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Medicina Interna

versão impressa ISSN 0872-671X

Medicina Interna vol.26 no.3 Lisboa set. 2019

https://doi.org/10.24950/rspmi/Revisao/253/18/3/2019 

ARTIGOS DE REVISÃO / REVIEW ARTICLES

Uma Boa Morte: Reconhecer a Agonia a Tempo

A Good Death: To Recognize the End-of-Life in Time

 

Carmen Pais1
https://orcic.org/0000-0002-4282-7597

Rita Silva1
https://orcid.org/0000-0003-0853-6881

Sónia Carvalho1
https://orcic.org/0000-0001-7228-619X

Anabela Morais2
https://orcid.org/0000-0003-0777-0852

 

1Serviço de Medicina Interna Centro Hospitalar de Trás-os-Montes e Alto Douro, Vila Real, Portugal

1Serviço de Medicina Paliativa Centro Hospitalar de Trás-os-Montes e Alto Douro, Vila Real, Portugal

Correspondência

 

Resumo:

Numa época em que as pessoas vivem cada vez mais e nos deparamos com doentes cada vez mais velhos, com doenças crónicas e incuráveis numa medicina que privilegia a cura, muitas vezes torna-se difícil determinar que um doente está na fase da agonia, ou seja, moribundo e numa situação de morte iminente. A agonia tem por base uma síndrome em que se destacam a presença de declínio funcional progressivo, oscilações do estado de consciência, falência multiorgânica e recusa alimentar. Este artigo tem como objetivo realizar uma revisão teórica sobre a agonia revendo as suas características e enquadramento na medicina atual.

Palavras-chave: Atitude Perante a Morte; Cuidados Paliativos; Cuidados Terminais; Morte

 


 

Abstract

At a time of increasing life expectancy and greater than ever patients with chronic and incurable diseases in a medicine that focus on healing, it is often difficult to determine that a patient is dying and in a situation of impending death. Impeding-death is based on a syndrome of progressive functional decline, oscillations of consciousness, multi-organ failure and refusal to feed. This article aims to carry out a theoretical review on impeding-death by reviewing its characteristics and setting in current medicine.

Keywords:Attitude to Death; Death; Palliative Care; Terminal Care

 


Introdução

A única certeza que temos na vida é que um dia vamos morrer. Como médicos, todos os dias lidamos com a saúde e a doença dos nossos utentes e devemos, neste contexto, ter consciência que a morte é um fenómeno natural e que em algumas situações irá naturalmente ocorrer.

A evolução tecnológica e científica, a melhoria das condições de vida a nível económico, sanitário e alimentar, o crescente conhecimento e desenvolvimento da medicina com a descoberta da cura para inúmeras doenças, tratamentos que atrasam a sua progressão, novas formas de suporte de órgão, procedimentos menos invasivos e cada vez mais tecnológicos, a implementação de rastreios, entre outros avanços, permitiram um aumento progressivo da esperança média de vida. Verificou-se a mudança do paradigma de patologias que previamente eram terminais, passando a assumir um perfil de doenças crónicas: pessoas vivem mais anos com cancro, com insuficiência cardíaca, renal ou pulmonar e com SIDA. A medicina torna-se uma arma contra a morte, uma Medicina lutadora, mantendo a vida a todo o custo. Porém, começou a crescer uma inquietação: será o tempo mais importante que a qualidade da vida por que tanto lutamos?

O papel do médico na morte

O difícil jogo entre a qualidade e a quantidade de tempo de vida levou o homem a preocupar-se com o fim de vida e com a supressão do sofrimento nessa etapa, promovendo o desenvolvimento dos Cuidados Paliativos. Assim, a emergência e o desenvolvimento dos Cuidados Paliativos estão directamente relacionados com as alterações que têm ocorrido nas sociedades contemporâneas e na mudança de atitude perante a morte e a forma de morrer. Neste sentido, o papel do médico como agente da promoção da vida do doente estende-se ao acompanhamento na sua morte, adequando o esforço terapêutico às diferentes necessidades dos doentes, promovendo tanto quanto possível a sua dignidade e qualidade de vida, respeitando a vida e não a encurtando ou prolongando, na certeza da inevitabilidade da morte.1,2

