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Medicina Interna

Print version ISSN 0872-671X

Medicina Interna vol.26 no.2 Lisboa June 2019

https://doi.org/10.24950/rspmi/PV/MJL/2/2019 

PONTOS DE VISTA / POINTS OF VIEW

Cuidar do Doente em Fim de Vida: Tempo Para Agir!

The Concept of Health and My Internal Medicine Practice

 

MJ Lobão11,2
https://orcid.org/0000-0002-3837-4476

 

1Escola Nacional de Saúde Pública, Universidade NOVA de Lisboa, Lisboa, Portugal
2Serviço de Medicina Interna, Hospital de Cascais, Cascais, Portugal

Correspondência

 

 

Resumo:A definição de saúde da Organização Mundial de Saúde (OMS) tem agora setenta anos de idade. Numa perspectiva pessoal, discutem-se as suas limitações sob vários ângulos, tendo em conta as modificações demográficas e sociais decorridas nas últimas décadas. A proposta alternativa de Huber e colaboradores para definição da Saúde é apresentada, ressalvando alguns obstáculos à sua operacionalização. Numa época em que emerge a importância do value-based healthcare, torna-se oportuno fazer uma reflecção sobre as suas implicações na organização do sistema de saúde e na prática moderna da medicina interna.

Palavras-chave:Medicina Interna; Prestação de Cuidados de Saúde; Saúde

 


 

Abstract:The World Health Organization definition of health is now seventy-years old. From a personal perspective, its limitations are discussed from various angles, taking into account the demographic and social changes that have occurred in the last decades. Huber et al alternative proposal for health definition is presented, highlighting some obstacles to its operationalization. At a time that value-based healthcare significance emerges, it is appropriate to reflect on its implications for the health system organization and for the Internal Medicine modern practice.

Keywords: Delivery of Health Care; Health; Internal Medicine

 


Há vinte anos escolhi a medicina para meu modo de ser. Fi-lo com serenidade, profundamente consciente da abnegação e exigência inerentes a uma missão que se assume para a vida. Prometi, como corolário de um caminho, “solenemente consagrar a minha vida ao serviço da Humanidade”1 e jurei que “a saúde do meu doente será a minha primeira preocupação”.1 Desde 1948 que a Saúde é consagrada na Constituição da Organização Mundial de Saúde (OMS) como um direito fundamental, sendo definida como um “estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência de doença”.2 Apesar das críticas a que tem sido sujeita sobretudo ao longo das últimas décadas, os sistemas de saúde no qual estamos inseridos continuam conceptualmente organizados em função dela. Mas será que esta definição responde cabalmente às necessidades e exigências dos tempos modernos?

Quando nasci, a Conferência de Alma-Ata,3 que veio dar aos Cuidados de Saúde Primários um papel central nos sistemas de saúde, já tinha acontecido. Durante a minha infância, em 1986, decorreu a Conferência de Otawa.4 A Carta que dela resultou, afirmou a Promoção da Saúde como o paradigma que sustenta a “Nova Saúde Pública”, podendo ser lida à luz do modelo teórico da salutogénese de Antonovsky.5

Apesar da evolução vertiginosa de conceitos à escala mundial, no meu mundo individual a velocidade era outra. A saúde era para mim um dado adquirido não havendo lugar para um constructo. Nasci saudável num ambiente onde os determinantes de saúde me eram claramente favoráveis, contrariamente ao que acontecia com a parte mais considerável da população mundial. No entanto, a inevitabilidade da ocorrência da doença e a sua corporização nos que me eram mais próximos, deram-me uma nova consciência, acrescentando à saúde - que passou a configurar para mim um estado de ausência de doença - uma matiz muito própria, única, profundamente pessoal e afectiva no seu cariz.

Na admissão à Faculdade de Medicina aprendi a definição de saúde estabelecida por consenso, em 1948, pela OMS.2 Esta espelha o esforço legítimo e inovador, no contexto histórico em que foi criada, para ultrapassar o carácter negativo da definição (“ausência de doença”) dando-lhe uma vertente positiva6 (“bem-estar físico, mental e social”), mais holística e mais humanista. Eu, cinquenta anos depois do surgimento desta definição, aprendi o que Lobo Antunes intitula de medicina triunfal,7 “a medicina do progresso científico e tecnológico”, da cura e do sucesso, tantas vezes distanciada daquela que é possível na prática actual da especialidade de Medicina Interna. Muitas vezes me questiono quanto o modelo de aprendizagem pré-graduado ainda se encontrará desfasado da realidade e qual será o seu impacto real no sistema de saúde.

