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Medicina Interna

Print version ISSN 0872-671X

Medicina Interna vol.25 no.4 Lisboa Dec. 2018

https://doi.org/10.24950/rspmi/Editorial/4/2018 

EDITORIAL / EDITORIAL

 

O Bem-Estar dos Médicos

Physicians Well-Being

João Sá

Editor chefe

Hospital da Luz, Lisboa, Portugal

 

“Terás de renunciar à tua vida privada... a tua porta ficará aberta a todos, a toda a hora do dia e da noite virão perturbar o teu descanso, teus prazeres ou tua meditação. Já não terás horas para dedicar à tua família, à amizade ou ao estudo. Já não pertencerás a ti mesmo...”
Conselhos de Esculápio (Séc. VI a.C.)

Na edição de setembro da MEDI.COM, periódico da Secção Regional do Sul da Ordem dos Médicos, foi publicado um artigo de opinião da autoria da Dra. Sofia Amálio, especialista de Medicina Interna do Centro Hospitalar e Universitário do Algarve, que constitui um verdadeiro grito de revolta acerca das condições de trabalho dos internistas nas instituições da rede do Serviço Nacional de Saúde.1

E são apontados os motivos da desilusão e do cansaço de muitos dos especialistas mais jovens: sobrecarga assistencial, carga horária em urgência excessiva, estatuto remuneratório desfavorável, desigualdades nas oportunidades e no reconhecimento profissional, ausência de espaço e tempo para projectos de desenvolvimento técnico, progressão incerta numa carreira de contornos agora indefinidos, peso de actividades burocráticas, ambiente clínico sem chama nem esperança a facilitar conflitualidade entre pares.

A crise actual é fruto de factores como a falta de estratégia supra-institucional (nacional?) sobre os objectivos e as prioridades na assistência, a falta de liderança, a governação inadequada, a disfuncionalidade organizacional (patologias de organização) e a suborçamentação e o subfinanciamento crónico das estruturas e da actividade. Associam-se a complexidade crescente da clínica, os conflitos decorrentes de uso de processos clínicos electrónicos, a constelação de regulamentos e normas (sobre tudo e sobre todos) e a medição de desempenho (repetida até à exaustão, empregando ferramentas não validadas nem calibradas).

A questão ultrapassa as nossas fronteiras. A Physicians Foundation, uma organização norte-americana não-lucrativa que tem como missão o progresso nas condições de trabalho dos médicos e na qualidade de cuidados de saúde completou no passado mês de setembro um inquérito cujos resultados foram agora divulgados: o 2018 Survey of America’s Physicians.2 Os resultados obtidos das 8724 respostas recebidas podem qualificar-se como devastadores: 50% dos médicos estão insatisfeitos, três em 4 apresentam quadro de burnout, 80% afirmam estar em sobrecarga profissional permanente, 2/3 estão pessimistas, 46% ponderam uma mudança na sua carreira e 17% ambicionam reformar-se.

O Royal College of Physicians efectuou um escrutínio semelhante endereçado aos consultant tendo sido obtidas respostas representativas de 30% da força de trabalho dos especialistas no Reino Unido. No que respeita à percepção da sua postura profissional, 78% entendiam que eram valorizados pelos doentes, 70% pelos colegas e apenas 26% pelas instituições. No que respeita a plano de trabalho um horário com maior flexibilidade era ambicionado por 39% dos inquiridos, 33% pretendiam mais tempo sabático, 41% mais actividade docente e 47% mais tempo para dispensar aos doentes.3

As consequências fazem-se sentir a nível individual e colectivo: o desalento pelo exercício clínico, a qualidade de vida real bem longe da que era expectável, a síndroma de sobrecarga-esgotamento (exaustão, burnout com um custo de 3,4 biliões de dólares anuais nos Estados Unidos da América), a quebra da qualidade dos actos clínicos (eficácia e eficiência), a falta de segurança na prática clínica e o desprestígio individual e institucional.