Os Cuidados Paliativos são cuidados activos, coordenados e globais, prestados por unidades e equipas específicas, em internamento ou no domicílio a doentes em situação de sofrimento decorrente de doença incurável ou grave, em fase avançada e progressiva, assim como às suas famílias. O principal objectivo é promover o seu bem-estar e a sua qualidade de vida, através da prevenção e alívio do sofrimento físico, psicológico, social e espiritual, com base na identificação precoce e no tratamento rigoroso da dor e de outros sintomas físicos, mas também psicossociais e espirituais.3

Os autores do relatório “The future of Health and Care of Older People” identificaram 12 princípios de uma boa morte (Tabela 1) os quais poderiam ser implementados nos planos e objectivos individuais de cada um, no código profissional e nos objectivos das instituições e serviços de saúde.4,5

Evidência internacional e estudos portugueses mostram que a maioria das pessoas preferiria ser cuidada e morrer em casa, caso lhes fosse permitido escolher.6 Contrariamente, há um aumento progressivo da proporção de mortes hospitalares, de 44,7% em 1988 para 61,7% em 2010, correspondendo a 0,8% por ano, com aumento mais acentuado nos indivíduos com mais de 85 anos de idade. Prevê-se que esta tendência continue e que até 2030 as mortes hospitalares aumentem mais de um quarto (mínimo de 27,7%, máximo 52,1% de aumento).7

Atendendo a esta tendência, torna-se fulcral que todos os profissionais de saúde, e em particular aqueles que trabalham em áreas em que a prevalência de doentes com doença incurável e progressiva, como a Medicina Interna, disponham de conhecimentos e competências em Cuidados Paliativos generalistas8 e conhecimentos sobre questões relativas à morte e ao morrer.

Padrões de fim de vida

Existem três possíveis padrões de doença, e consequentemente, de fim de vida, variando de acordo com tempo e o grau de declínio funcional: mortes esperadas (a curto prazo ou prolongadas); morte súbita; e mortes após declínio progressivo com períodos de exacerbações9(Fig 1).

A morte inesperada ou súbita (Fig 1A) ocorre, como o próprio nome indica, num indivíduo saudável, pelo menos aparentemente, e que subitamente morre num curto espaço de tempo, seja por doença ou acidente.

A morte esperada compreende o tipo de morte mais culturalmente conhecida, aquela devida a cancro terminal (Fig 1-C). Os doentes apresentam um estado funcional razoável durante um certo período de tempo, até que a doença progride e deixa de haver resposta ao tratamento. Verifica-se então um rápido e progressivo declínio funcional até à morte.

As mortes por declínio progressivo com períodos de exacerbações são típicas dos doentes com insuficiências de órgão (Fig 1-B), por exemplo insuficiência cardíaca ou pulmonar. Verificam-se períodos de agudizações, muitas vezes por situações reversíveis que após a sua correcção o doente regressa a um estado de estabilidade. A etiologia dessas exacerbações ou períodos de agravamento podem ser infecções, anemia, arritmias ou por exemplo iatrogenia medicamentosa, cuja correcção leva a uma melhoria sintomática e ao retorno ao estado basal. Nestas situações, o prognóstico é incerto uma vez que não é possível prever se o doente irá recuperar.9-11 Contudo, para profissionais de saúde experientes, médicos assistentes destes indivíduos ou mesmo no decurso do tratamento da agudização, é possível reconhecer aqueles cuja exacerbação corresponde ao agravamento da própria doença crónica. Neste grupo de doentes é possível identificar várias características que indicam fase terminal da doença e período de fim de vida: internamentos recentes por agudizações; ausência de factor reversível precipitante da descompensação; agudização sob tratamento médico optimizado; agravamento da função renal, no caso da insuficiência cardíaca; e ausência de melhoria clínica em 2 a 3 dias após tratamento médico optimizado.12

Existe um outro padrão de declínio de fim de vida, que pode ser classificado separadamente ou incluído no grupo da morte esperada, que é aquele que ocorre quando por debilidade inerente a idade avançada, doença cerebrovascular ou na demência (Fig 1-D). Verifica-se um declínio lento e progressivo da capacidade funcional, com intercorrências como infecções e/ou insuficiências orgânicas, que conduzem lentamente o doente até à morte.9-11

Diagnosticar a agonia

A agonia corresponde ao período que antecede a morte, caracterizado por um enfraquecimento progressivo das funções vitais. Geralmente corresponde à fase terminal da doença enquadrado num agravamento de novo, súbito ou progressivo sem causa reversível identificável. É um período de tempo com início muitas vezes insidioso e, quando estão presentes sinais e sintomas do processo de morte, corresponde aos últimos 3 a 5 dias de vida.