William Osler, ilustre médico do século XIX e figura inspiradora para qualquer internista, numa época em que o modelo biomédico evoluía vertiginosamente pelos avanços da medicina e do conhecimento, dizia “It is much more important to know what sort of patient has a disease than what sort of disease a patient has”. A Medicina Interna mantém, à data de hoje, o seu carácter generalista, tendo sobre a pessoa uma visão holística e sobre a doença um pensamento sistémico. Apesar disso, a realidade prática do internista, consubstancia as críticas crescentes que têm vindo a ser feitas ao septuagenário conceito de saúde da OMS.6,8 São vários os motivos que concorrem para isso. Em primeiro lugar, o paradigma da doença mudou. A longevidade das populações aumentou e o número de pessoas com doenças crónicas e com múltiplas comorbilidades tem crescido progressivamente, mesmo nos países em desenvolvimento.6,9 A OMS projecta, inclusivamente, um aumento da população idosa de 900 milhões em 2015 para 2 biliões em 2050.9 As doenças crónicas passaram a ter um grande peso para os sistemas de saúde, sendo responsáveis por uma enorme pressão financeira que contribui para colocar em risco a sua sustentabilidade.10,11

No meu dia a dia, nos diferentes cenários em que actuo - urgência hospitalar, enfermaria médica, consulta externa – confronto-me com esta realidade. Raramente tenho a possibilidade de curar. E quando o posso fazer, o contexto clínico habitual é de coexistência de um conjunto complexo de comorbilidades. Como tal, e por definição, as pessoas permanecem doentes. Por outro lado, constato com frequência na minha prática clínica diária que pessoas portadores de doenças crónicas se assumem como saudáveis, mesmo que a longa lista de medicação habitual que nos dão a conhecer o pareça contrariar. Estes doentes parecem adaptar-se de forma positiva às suas limitações, efectuam uma gestão adequada das suas doenças, conseguem manter uma actividade profissional e/ou social que os satisfaz, apresentam melhor auto-percepção do seu estado de saúde, têm menos gastos com a saúde.6 Quantos de nós não se incluiria inclusivamente neste grupo? E como seríamos classificados tendo em conta a definição de saúde da OMS?

A este desajustamento acresce-se um outro se nos detivermos no epíteto “completo” que a própria definição impõe e que nos transporta para um intangível e utópico estado de saúde, pelo menos na maioria do nosso tempo.12

Um conjunto de peritos, no qual se inclui uma médica portuguesa, cientes das limitações da definição da OMS e do seu impacto nas políticas de saúde, propôs, no decurso do Health Council of the Neatherlands em 2011, uma nova definição, menos estática e mais dinâmica - “the ability to adaptat and to self manage”,6 que tem vindo a ser acolhida de forma consensual. Na tentativa de operacionalizar este conceito centrado no doente, Huber e colaboradores efectuaram um estudo com o objectivo de identificar um conjunto de indicadores que pudessem servir para o mensurar.13

Doentes, profissionais de saúde e outros actores no sector da saúde foram convidados a participar. Os indicadores identificados foram categorizados em seis dimensões: física, mental, espiritual, social, qualidade de vida e actividades da vida diária. Os resultados indicam que enquanto os doentes valorizam de forma igual as seis dimensões da saúde, profissionais de saúde e responsáveis pelas políticas de saúde, centram-se sobretudo na dimensão física para a definição de saúde, mantendo sobre ela uma perspectiva profundamente biomédica.

Estes dados reflectem a realidade que experimentamos diariamente, permitindo antever que a mudança, necessária, quer a nível dos profissionais, quer a nível do sistema, está ainda longe de se tornar real. Na verdade, nos dias de hoje, a prestação de cuidados de saúde em Portugal, tal como noutros países, permanece focado na doença e não na saúde, o que, poderá estar a condicionar uma sobreutilização de recursos escassos que não incrementam o bem-estar das pessoas e das populações.12 A organização dos serviços de saúde, o seu financiamento, o desempenho das organizações e dos profissionais continua focada no volume de serviços prestados,14 o que é redutor e insuficiente. Nos últimos anos tem emergido uma nova abordagem intitulada value-based healthcare cujo contributo de Michael Porter foi crucial. Nesta perspectiva, o propósito dos sistemas de saúde não é a minimização de custos, mas a prestação de cuidados centrados no doente e a criação de valor (resultados em saúde sobre custos),15 isto é, obter melhor saúde por cada euro investido. Isto só parece ser possível se houver compromisso dos médicos para liderar esta mudança em coordenação com todos os actores do sistema. Quanto maior for o valor obtido na prestação de cuidados, mais os doentes, profissionais, prestadores e financiadores beneficiarão, contribuindo-se de forma positiva para a sustentabilidade financeira do sistema.14 Espera-se que os resultados da investigação em curso nesta área possam constituir, a curto prazo, um importante contributo para o redesenho do sistema de saúde.

