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Medicina Interna

versão impressa ISSN 0872-671X

Medicina Interna vol.25 no.3 Lisboa set. 2018

https://doi.org/10.24950/rspmi/Opiniao/3/2018 

ARTIGO DE OPINIÃO / OPINION ARTICLE

A Medicina Interna no Interior, na Segunda Década do Século XXI: Obstáculos ou Oportunidades?

Internal Medicine in Inland in the Second Decade of XXIst Century: Obstacles or Opportunities?

Paula Vaz Marques

Diretora do Serviço de Medicina Interna do Centro Hospitalar de Trás os Montes e Alto Douro, Av. Da Noruega, Lordelo, 5000-508 Vila Real

Correspondência

 

Palavras-chave: Departamentos Hospitalares/organização e administração; Disparidades nos Cuidados de Saúde; Medicina Interna/tendências.

 


 

Keywords:Healthcare Disparities; Hospital Departments/ organization and administration; Internal Medicine/trends.

 


 

O Centro Hospitalar de Trás os Montes e Alto Douro, EPE (CHTMAD), localiza-se no interior norte do país e abrange uma área de influência direta de cerca de 5670 km2, que inclui o distrito de Vila Real e o norte do distrito de Viseu.

Se acrescentarmos a esta área, a Unidade Local de Saúde do Nordeste (ULSNE), de quem o CHTMAD recebe doentes, por ser considerado o centro de referência em determinadas patologias e especialidades, a sua área de abrangência total é de cerca ou 12 264 km2, que equivale a 13,3% do país.

As unidades que compõem o Centro Hospitalar estão ligadas entre si por autoestrada (A24) e aos hospitais da ULSNE pela A4. É o maior Centro Hospitalar do país, no que à área geográfica diz respeito.

Do ponto de vista demográfico, serve uma população de cerca de 280 760 habitantes, relativos à área de influência direta, ou 420 000, se consideramos também o distrito Bragança. Cerca de 38% da população tem mais de 50 anos e 20% tem idade igual ou superior a 65 anos (Relatório e Contas CHTMAD, 2017).

A densidade populacional ronda os 50 habitantes/km2, francamente inferior ao referencial do país (114,5 habitantes/km2). Entre 2001 e 2011, a região Douro perdeu cerca de 7% dos residentes e a região do Alto Tâmega perdeu cerca de 10% dos residentes (Censos 2011).

Em 2011, o rendimento per capita da região do Douro atingiu de 67% da média nacional, sendo a quarta região NUTS III do país e a segunda região do Norte com menor capacidade de geração de riqueza por habitante.

Centro Hospitalar de Trás os Montes e Alto Doutor, EPE.

O CHTMAD, criado em 2007, resulta da fusão entre o Centro Hospitalar de Vila Real/Peso da Régua, o Hospital Distrital de Chaves e o Hospital Distrital de Lamego. Em 2008 foi criada e integrada a Unidade de Cuidados Paliativos de Vila Pouca de Aguiar.

Tem internamento da maior parte das especialidades e conta com apoio, em ambulatório, das restantes. Dispõe de uma Unidade de Cuidados Paliativos, de um Centro Oncológico, Unidade de Hemodiálise para doentes ambulatórios, Unidade de Hemodiálise de Agudos, Laboratório de Hemodinâmica 24 horas/dia, Laboratório de Pacing e Unidade de Reabilitação Cardíaca.

Tem uma Urgência Polivalente, no pólo hospitalar de Vila Real, uma Urgência Médico-Cirúrgica em Chaves e uma Urgência Básica em Lamego. Possui, também, um Serviço de Emergência Pré-hospitalar organizado, estando alocadas uma VMER à Unidade de Vila Real e outra à Unidade de Chaves, para além de uma ambulância de Suporte Imediato de Vida (SIV) na Unidade de Lamego.

O Serviço de Medicina Interna

O Serviço de Medicina Interna do CHTMAD possui um total de 176 camas, divididas pelas suas três unidades: 73 em Vila Real, 73 em Chaves e 30 em Lamego. O diretor de serviço é comum às 3 Unidades.

