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Medicina Interna

versão impressa ISSN 0872-671X

Medicina Interna vol.25 no.3 Lisboa set. 2018

https://doi.org/10.24950/rspmi/pontodevista/96/3/2018 

PONTOS DE VISTA / POINTS OF VIEW

Anamnese Versus História de Vida na Compreensão do Sofrimento do Outro

Anamnesis Versus Narrative-Based Practices in Understanding the Suffering of the Other

Francisco Sobral do Rosário

Serviço de Endocrinologia, Hospital da Luz, Lisboa, Portugal Investigador do Projecto Narrativa e Medicina do Centro de Estudos Anglísticos da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Lisboa, Portugal

Correspondência

 

Resumo

Nos últimos anos a introdução crescente de tecnologia tem alterado a prática médica, com o risco de menor interação com o doente. Neste contexto, alguns autores defendem que o ensino médico deverá incidir na narrativa da história de vida, como forma de melhorar a compreensão do doente e aumentar a empatia. O autor defende que a anamnese, instrumento básico da prática médica, deve incluir a colheita da narrativa de vida, mantendo o doente no centro da atividade clínica.

Palavras-chave: Empatia; Medicina; Narração; Prestação de Cuidados de Saúde; Stress Psicológico

 


 

Abstract

In recent years the increasing introduction of technology has changed medical practice, with the risk of less interaction with the patient. In this context, some authors argue that medical education should focus on narrative-based practices as a way to improve the patient´s understanding and increase empathy. The author argues that anamnesis, the basic instrument of medical practice, must include the collection of the life narrative, keeping the patient at the center of clinical activity.

Keywords:Delivery of Health Care; Empathy; Medicine; Narration; Stress, Psychological.

 


 

O Instituto Português de Oncologia é a casa que me formou como Médico. Lá entrei como licenciado em Medicina, em algum momento lá dentro me tornei algo mais. Com a ajuda de muitas horas de trabalho, de profissionais de saúde médicos e não médicos e, como se torna óbvio para quem envereda por estes caminhos, com o essencial e muito próximo contacto com pessoas afetadas por problemas de saúde, vulgo doentes, os seus familiares e o lastro que com eles vem e nos liga à sociedade, às suas preocupações, sonhos, desilusões, alegrias e dor. À sua amizade ou mesmo à sua incompreensão.

Lembro-me do meu exame de saída de Especialidade, feito no Pavilhão de Medicina, em que levei uma gravata azul escura oferecida por um senhor que conheci na Urgência. Passou a fazer parte da minha lista de doentes passado meio ano - a sua Médica assistente reformou-se, passei a segui-lo com o seu carcinoma medular da tiroideia com metastização brônquica. Conheci os seus filhos, a sua esposa, a paixão por passear. Ambos sabíamos o inevitável. As várias crises de hemoptises - sangue em golfadas pelas vias aéreas - iriam conduzir em algum momento à sua morte. Que aconteceu cerca de dois meses antes do exame.

Lembro-me neste mesmo piso da rapariga de 17 anos que se agarrou a mim logo de manhã a pedir para mudar de quarto - Quatro outras colegas de sala haviam falecido nessa mesma noite.

Lembro-me da passagem de ano de 2006 no quarto ao lado em que se brindou com champanhe à amizade, enfermeiras, eu e quatro senhoras internadas, que no final desse mês de janeiro que se iniciava já não estariam vivas.

Ou de tantas histórias que poderia continuar a relatar, em emoção crescente, em tantos outros locais, e que se deslocaram para dentro de mim.

Posso falar então da anamnese do Médico. Ou, se preferirmos, da História de vida do Médico.

A anamnese é um relato que permite dar a conhecer algo ou alguém. Tal como a História de vida.

E para conhecer um médico, a relação que estabelece com o objeto último da sua atividade - o doente - é fundamental. Aquilo que mais profundamente toca na formação do médico é a interação com os doentes, mesmo que o discurso ou a prática pareça incidir apenas na técnica.