Este panorama ameaçador tem estado na génese de diversas intervenções de órgãos representativos e reguladores do exercício da Medicina. A National Academy of Medicine desenvolveu uma iniciativa - Action Collaborative on Physician Well-being and Resilience - um trabalho em rede envolvendo mais de 60 organizações com 3 objectivos: tornar visíveis as situações de ansiedade, depressão, esgotamento, tensão e suicídio, melhorar o conhecimento dos desafios ao bem-estar dos médicos, e desenhar e implementar soluções reabilitadoras, no fundo cuidar do cuidador médico.4

Este panorama ameaçador tem estado na génese de diversas intervenções de órgãos representativos e reguladores do exercício da Medicina. A National Academy of Medicine desenvolveu uma iniciativa - Action Collaborative on Physician Well-being and Resilience - um trabalho em rede envolvendo mais de 60 organizações com 3 objectivos: tornar visíveis as situações de ansiedade, depressão, esgotamento, tensão e suicídio, melhorar o conhecimento dos desafios ao bem-estar dos médicos, e desenhar e implementar soluções reabilitadoras, no fundo cuidar do cuidador médico.4

A Canadian Medical Education Directions for Specialists (CanMED) editou um manual muito completo expondo questões que não constituem prioridades habituais como o ciclo de vida do médico, o equilíbrio entre vida pessoal e profissional, o auto-cuidado (nutrição, exercício, espiritualidade) e a saúde financeira.6

A European Association for Physician Health é um forum de grupos e individualidades interessadas na saúde dos médicos que fazem lobby encorajando o estabelecimento de meios de suporte de qualidade elevada para profissionais em dificuldades: criação de serviços de saúde para médicos, normas de boa prática no tratamento de médicos por outros médicos, pesquiza nos temas associados ao seu bem estar.7 O Royal College of Physicians of Ireland divulgou um manual de boa leitura intitulado Looking after your Health and Well-Being - a Guide for Doctors, rematado com um algoritmo interessante de auto-referenciação de médicos aos cuidados de saúde.8 A nível institucional deve salientar-se a iniciativa da Mayo Clinic que assumiu publicamente a responsabilidade de cuidar da tranquilidade e da satisfação dos seus médicos com diversas intervenções: medição e monitorização regular (bianual) do bem-estar mediante o emprego de ferramentas (Well-Being Index) validadas a nível nacional, adopção de novos modelos de prática clínica de modo a elevar a eficiência assistencial, formação contínua das lideranças e o cultivo do trabalho em equipa.9 As acções empreendidas passam por frequência de simpósios / cursos presenciais, actividade de e-learning, apoio individual, sessões de grupo, intervenção psiquiátrica e psicoterapêutica.

Num ponto de vista recentemente publicado foi divulgado um conjunto de princípios orientadores para a promoção do bem-estar dos médicos: manter o significado do exercício profissional (joy in Medicine), praticar em grupo como matriz cultural, entender o bem-estar dos médicos como um marcador de qualidade e como um objecto de responsabilidade partilhada entre médico e instituição.10

O bem-estar do médico explorado cientificamente não é um assunto frequente nas conversas do quotidiano e nas exposições formais em congressos e reuniões técnicas, mas o tema fica lançado esperando-se que doravante a troca de ideias e a proposta de soluções esteja mais presente.

 

Referências

1. Amálio S. Porquê continuar no SNS? Talvez ainda fique... MEDI.COM. 2018; 215:26        [ Links ]

2. Physicians Foundation. 2018 Survey of America’s Physicians [acedido Nov 2018] Disponível em: https://physiciansfoundation.org/wp-content/uploads/2018/09/physicians-survey-results-final-2018.pdf

3. Royal College of Physicians. Consultant Physician Well-Being survey 2017. London: RCP; 2017.         [ Links ]

4. National Academy of Medicine. Action Collaborative on Clinician Well-Being and Resilience 2017. [acedido Nov 2018] Disponível em: https://nam.edu/initiatives/clinician-resilience-and-well-being        [ Links ]

5. Physician Burnout - Helping physicians redesign their medical practices to minimize stress and improve job satisfaction. [acedido Nov 2018] Disponível em: https://www.ama-assn.org/education-center        [ Links ]

6. Royal College of Physicians and Surgeons of Canada. CanMEDS Physician Health Guide - A Practical Handbook for Physician Health and Well-Being. Ottawa: RCPSC; 2009.         [ Links ]

7. European Association for Physicians Health. [acedido Nov 2018] Disponível em: http://www.eaph.eu         [ Links ]

8. Royal College of Physicians of Ireland. Looking after your Health and wellbeing. [acedido Nov 2018] Disponível em: https://www.rcpi.ie/news/publication/looking-after-your-health-and-wellbeing-a-guide-for-doctors        [ Links ]

9. Program on Physician Well-Being. [acedido Nov 2018] Disponível em: https://www.mayo.edu/research/centers-programs/program-physician-well-being         [ Links ]

10. Thomas L, Ripp J, West C. Charter on physician well-being. JAMA. 2018; 319:1541-.2        [ Links ]

 

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