A mudança urge. Até que ela aconteça, o internista continuará assoberbado, cansado e angustiado, essencialmente porque: i) não lhe é concedido o tempo que a avaliação holística de um doente complexo como o de medicina interna exige; ii) não vê a sua actividade desenvolvida e avaliada numa óptica de criação de valor em saúde; iii) permanece insatisfeito, desmotivado ou em burnout, com consequente impacto no seu desempenho; iv) vê o doente insatisfeito com a resposta “não adequada”, por parte dos serviços de saúde às suas necessidades, v) debate-se com uma progressiva escassez de recursos para dar resposta às necessidades reais dos seus doentes.

Mais do que esperar pela mudança ou ser consumida por ela, valerá a pena fazermos parte dela. A especialidade de Medicina Interna é vital para os doentes e para o bom funcionamento dos hospitais e do sistema de saúde. O contributo do internista pode ser determinante para o redesenho necessário do sistema, centrado numa nova operacionalização dos conceitos de saúde e de valor.

Agradecimentos

A autora agradece ao Professor Paulo Sousa, docente da Escola Nacional de Saúde Pública, a análise critica e revisão do presente manuscrito.

 

Referencias

1. Juramento de Hipocrates [homepage na Internet]. Ordem dos médicos; 2019 [consultado 6 Jan 2019 ]. Disponível em: https://ordemdosmedicos.pt/estatutos-e-regulamentos/#1504220526430-13f7b9b4-d898        [ Links ]

2. WHO | Constitution of WHO: principles. [homepage na internet]. WHO; 2016 [consultado 6 Jan 2019]; Disponível em: https://www.who.int/about/ mission/en/        [ Links ]

3. WHO | WHO called to return to the Declaration of Alma-Ata. [homepage na Internet]. WHO; 2017 [consultado 6 Jan 2019]; Disponível em: http:// www.who.int/social_determinants/tools/multimedia/alma_ata/en/         [ Links ]

4. WHO | The Ottawa Charter for Health Promotion. [homepage na Internet]. WHO; 2016 [consultado 6 Jan 2019]; Disponível em: http://www.who.int/healthpromotion/conferences/previous/ottawa/en/        [ Links ]

5. Mittelmark MB, Bull T. The salutogenic model of health in health promotion research. Glob Health Promot. 2013;20:30–8.

6. Huber M, Knottnerus JA, Green L, van der Horst H, Jadad AR,Kromhout D, et al. How should we define health? BMJ. 2011;343:d4163. doi: 10.1136/bmj.d4163.         [ Links ]

7. Lobo Antunes J. Sobre as minhas mortes. In: Sobre as mãos e outros ensaios. Lisboa: Gradiva; 2005. p. 99–117.

8. Jadad AR, O’Grady L. How should health be defined? BMJ. 2008;337:a2900.

9. Olshansky SJ, Carnes BA. Ageing and health. Lancet. 2010 ;375(9708):25.         [ Links ]

10. WHO. World report on Ageing And Health [e-book]. 1st edition: WHO. 2015 [consultado 06 Jan 2019]. Disponível em: http://www.who.int        [ Links ]

11. Cesari M, Prince M, Thiyagarajan JA, De Carvalho IA, Bernabei R, Chan P, et al. Frailty: An Emerging Public Health Priority. J Am Med Dir Assoc. 2016;17:188–92. doi: 10.1016/j.jamda.2015.12.016.

12. Card AJ. Moving Beyond the WHO Definition of Health: A New Perspective for an Aging World and the Emerging Era of Value-Based Care. World Med Health Policy. 2017;9:127–37.

13. Huber M, van Vliet M, Giezenberg M, Winkens B, Heerkens Y, Dagnelie PC, et al. Towards a “patient-centred” operationalisation of the new dynamic concept of health: a mixed methods study. BMJ Open. 2016;6:e010091. doi: 10.1136/bmjopen-2015-010091.

14. Porter ME. What Is Value in Health Care? NEJM. 2010; 363:2477-81. doi: 10.1056/NEJMp1011024. 15. Porte ME, Teisberg, EO. How physicians can change the future of health care. JAMA. 2007; 297:1103-11        [ Links ]

 

Correspondência:MJ Lobão m.lobao@ensp.unl.pt

Escola Nacional de Saúde Pública Av. Padre Cruz, 1600-560 Lisboa, Portugal

 

Conflitos de Interesse: Os autores declaram a inexistência de conflitos de interesse na realização do presente trabalho.

Fontes de Financiamento: Não existiram fontes externas de financiamento para a realização deste artigo.

Conflicts of interest: The authors have no conflicts of interest to declare.

Financing Support: This work has not received any contribution, grant or scholarship.

 

Recebido: 06/02/2019

Aceite: 06/03/2019

 

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