A técnica é o meio, algo redutível a números. Sempre me impressionou as listas de doentes dos currículos médicos, escondendo histórias e motivações. O que leva alguém ao Hospital? O que é que o médico modifica na vida do outro? Qual o nosso papel na vida destas pessoas? Estas são talvez as questões mais importantes para a vida de um médico. E apenas podem ser respondidas com a ajuda do conhecimento da vida do doente e do seu envolvente.

O médico instintivamente generaliza - vê muitas pessoas, consegue enquadrá-las em grupos - de personalidade, de motivação, até de prognóstico. Não é raro ouvir - «esta é das que vai sobreviver». E muitas vezes o médico acerta, baseado apenas no que a sua experiência diz. Parece-me óbvio que algo tão complexo apenas pode ocorrer bem se não for apenas um número a ser avaliado, mas sim uma cara, ou mais, um olhar, um discurso, uma profissão, uma casa, uma família, as origens, uma infância, uma convivência que se estabelece.

A qualidade da prática médica melhora, ou direi talvez de outra forma, evolui para um patamar de preocupações mais correto - Aquele patamar em que a objetividade médica, do seu saber técnico, se enquadra com as necessidades e vivências da pessoa que está à sua frente.

Como fazê-lo? Através da anamnese do doente, que se faz, que se vai fazendo, que nunca acaba de ser feita. Esta anamnese apenas pode ser conseguida através de uma História de vida.

Tenho dúvidas quanto à oposição entre Anamnese e História de vida. A colheita da anamnese bem feita - ou seja, que não se restringe apenas à idade, sexo, estado civil e morada (e se alguns casos fosse já tanto...) - passa inevitavelmente pela perceção e colheita de uma narrativa de vida.

Posso dizê-lo: A anamnese será a técnica, depurada por milénios de prática e transmissão geracional de médicos, que sintetiza a audição da complexidade que as histórias de vida encerram. Em tempos de primado da tecnologia - em que não se palpa e se questiona, mas sim se pede uma ressonância ou endoscopia, em que as palavras, os olhares, o silêncio - em suma, o tempo de uma relação - são substituídos por um click informático, será importante colocar no Centro da prática aquilo que lá sempre existiu - A história de vida.

Neste momento peço a colaboração de um colega - Anton Tchekhov, o relator da Humanidade, que por certo tanto aprendeu no Consultório.

Pedi-lhe excertos - o ideal seria a totalidade - do conto «O Mestre Escola». A tradução é de Nina e Filipe Guerra, a Editora, Relógio de Água.

«Fiodor Lukitch Sissóev, professor da escola fabril, financiada pela «Manufatura Kulíkin, filhos» estava a preparar-se para um almoço solene. Todos os anos, depois dos exames, a direção da fábrica dava um almoço (...)

(...) Sissóev, de acordo com os anos do seu serviço na escola fabril, contava com treze almoços destes.

Agora, preparando-se para o décimo quarto almoço, tentava dar a si próprio o mais festivo e decoroso aspeto. Passou uma hora inteira a limpar o novo fato preto e quase o mesmo tempo em frente do espelho, vestindo uma camisa da moda; os botões de punho entravam com dificuldade nas casas da camisa, e esta circunstância provocou toda uma tempestade de queixas, ameaças e acusações endereçadas à esposa. A pobre da mulher, esfalfava-se a correr à volta dele. Ele próprio, por fim, já estava sem forças. Quando lhe trouxeram da cozinha os sapatos engraxados, foi incapaz de os calçar sozinho.

Viu-se obrigado a deitar-se e a beber água.

- Enfraqueceste muito! - suspirou a mulher. - Seria melhor não ires a este almoço.

- Peço que não me dêem conselhos! - interrompeu-a o professor, zangado.

Estava muito mal-humorado, descontente com os últimos exames. Os exames, afinal, correram muito bem; todos os rapazes da última classe receberam diplomas e prémios (...)