Um aspecto muito importante no diagnóstico de uma morte próxima é o facto da equipa que assiste o doente concordar que ela está efectivamente próxima. Se os elementos da equipa discordam, estabelecem-se planos com objectivos terapêuticos e mensagens díspares, por vezes antagónicas, com claro prejuízo para o doente. Decidindo-se que o doente se encontra na fase terminal da vida, ou seja, com dias ou horas de vida, os objectivos terapêuticos devem ser ajustados, a família e o doente devem ser informados do prognóstico e se possível a família envolvida no acompanhamento e na assistência ao doente.12 Contudo, nem sempre é fácil determinar se um doente se encontra nos últimos dias de vida.

Barreiras para identificação da agonia ou do processo de morte

Definir um prognóstico é uma tarefa difícil, incerta e de enorme responsabilidade em que frequentemente nos enganamos por excesso ou por defeito. Efectivamente, os doentes muitas vezes vivem muito menos ou vivem muito mais do que esperamos, a este fato acresce a atitude tendencialmente optimista do médico na avaliação da sobrevivência esperada dos seus doentes.10 O diagnóstico da fase terminal e de agonia não pode ser feito apenas quando o doente está moribundo,1 contudo existem várias barreiras que dificultam a identificação e o diagnóstico da agonia no seu tempo certo (Tabela 2). Além do processo de morte ser complexo, em meio hospitalar prevalece uma abordagem médica dirigida à continuação de procedimentos invasivos, à investigação diagnóstica e aos tratamentos dirigidos à cura, descurando-se muitas vezes o conforto, a vontade, a manutenção da dignidade do doente.12

Sinais da agonia

A determinação de que um doente está na fase da agonia, ou seja, moribundo e numa situação de morte iminente, tem por base uma síndrome em que se destaca um declínio funcional progressivo, verificando-se igualmente2,10,13:
1. Debilidade crescente e astenia profunda, em que a pessoa passa cada vez mais tempo na cama.2,10,13
2. Período de afastamento em que a pessoa passa menos tempo acordada e diminui a interacção com os outros.2,10,13
3. Alteração do estado de consciência com sonolência e/ou inconsciência.2,10,13
4. Desinteresse crescente por alimentos e medicação e consequente diminuição da sua ingestão.2,10,13
5. Dificuldade em engolir.2,10,13
6. Arrefecimento das extremidades à medida que a circulação do sangue é desviada para os processos centrais. Consequentemente surge cianose das extremidades e pele marmoreada.2,10,13
7. Sonhos ou visões do fim de vida: documentadas ao longo dos séculos em várias culturas e religiões tratam-se de sonhos ou visões que ocorrem durante períodos de lucidez. Frequentemente os doentes vêem ou sonham com familiares ou amigos já falecidos ou figuras religiosas. Têm profundo significado pessoal e/ou espiritual e distinguem-se do delirium porque os doentes estão calmos, confortáveis e com sensação de plenitude e paz, recordando-se dos sonhos ou visões.14
8. Doente afirma que está a morrer.13
9. Irregularidades nos batimentos cardíacos, em algumas situações com taquicardia.2
10. Rigidez muscular e articular devido à imobilidade.2,10,13
11. Alteração do padrão respiratório, por exemplo respiração de Cheyne-Stokes ou aumento da frequência respiratória.2,10,13
12. Estertor (respiração ruidosa).2,10,13

Vários investigadores têm-se dedicado a encontrar a presença ou ausência de sinais físicos por forma a melhor identificar um padrão de morte. Um grupo de investigadores realizaram vários estudos prospectivos, em duas unidades Cuidados Paliativos englobando um total de 357 doentes com cancro avançado, em que avaliaram a presença e/ou ausência de sinais físicos e o seu desempenho no diagnóstico de morte eminente. No primeiro estudo, identificaram cinco sinais associados a uma alta probabilidade de morte num período de três dias: ausência de pulso da artéria radial; respiração com movimentos mandibulares; diminuição do débito urinário; respiração de Cheyne-Stokes e estertor (Tabela 3). Estes sinais ocorreram entre 38% a 72% dos doentes, com especificidade superior a 97%.15

No segundo estudo identificaram mais oito sinais de morte num período de três dias: pupilas não reactivas; diminuição da resposta verbal aos estímulos; diminuição da resposta aos estímulos visuais; incapacidade de fechar as pálpebras; sulcos naso-labiais pendentes; hiperextensão do pescoço; som vocal gutural e hemorragia gastrointestinal superior (Tabela 3). Estes sinais ocorreram entre 5% a 78% dos pacientes nos três últimos dias de vida, tiveram início tardio e apresentaram alta especificidade (>95%) e razão de verosimilhança positiva para a morte num período de 3 dias.16 Porém estes sinais são pouco sensíveis, o que significa que a sua presença é altamente sugestiva de morte iminente, mas a sua ausência não exclui a morte dentro de três dias.

