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Medicina Interna

versão impressa ISSN 0872-671X

Medicina Interna vol.25 no.3 Lisboa set. 2018

https://doi.org/10.24950/rspmi/Editorial/3/2018 

EDITORIAL / EDITORIAL

Decisão (Médica) Partilhada

Shared Decision Making

João Sá

Editor-Chefe

Hospital da Luz, Lisboa, Portugal

 

Em todas as áreas a disseminação e a partilha do conhecimento, associadas aos efeitos do aumento da escolaridade, têm possibilitado a aquisição de fundamentações com profundidade e qualidade diversas, incentivadoras da discussão privada ou pública de qualquer tema. E assim um leigo em matérias de economia e finanças pode discorrer sobre assuntos tão imponderáveis e complexos como os figurinos da actividade produtiva, ou das trocas comerciais e da criação de riqueza pelas comunidades e nações. Sobre as questões do Direito e da Justiça, e a reboque de “julgamentos públicos” associados ao carácter espectacular e pretensamente moralista do jornalismo actual, todos opinam, acusam, defendem e sentenciam na ignorância dos factos, das leis e da vasta (e desigual) jurisprudência. E não há quem não tenha uma palavra a dizer sobre o renascimento da agricultura, o impacto ecológico da pesca intensiva, a tipologia de florestas e sua relação com fogos, dos benefícios da rede viária nacional tão generosa, ou da crise crónica e histórica dos caminhos de ferro. E sobre o desporto-rei o discurso é de cátedra e torrencial.

É certo que existe maior acessibilidade a fontes de conhecimento, mas a consciência do seu rigor, do esteio científico, da sua adequação prática às questões do quotidiano ainda escapam à maioria dos cidadãos.

A Medicina não é excepção (de médicos e de loucos...) e o interesse pelas doenças, diagnósticos, curas e reabilitações tem produzido uma evolução rápida e intensa no estilo e na qualidade da relação médico-doente. O contacto facilitado com a matéria clínica e a consciência dos direitos de ser informado, mudaram o estatuto do doente enquanto destinatário final de intervenções diagnósticas e terapêuticas (patient empowerment). No “encontro clínico” o doente conquistou legitimidade a uma parceria activa que lhe permite inquirir, aceitar ou contestar as soluções que lhe são propostas. E nesta circunstância o médico vê-se obrigado a um diálogo correcto na sua forma e objectivo no seu propósito, por muitos considerado trabalhoso, mas arrastando consigo um incremento na qualidade da relação e do efeito clínico. Ao prestador crescem as responsabilidades e a sua acção será cada vez mais alvo de escrutínios formais ou informais, que avaliam estilos, processos e resultados. Há que reconhecer que a actividade médica, em todas as áreas, é hoje intensamente vigiada. Os tempos da autoridade clínica inquestionável (o “imperialismo médico”) pertencem ao passado.

Uma interacção em Clínica Médica envolve pelo menos dois intervenientes: o doente e o médico. Mas o espectro pode ser mais alargado: a participação de uma equipa médica mono ou pluridisciplinar (a antiga conferência médica), de uma equipa de enfermagem ou de terapeutas, e a presença de familiares ou amigos dos pacientes.

As duas partes dispõem de informação. Os médicos utilizam um acervo considerável de ferramentas teóricas e do senso que a experiência lhes proporciona. Os doentes empregam (por vezes incorrectamente) as conclusões de textos muito desiguais a que acedem com facilidade (artigos originais, normativos de abordagem clínica, imagens e opinião estão disponíveis a todos online).

Nenhuma decisão médica é, por isso, passível de ser tomada sem uma partilha com o doente. E as decisões mais complexas, por envolverem riscos funcionais ou vitais, ou por ser necessária uma escolha entre várias possibilidades (no diagnóstico e no tratamento) obrigam à intervenção das duas partes. O conceito e a prática da decisão partilhada é isto mesmo: troca de informações que permita fundamentar solidamente uma decisão difícil. Este é o momento em que ao médico é permitida a avaliação de uma situação na óptica do doente, o que nem sempre sucede na prática clínica actual. E ao doente poderá ser revelada a dificuldade decorrente de “encruzilhadas clínicas” na melhor selecção dos caminhos para o alívio e para a cura. Os exemplos abundam e alguns ficam citados: melhor método de rastreio da neoplasia da próstata? Escolhas terapêuticas para as neoplasias da próstata e da mama em estadio inicial? Vigilância de micro nódulos pulmonares e rastreio de neoplasia bronco-pulmonar? Hipolipemiantes na prevenção primária da cardiopatia isquémica? Modalidades de rastreio do cancro colo-rectal? Implantação de prótese do joelho? Intervenção (stenting) na doença coronária estável? Ventilação não-invasiva em pulmão terminal? Depuração extra renal iterativa em idade avançada?

Em Dezembro de 2010, num encontro conhecido como Salzburg Global Seminar,1 participaram 58 individualidades de 18 países na discussão sobre o papel do doente na decisão em cuidados de saúde. Ficaram elaborados um conjunto de princípios sublinhando-se a importância dos seguintes:
• Os médicos têm um imperativo ético de partilhar as decisões importantes com os doentes (seja qual for o seu grau de literacia),
• Os doentes devem ser encorajados a formular questões, expor as circunstâncias de vida, e expressar valores,
• Deve ser fornecida informação de qualidade e clareza elevadas acerca de riscos e benefícios de qualquer intervenção.

A prática da decisão partilhada ainda não foi avaliada na sua forma e efeitos, mas algumas publicações recentes identificaram dificuldades. A título de exemplo cita-se um estudo sobre a aplicação do modelo num cenário de rastreio de neoplasia bronco-pulmonar empregando a tomografia axial computorizada de dose baixa.2 A aplicação de uma grelha de variáveis, ainda que sobre um número escasso de observações, permitiu concluir que a qualidade da decisão partilhada foi globalmente pobre, que os riscos do método de rastreio não foram explicados e que o tempo de consulta foi insuficiente.

Este figurino de relação assistencial carece de critérios de aplicação mais correctos e de uma avaliação mais extensa e sistemática. Mas relembre-se, a terminar, que o facto de haver uma “coprodução” em decisão não iliba o médico dos efeitos decorrentes da violação dos princípios e da prática clínica de boa qualidade, e do respeito pelas normas da Ética e da Deontologia.

 

Referências

1.The Salzburg Statement on Shared Decision Making 2010 [consultado a 20/08/2018]. Disponível em: https://www.salzburgglobal.org         [ Links ]

2. Brenner A, Malo TL, Margolis M, Elston Lafata J, James S, Vu MB, et al. Evaluating shared decision making for lung cancer screening. JAMA Int Med. 2018 (in press) doi:10.001/jamainternmed.2018:3054        [ Links ]

 

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