(...) Estava aborrecido porque o aluno Bábkin, que escrevia sempre sem erros, deu três no ditado; o aluno Serguéev, por nervosismo, não conseguiu multiplicar 17 por 13; o inspector, jovem e inexperiente, escolheu um texto difícil para o ditado, e Liapunov, professor da escola vizinha, a quem o inspetor pediu para ditar, não se portou como «um bom camarada»: ditando, não pronunciava as palavras tal como se escreviam e parecia mascá-las (...)

(...) Os pedagogos já se haviam juntado ao lado dos acepipes e comiam. Sissóev carregou o sobrolho; ficou ressentido por os colegas terem começado a comer e beber sem esperarem por ele. No meio deles localizou Liapunov, aquele que ditara no exame, foi ter com ele e disse-lhe:

- Entre os camaradas, isso não se faz! Não, caro senhor! Pessoas decentes não fazem um ditado dessa maneira! (...)

(...) O meu Bábkin nunca deu erros! E eu sei por que razão o senhor fez isso. Desejava simplesmente reprovar os meus alunos para que a sua escola parecesse melhor do que a minha. Já percebi tudo! (...)

(...) - Deixem-se disso, meus senhores - intrometeu-se o inspetor, fazendo cara lacrimosa - Valerá a pena exaltar-se por causa dessas ninharias? Três erros...nenhum erro...que diferença faz?

- Faz diferença, sim. O meu Bábkin nunca deu erros!

- Implica comigo! continuou Liapunov, com irritação. - Aproveita a sua situação de doente e não pára de serrazinar toda a gente. Mas eu, meu senhor, não lhe dou desconto só porque está doente!

- Deixe a minha doença em paz! - gritou Sissoév, agastado. - O que tem a ver com isso? Não deixam de repetir, todos: doença, doença, doença!... Não preciso da vossa compaixão! E também, quem vos disse que estou doente? Estava doente antes dos exames, é verdade, mas agora estou bem, apenas fraco, por enquanto. (...)

(...) - Sabemos dar o devido valor - continuou Bruni (o diretor), baixando a voz - Em resposta ao que foi dito vou anunciar que ... o bem-estar da família de Sissóev será garantido e, para este fim, há já um mês que foi depositado um determinado capital no banco.

Sissóev olhou interrogativamente para o alemão e para os colegas, como se não percebesse: porque seria garantido o bem-estar à sua família, e não a ele próprio? Então, em todas as caras, em todos aqueles olhares cravados nele, leu, em vez da compaixão que detestava, qualquer outra coisa, meiga, terna e ao mesmo tempo extremamente sinistra, no limiar de uma terrível verdade, uma coisa que, num instante, lhe encheu o corpo de frio e a alma de indizível desespero. Com a cara pálida, torcida, levantou-se bruscamente e deitou as mãos à cabeça. (...)

(...) Chegado a casa, Sissóev, antes de mais, olhou-se ao espelho.

«É claro que fui estúpido quando desatei a chorar ali! - pensou, perscrutando os olhos rodeados de círculos escuros e as faces cavadas. - Hoje tenho cores muito melhores do que ontem. Isto é só anemia e gastrite, e a minha tosse é gástrica».

Acalmado com isso, despiu-se lentamente e limpou, durante muito tempo, o seu fato preto, depois dobrou-o cuidadosamente e arrumou-o no guarda-roupa.

A seguir foi até à mesa onde se erguia uma pilha de cadernos escolares e, escolhendo o de Babkin, sentou-se e mergulhou na contemplação da bela caligrafia infantil... (...)

(...) um médico municipal, no quarto contíguo, estava a dizer em sussurro à mulher do mestre escola que não deveria ter deixado ir àquele almoço um homem que talvez não tivesse mais do que uma semana de vida.»1

Penso que o Dr. Tchekhov provavelmente não concordaria com a opinião do médico, conhecendo como conheceria o Sr. Sissóev.

Esta história recordou-me outra passada comigo no Serviço de Urgência do Instituto.