A maioria dos estudos foca-se sobre doentes com cancro avançado, porém um outro estudo prospectivo englobou também doentes com insuficiência de órgão com mais de 75 anos ou doentes com menos de 75 anos e portadores de cancro avançado, admitidos numa enfermaria de doenças respiratórias. Estudou um total de 70 doentes falecidos durante o internamento, registando os sinais vitais, os achados clínicos nos últimos dias e horas de vida e a monitorização eletrocardiográfica (ECG) e de saturações periféricas de oxigénio (SpO2) antes da morte. Os sinais mais específicos de morte iminente foram a perda da via oral 6 dias antes da morte, inconsciência 1,3 dias antes e respiração com movimentos mandibulares 12 horas antes. Foram analisadas as variações do ECG e das SpO2 no período de morte iminente, verificando-se SpO2 indetectáveis em 83% dos doentes, seguida de paragem cardíaca. Noutro grupo de doentes, antes da perda de linha eletrocardiográfica, as ondas P eram indetectáveis em 54% dos doentes com paragem cardíaca.17

O diagnóstico da agonia é, portanto, um diagnóstico clínico, não sendo necessários resultados de exames analíticos ou de imagem, sendo crucial identificá-la a tempo para que os objectivos terapêuticos sejam adequados e não se prolonguem ou iniciem tratamentos, atitudes e/ou procedimentos que não visem o conforto do doente.

Cuidar do doente agónico

Para qualquer doente é importante que o objectivo terapêutico seja definido, para que sejam tomadas decisões adequadas e realistas face ao estado dos doentes. Relembrando o aforismo “curar algumas vezes, aliviar outras, cuidar sempre”, no fim de vida em que a primeira atitude já não se aplica, o objectivo terapêutico passa por aliviar e cuidar até ao fim, numa prática clínica humanizada. Ou seja, o objectivo é dirigido ao controlo sintomático e ao apoio psicológico e espiritual do doente e da família, não se podendo falar em qualidade de vida ou qualidade de morte, mas sim em dignidade em fim de vida.1,2

São vários os princípios base do controlo sintomático na agonia2:

1. Simplificar tratamento e evitar agressividade clínica, ou seja:
1.1. Evitar medidas de suporte para as doenças agudas ou agudizações de doenças crónicas, por exemplo infusões endovenosas, transfusões, sondas nasogástricas, algálias e antibióticos.
1.2. Suspender fármacos irrelevantes, por exemplo ferro, vitaminas, potássio, laxantes, anti-hipertensores, antiarrítmicos, antidiabéticos orais, insulina, antidislipidémicos, inibidores da bomba de protões, antiagregantes, hipocoagulantes, etc.
1.3. Suspender procedimentos irrelevantes como pesquisa de sinais vitais não envolvidos no controlo sintomático, pesquisa de glicemia capilar, registo do balanço hídrico, avaliação laboratorial ou imagiológica.
1.4. Manter fármacos de utilidade imediata e alterar as vias de administração se necessário, privilegiando a via oral e a via subcutânea.
2. Evitar procedimentos que causem dor ou desconforto.
3. Evitar induzir toxicidade farmacológica.
4. Realizar tratamentos de úlceras com sedo-analgesia eficaz e visando o conforto, o controlo da dor e a redução do mau cheiro.
5. Reduzir os posicionamentos, por exemplo realizá-los a cada 6 horas.
6. Manter os cuidados orais e humidificação da boca usando, por exemplo, sprays de água ou chá, esponjas ou gelo moído.
7. Reduzir a agitação e barulho em torno do doente. 8. Permitir a presença da família.