Atualmente, além da diretora de serviço, o seu quadro é constituído por 37 especialistas: quatro assistentes graduados sénior, 11 assistentes graduados e 22 assistentes hospitalares. Dois dos especialistas exercem a sua atividade na Equipa de Gestão de Altas e na Unidade de AVC. O serviço tem, em formação, 22 internos de formação específica de Medicina Interna. Nos últimos 3 anos tem recebido, anualmente, 6 internos de formação específica de Medicina Interna, oito a 10 internos de outras especialidades (Cardiologia, Hematologia, Medicina Física e de Reabilitação, Nefrologia, Oncologia, Pneumologia, Medicina Geral e Familiar e Medicina Intensiva) e cerca de 50 internos do ano comum, além de alunos do mestrado integrado em medicina e alunos do curso de Enfermagem de várias escolas da região.

O serviço de Medicina Interna disponibiliza, em presença física, simultaneamente, cinco internistas por dia para as três urgências: dois em Vila Real, 2 em Chaves e um em Lamego.

Em 2017, o serviço de Medicina Interna, nas suas 3 Unidades, teve 8 821 internamentos, uma demora média de 7,8 dias, uma taxa de ocupação de 96% e uma taxa de mortalidade de 11,5%. No mesmo período foram realizadas 20 196 consultas, das quais 2459 primeiras consultas.

Além da atividade assistencial, o serviço concentra muita da sua atenção na formação. Dois dos assistente hospitalares são responsáveis pela formação dos internos, mas todo o serviço contribui de forma muito ativa para este desígnio, encarado como um projeto de extrema importância. Há visita semanal à enfermaria, reuniões semanais em que são apresentados temas teóricos ou casos clínicos, reuniões de Journal Club e reuniões semestrais entre os internos e o responsável pela formação e/ou diretora de serviço. Há um grande rigor na organização e planeamento do Internato Médico, nomeadamente na escolha dos estágios e locais de formação, de acordo com o interesse pessoal dos internos, mas também com os eixos estratégicos do serviço. Os nossos internos fazem estágios opcionais em centros de referência a nível nacional e internacional. Somos requisitados para receber internos de Medicina Interna de outros hospitais, para a realização de estágios, nomeadamente de Hepatologia, embora tenhamos capacidade formativa noutras áreas. Anualmente, publicamos vários artigos científicos em revistas indexadas, nacionais e internacionais, temos vários membros do serviço que são revisores de revistas científicas e somos convidados, regularmente, para participar em mesas redondas e palestras em reuniões e congressos. Os nossos internos têm recebido vários prémios pelos seus mais variados trabalhos e temos 2 doutorandos no serviço.

Unidade de Vila Real

A Unidade de Vila Real dispõe de internamento com 73 camas, dividido em duas alas, Medicina A e Medicina B. A nível ambulatório temos consulta geral de Medicina Interna, consultas em áreas diferenciadas - Hepatologia, Doenças Autoimunes, VIH, Coinfeção VIH/hepatite, Diabetes e Patologia Endócrina da Grávida (esta última em colaboração com os serviços de Obstetrícia e Endocrinologia), Hospital de Dia de Hepatologia, Hospital de Dia de Doenças Autoimunes e Unidade Integrada de Diabetes. Asseguramos, ainda, a Consulta Interna e Residência Interna e um Serviço de Urgência, inserido numa Urgência Polivalente. O serviço colabora, conjuntamente com a Neurologia e a Medicina Física e de Reabilitação, no projeto da Unidade de AVC, que inclui 12 camas e é, ainda, responsável, hierarquica mente, pela Unidade de Isolamento de Doenças Infeciosas (UIDI), com 25 camas, que recebe doentes com infeções que necessitam de isolamento de contacto, gotícula ou respiratório, de todos os serviços hospitalares. A Unidade conta com a colaboração de uma Infeciologista que a coordena. Para breve está o início de obras para a concretização da Unidade de Ambulatório Médico, projeto ao qual o serviço se candidatou no âmbito do Programa de Incentivo à Integração de Cuidados e à Valorização dos Percursos dos Utentes no SNS. O seu objetivo principal é prevenir a descompensação de doença crónica, diminuindo o número de episódios de urgência, de internamentos por descompensação de doenças crónicas, e reduzir a demora média dos internamentos. Privilegiará a observação em regime de ambulatório, de doentes com doenças crónicas que necessitem de observação frequentes por descompensação; a reavaliação a curto prazo de doentes a quem é dada alta do internamento, ou que foram observados no SU e necessitam de reavaliação ou ajustes posológicos.

