorizar a Medicina Interna

Valuing Internal Medicine

Miguel Guimarães

Bastonário da Ordem dos Médicos

Correspondência

 

Tal como todos os médicos da minha geração habituei-me a ver na Medicina Interna (MI) a essência da medicina. Após a conclusão do curso de medicina iniciei o internato geral (atual ano comum) centrando a minha formação na MI e na Cirurgia Geral (CG) durante quase dois anos. E foi nestas duas “escolas” que aprendi a ser médico, onde o grau de exigência, de respeito e de humanização condicionou a minha atitude e capacidade de decisão como médico e como ser humano. Nunca mais esqueci o serviço de MI que contribuiu decisivamente para a base da minha formação. Liderado pelo Prof. Doutor Falcão de Freitas, o serviço era constituído por uma equipa de excelentes especialistas que orientavam a formação de um conjunto de internos de elevado nível. O objetivo principal centrava-se sempre no diagnóstico e tratamento dos doentes e na partilha do conhecimento. E por isso o nível de exigência era máximo. Calhou-me acompanhar mais de perto dois dos internos. O Dr. Jorge Cotter e o Dr. Alfredo Pinto. E com todos eles aprendi a importância de valorizar o conhecimento, a educação, o humanismo, a comunicação, a responsabilidade, a capacidade de decisão, a atitude perante a adversidade, e, sobretudo, o valor de aprender e saber pensar. Poderia recordar muitos episódios que nunca mais esqueci. Mas, não posso deixar de partilhar um daqueles que me tem acompanhado ao longo da vida. Um dia, no serviço de urgência, estando eu a fazer triagem alocado à Medicina Interna, observei um doente que tinha um quadro clínico compatível com apendicite aguda. A história clínica e o exame físico não me deixaram margem para dúvidas. Pedi um hemograma que confirmou a existência de uma leucocitose significativa. Todo contente fui ter com o meu orientador e disse-lhe que tinha um doente com uma apendicite aguda, descrevendo todos os pormenores. Iria então entrega-lo aos cuidados da CG. O meu orientador perguntou-me: Está preparado para ser operado? Tem os exames necessários? Está em jejum à tempo suficiente? Explicaste a situação clínica ao doente e as possibilidades terapêuticas? O doente aceita a operação, caso a CG entenda ser essa a opção terapêutica? Miguel, não entregamos um doente à CG sem estar tudo preparado e devidamente confirmado! Aprendi que os doentes devem ser integralmente avaliados e preparados.

A MI é a “rainha” das especialidades médicas. É a especialidade médica hospitalar com uma visão holística da medicina. Aquela que melhor nos ensina a orientar os problemas médicos dos doentes como um todo. Um especialista em MI presta cuidados a doentes com um largo espectro de patologias, não se centrando necessariamente apenas num órgão ou sistema. O facto de avaliar, orientar ou tratar o doente como um todo e não apenas uma determinada patologia, constitui uma mais-valia. E sempre que necessário recorre a uma especialidade específica, médica ou cirúrgica.

Por isso tem sido defendido o papel do médico de MI como o “gestor” do percurso do doente nos hospitais. E a sua ligação preferencial aos especialistas em Medicina Geral e Familiar (MGF), os “gestores” do percurso do doente no sistema de saúde. O Serviço Nacional de Saúde (SNS) necessita com urgência de integrar de forma mais adequada a relação entre os cuidados de saúde primários e os cuidados hospitalares. E qualquer reforma do SNS que não considere o papel nuclear dos médicos de família e dos médicos de MI, estará naturalmente condenada ao insucesso. Muito se tem falado da reforma hospitalar, mas pouco tem sido feito para a concretizar. Num momento em que todos já entendemos a necessidade imperiosa de implementar um novo modelo que englobe os hospitais e serviços de urgência, os cuidados de saúde primários, os cuidados continuados, os cuidados paliativos, a Saúde Pública e os cuidados domiciliários, não consigo entender a apatia do Ministério da Saúde em menosprezar a evidência da importância de centrar no doente os cuidados de saúde. É que não chega apenas falar é preciso atuar.

Num trabalho de equipa com as restantes especialidades hospitalares, e numa integração desejável com a MGF, a MI assume (ou deveria assumir) muitas vezes o papel de gestor (case manager) do doente internado, especialmente quando apresenta um quadro clínico complexo.

Complementarmente, e quase sempre sem retorno financeiro ou os devidos apoios, os especialistas em MI têm um papel essencial na investigação clínica e formação dos jovens médicos, fundamental para contribuir para garantir a qualidade e a economia da medicina que se irá praticar nos nossos hospitais nos próximos anos.

Estamos numa época em que a medicina evolui de forma rápida, em que a inovação tecnológica e terapêutica atinge patamares inesperados, em que a inteligência artificial ocupa um espaço cada vez maior na nova medicina, em que os sistemas e aplicações informáticos renovam a cada momento as grandes plataformas de bases de dados, em que os super-especialistas emergem com frequência, em que a investigação se aproxima da perfeição, em que a “imortalidade” está cada vez mais na mira de mentes brilhantes e irreverentes, em que a própria medicina pode atingir um novo paradigma. Neste contexto global, em que ainda não sabemos o que pode ser o médico do amanhã, enfrentamos grandes desafíos que não podemos ignorar: a humanização da relação médico-doente, a integração da nova tecnología sem “ofender” as características éticas e deontológicas da nossa profissão, a capacidade de acompanhar a inovação (na qual os jovens médicos têm um papel determinante) e a visão holística do doente e da medicina. Neste caminho, é fundamental não perder a essência do “ser médico”, não permitir que as máquinas dominem o Homem. E nesta matéria a MI pode e deve ter um papel determinante: preservar o código genético da medicina e da relação médico-doente, integrando o desenvolvimento científico e tecnológico.

 

 

Correspondência:omcne@omcne.pt

 

Conflitos de Interesse: Os autores declaram a inexistência de conflitos de interesse na realização do presente trabalho.

Fontes de Financiamento: Não existiram fontes externas de financiamento para a realização deste artigo.

Conflicts of interest: The authors have no conflicts of interest to declare.

Financing Support: This work has not received any contribution, grant or scholarship.

 

Recebido: 16/04/2018

Aceite: 31/04/2018

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