Principais sintomas da agonia

Durante a fase agónica, os principais sintomas são a dor, a dispneia, o estertor e o delirium,10,13 podendo ocorrer outros, menos frequentes, como as mioclonias ou convulsões, as náuseas, os vómitos, a retenção ou incontinência urinária e a febre. Numa revisão sistemática que envolveu 2416 doentes de 12 artigos sobre a prevalência dos sinais e sintomas nas duas últimas semanas de vida, os principais sintomas foram a dispneia (56,7%), a dor (52,4%), as secreções respiratórias/estertor (51,4%) e a confusão (50,1%).18

Particularidades no controlo sintomático dos principais sintomas na agonia

Dor: A maioria dos doentes, nomeadamente os portadores de cancro terminal, quando chegam à agonia, já se encontravam a fazer analgesia para o tratamento da dor, sendo geralmente ajustada a forma de administração para a via subcutânea (SC), quando o doente não tem via oral disponível, tem dor não controlada com necessidade de ajuste imediato ou quando apresenta contra-indicações para a continuação da via transdérmica (febre, má perfusão ou hipersudorese). O fármaco ideal é a morfina SC, ou outros opióides mais potentes como o fentanil. Nos doentes já medicados com corticóide, este deve ser mantido, podendo ser administrada dexametasona por via SC.2

Dispneia: Geralmente é um sintoma de difícil controlo. O objectivo é aliviar a percepção que o doente tem da dispneia através do uso de morfina e benzodiazepinas (Tabela 4) com o objectivo de diminuir a frequência respiratória e a profundidade da respiração. Na fase agónica não há muita margem para a correcção de causas reversíveis da dispneia, excepcionalmente na insuficiência cardíaca em que os diuréticos permitem a redução da congestão pulmonar num doente com função renal preservada e não-oligoanúrico, podendo ser administrada furosemida SC. A oxigenoterapia não deve ser utilizada com intuito de correcção da hipoxemia, mas apenas para alívio sintomático da dispneia na avaliação que o doente faz desta e/ou redução dos sinais de dificuldade respiratória, privilegiando-se as cânulas nasais em detrimento das máscaras faciais. A oxigenoterapia não está indicada por rotina para a correcção da hipoxemia, apenas deve ser utilizada para o alívio da dificuldade respiratória. Existem outras técnicas que contribuem para o controlo da dispneia, como o ar fresco através do uso de ventoinhas, temperaturas mais baixas ou o simples facto de abrir uma janela no quarto. Nas situações de broncospasmo podem estar indicados broncodilatadores inalados (salbutamol ou budesonide por exemplo) ou corticóides sistémicos SC e nas situações de abundantes secreções respiratórias, os anticolinérgicos como a butilescopolamina SC.2

Delirium: Muito frequente na agonia e geralmente de etiologia multifactorial. Devem ser consideradas e excluídas causas reversíveis como dor não controlada, toxicidade opióide e retenção urinária, a considerar também o sofrimento existencial não colmatado. Após excluídas as situações reversíveis, deve proceder-se à sedação dos doentes para o controlo do delirium. A sedação paliativa, está prevista no artigo 8º do Decreto Lei nº 31/2018 de 18 julho de 2018 como um direito das pessoas em fim de vida com sintomas de sofrimento não controlados. Deve ser realizada com benzodiazepinas (por exemplo midazolam), neurolépticos (por exemplo haloperidol, cloropromazina, levomepromazina), ou utilizar propofol e até fenobarbital. É essencial não esquecer que não existem doses ou esquemas estandardizados e que os fármacos e as doses necessárias devem ser continuamente avaliadas e revistas, de acordo com o controlo do delirium e os efeitos laterais indesejáveis.2,19

Estertor: É o sinal patognomónico da agonia e ocorre por incapacidade na expulsão de secreções da orofaringe e da traqueia, sendo geralmente mais desconfortável para os familiares do que para o doente uma vez que este não tem consciência da situação. Contudo, existem várias possíveis intervenções que podem ser úteis a reduzir o estertor, como por exemplo medidas posicionais evitando o decúbito dorsal e preferindo o decúbito lateral com a cabeça ligeiramente inclinada para a frente, recorrer a anticolinérgicos como a butilescopolamina, e na presença de infecção respiratória concomitante com abundante broncorreia pode ser iniciada antibioterapia por via SC (ceftriaxone), havendo geralmente uma redução rápida da quantidade de secreções e do estertor. A aspiração de secreções não está indicada, excepto em algumas situações e a hidratação geralmente agrava o estertor por aumentar o volume das secreções.2