Unidade de Chaves

A Unidade de Chaves dispõe de internamento com 73 camas, dividido em duas alas, Medicina 1 e Medicina 2. O ambulatório é constituído pela consulta geral de Medicina Interna e consultas em áreas diferenciadas (Hepatologia, Doenças Autoimunes, VIH, Coinfeção VIH/hepatite, Diabetes e Insuficiência Cardíaca) e pelo Hospital de Dia de Medicina Interna. Dispõe, ainda, de Consulta Interna e Residência Interna e de um Serviço de Urgência, inserido numa Urgência Médico-cirúrgica. Tem, também, idoneidade formativa, recebendo, além dos internos de formação específica de medicina interna, internos do ano comum.

Unidade de Lamego

A área de internamento do novo Hospital de Lamego, construído de raiz e concluído em 2012, é destinada apenas à Medicina Interna. Toda a restante área hospitalar está vocacionada para o ambulatório: consulta externa das mais diversas especialidades, Hospital de Dia, Unidade de Cirurgia de Ambulatório, Serviço de Medicina Física e Reabilitação e Urgência Básica.

A atividade da Medicina Interna, está dividida pelo internamento, com 30 camas; Consulta de Medicina Interna, Consulta de Doenças Autoimunes e Consulta de Diabetes, Hospital de Dia e Serviço de Urgência.

Os Obstáculos e as Oportunidades

O serviço de Medicina Interna do CHTMAD não é exceção na vivência dos problemas atuais de quase todos os serviços dos hospitais do SNS. Adicionalmente, a sua localização confere-lhe outras particularidades. Serve uma população envelhecida, mais pobre e geograficamente dispersa. Além disso, a distância entre as várias Unidades hospitalares é grande (de Chaves, a Norte, até Lamego, a Sul, são cerca de 95 km) e, apesar da melhoria notável da rede viária há, ainda, dificuldade no transporte de doentes.

A concentração da população ativa portuguesa nos grandes centros (Porto e Lisboa) e no litoral,1 cria uma dicotomia urbano/rural e litoral/interior que se traduz também na distribuição de recursos humanos e técnicos.2 Por outro lado, há uma tendência para uma menor literacia para a saúde, nas zonas rurais do interior, o que associada a situações frequentes de falta de apoio social, abandono e solidão contribuem para um paradoxo: uma população idosa, dispersa, com menos literacia e mais necessidade de cuidados de saúde, tem uma maior iniquidade no acesso aos cuidados de saúde, quando comparada com a população dos grandes centros.

Além disso, em enfermarias sobretudo de idosos, é fundamental que as práticas sejam adaptadas às condições reais da população servida: não basta tratar o motivo que levou à admissão hospitalar. É, também, necessário prevenir a síndrome pós-hospitalar3 e desenvolver estratégias que promovam a recuperação total do doente, do ponto de vista funcional, social, físico e psicológico. Na verdade, preparar o período de transição hospital/domicílio assume maior importância em regiões como o interior.

De acordo com Mackenbach et al,4 nos países europeus, as iniquidades em saúde associadas à condição socioeconómica estão presentes, aos mais diversos níveis, mas a sua magnitude é maior a nível da mortalidade, deixando em aberto a possibilidade de múltiplas intervenções.

Estão, assim, pois, criadas as condições para que seja imperioso desenvolver, no interior, ações e projetos que visem a diminuição da iniquidade do acesso; encurtem a distância doente/cuidados de saúde (mais equipas de apoio domiciliário; implementar a hospitalização domiciliária; criar unidades de ambulatório onde os doentes possam recorrer em caso de descompensação, para evitar idas ao SU, ou possam ser reavaliados muito precocemente após uma alta do internamento ou do SU); estreitem significativamente as relações do hospital com os Cuidados de Saúde Primários (CSP), através da criação de canais de comunicação eficazes e rápidos, da ministração de cursos e atividades formativas junto dos CSP e aumentem a literacia para a saúde (ações de formação na comunidade, junto da população). Mas não podemos esquecer que todas estas ações dependem de financiamento. O atual sistema de financiamento dos hospitais, não tem em linha de conta as suas particularidades. Uma região carenciada aos mais diversos níveis, não pode ter o mesmo tratamento que outras regiões do país. Urgem, pois, medidas diferenciadoras.