Entrei às 17:30 horas ao Serviço. Onde se encontrava uma senhora em estado muito frágil. Fez-me um pedido - Queria ir ao aniversário da sua filha essa noite. A condição clínica desaconselhava-o. Telefonei à médica assistente, que veio ao Serviço de urgência. Conferenciámos e estabelecemos o seguinte acordo - Iria ao aniversário, mas teria que voltar ao Serviço de urgência às 8.30 H do dia seguinte. Via-a nessa altura, viva, agradecida, poderei dizer, feliz. No dia seguinte a sua médica informou-me da sua morte durante a tarde, calma e serena.

Para terminar, gostaria de pedir ajuda a um doente, com tuberculose pulmonar, Cesário Verde.

Era seguido, sem esperança de cura, pelo famoso Dr. Sousa Martins.

Em carta para o seu amigo Silva Pinto, escrita dois meses antes de morrer, diz:

-«O doutor Sousa Martins perguntou-me qual era a minha ocupação habitual. Eu respondi-lhe naturalmente: «Empregado no comércio». (...) Ora meu querido amigo, o que eu te peço é que, conversando com o Dr. Sousa Martins, lhe dês a perceber que eu não sou o Sr. Verde empregado de comércio. Eu não posso bem explicar-te; mas a tua muita amizade compreende os meus escrúpulos: sim?...»2

Os escrúpulos de Cesário como doente, ou de qualquer outro doente, deverão ser percepcionados pelo clínico e convenientemente valorizados, no melhor interesse da relação clínica.

Autores recentes como Rita Charon ou Brian Hurwitz realçam a necessidade de conhecimento da História de vida e da sua narrativa, essenciais para a compreensão do doente em tempos ameaçados por um primado da tecnologia, colocando de certa forma a necessidade de repensar a forma de colheita de dados clínicos. O treino de técnicas narrativas será útil no ensino médico e melhorará a qualidade de cuidados e a empatia.3-5 Penso que esta preocupação legítima não é oposta à anamnese, instrumento básico da prática médica no caminho para o entendimento da doença e do doente. Trata-se, no fundo, de encontrar na prática médica aquilo que lá sempre esteve, o convívio próximo com a humanidade. Não tenho dúvidas que o treino em focar a atenção na História de vida e na sua narrativa apenas poderá melhorar a prática médica.

(Nota: Comunicação inserida na Conferência – Cuidados que fazem a diferença/ 60º Aniversário Unidade de Assistência Domiciliária do Instituto Português de Oncologia de Lisboa. 7 de outubro de 2016).

 

Referencias

1. Tchekhov A. O Mestre Escola. In: Contos de Tchekhov. Lisboa: Relógio de Água; 2014. p.165-72.         [ Links ]

2. Cesário Verde, excerto de carta (epistolografia). O Livro de Cesário Verde. Lisboa: Ulisseia, 1986. 10.         [ Links ]

3. Charon R. Narrative and medicine. N Engl J Med. 2004;350:862.         [ Links ]

4. Charon R, Hermann N, Devlin MJ. Close reading an creative writing in clinical education: teaching attention, representation, and affiliation. Acad Med. 2016; 91: 345.         [ Links ]

5. Hurwitz B, Charon R. A narrative future for health care. Lancet.2013;381: 1886.         [ Links ]

 

Correspondência:Francisco Sobral Rosáriofranciscosobraldorosario@gmail.com
Serviço de Endocrinologia, Hospital da Luz; Investigador do Projecto Narrativa e Medicina do Centro de Estudos Anglísticos da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
Hospital da Luz Lisboa, Avenida Lusíada 100 – 1500-650 Lisboa

 

Conflitos de Interesse: Os autores declaram a inexistência de conflitos de interesse na realização do presente trabalho.

Fontes de Financiamento: Não existiram fontes externas de financiamento para a realização deste artigo.

Conflicts of interest: The authors have no conflicts of interest to declare.

Financing Support: This work has not received any contribution, grant or scholarship.

 

Recebido: 02/05/2018

Aceite: 17/05/2018

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