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Medicina Interna

versão impressa ISSN 0872-671X

Medicina Interna vol.25 no.4 Lisboa dez. 2018

https://doi.org/10.24950/rspmi/PP/4/2018 

PÁGINA DO PRESIDENTE / PRESIDENT PAGE

Gestão do Doente Agudo em Portugal

Acute Patient Management in Portugal

João Araújo Correia

Presidente da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna

 

Saímos agora do setembro mais quente de que há registo. Ouvi na rádio e o locutor afiançava que o calor ia continuar. Lembro-me bem de que ainda há poucos anos o verão castigava os corpos, mas arrefecia os Serviços de Urgência (SU). Principalmente aos fins-de-semana, as urgências eram calmas e sobravam vagas nos internamentos. Neste ano e no que passou, tudo foi diferente. Apesar do convite insistente da praia e do lazer, o calor não afastou as pessoas, que se mantiveram nas urgências, horas a fio, à espera da sua vez. O internamento permaneceu lotado e inventar as vagas necessárias consumiu grande parte do esforço das equipas médicas. Quando o frio aparecer, de braço dado com a gripe ou uns quaisquer resfriados, vai instalar-se de novo o caos absoluto, com reuniões de crise convocadas de emergência, como se tudo aquilo fosse uma surpresa!

O doente agudo, grave e não grave, recorre maioritariamente aos SU’s hospitalares. Em Portugal, o recurso da população ao SU é o dobro da média dos Países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE). Nos últimos anos tem-se vindo a acentuar a tendência do recurso ao SU hospitalar em detrimento da procura dos Cuidados Primários de Saúde. A procura sempre crescente dos SU hospitalares, faz com que eles estejam sempre a trabalhar nos limites da eficiência, pelo que, qualquer acréscimo de recursos resulta na instalação do caos. Os cada vez mais frequentes períodos de crise nas Urgências, leva à ocorrência de múltiplas horas de espera no atendimento, ultrapassando em muito as recomendações da triagem de Manchester e comprometendo a segurança dos doentes e dos profissionais. Com o argumento da necessidade de transparência no SNS, o Ministério da Saúde coloca online os tempos de espera em cada Serviço de Urgência e, não sei se inadvertidamente, transfere para aquele Hospital a “culpa” do atraso!

É por todos aceite que só deveriam chegar aos SU’s dos Hospitais os doentes emergentes (laranja / vermelho) e os doentes agudos com sinais / sintomas de alarme (parte significativa dos amarelos), para que esses pudessem ter o atendimento célere e adequado à sua condição clínica. Mas, continuam a recorrer aos SU’s hospitalares doentes sem gravidade (verdes e azuis = 30% do total) ou com gravidade moderada (talvez 50% dos amarelos), admitindo-se que, no seu conjunto, possam corresponder a 50% das admissões. Há ainda um número não contabilizado de pessoas trazidas aos SU hospitalares, que são casos sociais puros, sem qualquer patologia médica, e outros que aguardam há muito a integração na Rede de Cuidados Continuados ou Paliativos, cuja resposta é lenta e insuficiente.

O doente não grave aculturou-se ao hábito de recorrer de imediato ao hospital, em vez de ir ao Centro de Saúde, apesar de saber que vai passar várias horas até ser atendido. Pergunto-me muitas vezes o que leva as pessoas, sem quaisquer sintomas evidentes de gravidade, a sujeitarem-se a tal suplício… Pode ser a falta de confiança nos Cuidados Primários, pelo recurso limitado aos meios subsidiários de diagnóstico, a ausência de informação acerca de um circuito obrigatório de acesso primário aos Centros de Saúde ou a utilização do SU como “loja de conveniência” por que aí existem todas os especialistas e todos os exames. Há também a convicção instalada nos doentes (e até nos médicos) de que a doença aguda não grave precisa sempre de meios complementares de diagnóstico, quando a verdade é que, na grande maioria dos casos, a observação por um médico diligente é suficiente, permitindo a instituição de uma terapêutica adequada, com uma reavaliação posterior para apreciação da evolução clínica.

É preciso que se comece a olhar com seriedade sobre as principais causas da evidente disfuncionalidade da gestão do doente agudo em Portugal. Aos Serviços de Urgência dos nossos Hospitais Centrais chegam dez vezes mais doentes do que em Paris ou Londres. O caminho, que tem vindo a ser seguido, de aumentar cada vez mais os Serviços de Urgência, em espaço físico e recursos humanos, aceitando tudo o que chega como inevitável, é errado, perigoso e votado ao fracasso.

Era bom que houvesse a coragem política de fazer a publicitação de um circuito obrigatório para o doente agudo não emergente, que indicasse a necessidade do recurso primário ao Centro de Saúde, sendo garantido, o acesso fácil em horário alargado (p. ex. até às 22,00 horas). Depois de uma profusa divulgação e com a garantia do acesso a Cuidados Primários próximos do hospital, quem recorresse aos Serviços de Urgência do Hospital sem ir primeiro ao Centro de Saúde, verificando-se após observação que se tratava de um doente agudo não emergente, seria taxado com um valor dissuasor desta prática (p. ex. dobro da taxa habitual).

Para que haja bons resultados neste esforço de mudança, teriam também de acontecer alterações significativas no financiamento dos Hospitais e dos Centros de Saúde dos Centros de Saúde, para não vermos perpetuada a hipocrisia reinante, em que não queremos SU’s lotados, mas às administrações hospitalares são muito apelativos os doentes agudos não graves, que não precisam de exames e ficam mais baratos! Para isso, os Centros de Saúde cujos utentes não tivessem recursos ao SU do hospital, quando na situação de doentes não emergentes, deveriam ter um incentivo. Os hospitais deveriam ver aumentados os valores atribuídos aos vermelhos, laranjas e amarelos, sendo reduzidos os pagamentos aos azuis e verdes, de forma a incentivar uma eficiente gestão de recursos.

Por último, e não menos importante, é necessário que os Serviços de Emergência Social sejam dotados de meios que garantam a resolução imediata das admissões no SU, sem quaisquer razões clínicas. As cidades estão repletas de velhos que vivem sós. Muitos, vão permanecendo no seu tugúrio com a ajuda de um vizinho. Mas, há sempre um dia que esse parco apoio falta, e a única porta aberta é o Serviço de Urgência. Tenho recebido muitos assim, com situações conhecidas, que se arrastam há anos. Pela demografia, Portugal é um país de velhos, mas, infelizmente, não os trata bem!

 

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