A inexistência, em hospitais menos diferenciados e dimensionados, de internamento de algumas especialida des médicas, obriga a um esforço adicional do internista, em diagnosticar e tratar patologias que, nos hospitais dos grandes centros, não ficariam a cargo da Medicina Interna. Da mesma forma, a limitação nos meios de diagnóstico, existente em alguns dos hospitais de menor dimensão, levanta ao internista alguns desafios que não são sentidos nos hospitais maiores. Mas isto tem vantagens: fazer-se ou ser-se internista no interior obriga a uma abrangência diagnóstica e de tratamento muito grande, o que confere ao médico um notável valor acrescentado e o capacita para trabalhar em qualquer hospital do país. Um internista no interior é o verdadeiro médico holístico.

A escassez de recursos humanos é outro problema crónico no interior, que é perpetuado por um ciclo vicioso: quanto menos médicos maior a carga de trabalho, o que conduz a menor a atratividade do serviço. Por outro lado, a “cristalização” dos modelos organizativos em muitos dos serviços de alguns hospitais, a que se assistiu nas últimas décadas, conduziu à frequente inadequação dos modelos organizacionais às necessidades da população.

É necessário inverter esta situação. Contudo, não se trata apenas de contratar mais profissionais. É necessário um grande investimento na mudança. Instituir nos serviços novos modelos organizativos, mudar a sua estrutura, tomar medidas que fomentem o empenho, a motivação e o compromisso dos profissionais com o serviço. Trabalhar num hospital onde é necessário mudar e inovar é um dos melhores estímulos. Iniciar novas consultas, novas unidades diferenciadas, novos projetos, abre oportunidades de criação de cargos de liderança intermédia a jovens profissionais, o que contribui para um aumento notável da realização profissional e para o desenvolvimento da sua carreira.

E, finalmente, não devemos esquecer os múltiplos atrativos das cidades do interior: perto o suficiente dos grandes centros para usufruir das suas vantagens, mas distante o necessário para poder disfrutar de uma qualidade de vida e uma tranquilidade difíceis de encontrar nas metrópoles.

Conclusão

É importante reformular o modo como se vê o interior, derrubar barreiras e transformar obstáculos em oportunidades. É fundamental inovar na forma de pensar e planear os investimentos, e adequar as ações às necessidades específicas da população do interior. Atualmente, trabalhar no interior confere aos médicos, sobretudo os mais jovens, um sem número de oportunidades dificilmente alcançáveis noutros locais. Onde é preciso mudar há motivação, empenho, esperança e comprometimento dos profissionais. Mas não esqueçamos que as circunstâncias inerentes à interioridade geram assimetrias e iniquidade que têm que ser encaradas e combatidas, mediante ações e financiamento adequados e diferenciadores.

 

 

Referencias

1. Almeida Simões J, Augusto GF, Fronteira I, Hernandez-Quevedo C. Portugal. Health System Review. Health Syst Transit. 2017;19:1-184.         [ Links ]

2. Santos CB.. Disparidades na distribuição geográfica de recursos de saúde em Portugal. [Dissertação de Mestrado em Economia e Política da Saúde, Escola de Economia e Gestão, Universidade do Minho]. Braga: ECG, UM; 2012.

3. Harlan M. Krumholz. Post-Hospital Syndrome – A condition of Generalized Risk. N Engl J Med. 2013; 368: 100-2.

4. Mackenbach J, Stirbu I, Roskam AJ, Schaap MM, Menvielle G, Leinsalu M, et al. Socioeconomic Inequalities in Health in 22 European Countries. New Engl J Med. 2008, 358:2468–81.

 

Correspondência:Paula Vaz Marquespmarques@chtmad.min-saude.pt
Diretora do Serviço de Medicina Interna do Centro Hospitalar de Trás os Montes e Alto Douro, Av. Da Noruega, Lordelo, 5000-508 Vila Real

 

Conflitos de Interesse: Os autores declaram a inexistência de conflitos de interesse na realização do presente trabalho.

Fontes de Financiamento: Não existiram fontes externas de financiamento para a realização deste artigo.

Conflicts of interest: The authors have no conflicts of interest to declare.

Financing Support: This work has not received any contribution, grant or scholarship.

 

Recebido: 01/07/2018

Aceite: 17/07/2018

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