Convulsões e mioclonias multifocais: Num doente que já realizava anticonvulsivantes, deve manter-se a medicação oral enquanto for possível. Quando não o for, podem ser iniciadas perfusões SC de midazolam ou fenobarbital, com recurso a doses de resgate de diazepam 10-20 mg rectal ou IV, midazolam ou fenobarbital (ver Tabela 1). No caso de metastização cerebral, está recomendado corticóide SC, por exemplo dexametasona SC.2

Nutrição e hidratação em fim de vida

A anorexia é comum nas últimas semanas de vida, sendo aliás uma das características do processo de morte. Contudo, é uma das situações que traz mais angústia e desespero aos familiares uma vez que é, muitas vezes vista, como a causa da própria morte ou do agravamento do estado geral do doente: “vai morrer porque não come”, “não se vai aguentar se não comer”, “está a morrer à fome” são frases que muitas vezes ouvimos dos familiares ou cuidadores e que influenciam os profissionais de saúde não preparados a instituírem soros ou a colocarem sondas nasogástricas para a manutenção da alimentação. Porém, na realidade o doente não vai morrer por não se alimentar, pelo contrário, não se alimenta porque está a morrer. A anorexia é um fenómeno protector num organismo que já não tem capacidade para lidar com a ingestão de alimentos. Desta forma, o procedimento correto é esclarecer a família e não forçar o doente a se alimentar ou realizar procedimentos que tragam mais desconforto do que benefício, situação prevista no artigo 8º do Decreto Lei nº 31/2018 de 18 julho de 2018.2,19

A desidratação, situação consequente à anorexia, em Cuidados Paliativos é avaliada através da xerostomia. Se o doente referir xerostomia, devem ser tomadas atitudes com vista ao controlo deste sintoma: humidificação da boca, ingestão hídrica em pequenas quantidades e, se possível, ajuste de fármacos potencialmente causadores de xerostomia. A hidratação SC ou EV (500-600 mL de soro fisiológico ou glicose a 5%) é discutível. Por um lado, a desidratação pode ser vantajosa uma vez que reduz o débito urinário com menor uso da arrastadeira, menos tempo de fralda molhada, reduz a necessidade de usar algália, reduz edemas, ascite, derrame pleural e vómitos, diminui o volume das secreções pulmonares com menos tosse, congestão, dispneia e estertor, e reduz o nível de consciência e do sofrimento. Por outro lado, a desidratação provoca sede, xerostomia, apatia, depressão, confusão, uremia, acumulação de metabolitos de vários fármacos e aumento da sua toxicidade. A considerar ainda que a hidratação artificial pode prolongar o processo de morte e trazer mais desconforto e descontrolo sintomático.2

Apoio psicológico

Deve ser abordada a percepção que o doente tem da sua condição ou estado de saúde, sendo exploradas, caso o doente o deseje, questões, emoções e atitudes sobre a morte e o morrer. Morrer é um acontecimento importante e individual e a possibilidade de o doente saber que a morte está próxima, permite-lhe fazer escolhas.2,12

Apoio à família e/ou cuidadores

A família e cuidadores são muitas vezes esquecidos. Um estudo mostrou que cerca de metade das famílias sentiram que não foram devidamente informadas e preparadas para o processo de morte do familiar, 51% afirmaram não conseguir falar com o médico assistente do doente e 51% consideraram não lhes ter sido dado apoio emocional adequado.13

A família deve ser envolvida no plano terapêutico de um doente em fim de vida. Deve ser informada do prognóstico e quando a equipa espera uma morte próxima do doente, devem ser abordadas questões relativas à morte e ao processo de morte, explicados os objectivos terapêuticos e as questões relativas à alimentação e hidratação e, principalmente, deve-lhes ser dado tempo para se ajustarem à situação e dar-lhes tempo para colocarem questões e dúvidas. Uma frequente causa de frustração e raiva da família é nenhum elemento da equipa médica ter conversado sobre o facto de o seu familiar estar a morrer. Quando isso é feito, os familiares têm a possibilidade de se despedirem, de se prepararem para a morte e de contactarem pessoas importantes. Além deste sentimento de afastamento e esquecimento por parte da equipa médica, os familiares vivem, muitas vezes, um sentimento de impotência, por não conseguirem aliviar o sofrimento do ente querido, e um sentimento de medo de realizarem algo que possa agravar a situação. Para diminuir esta sensação, devem ser encorajados e instruídos a prestarem alguns cuidados ao doente como por exemplo cuidados orais e de humidificação da boca, massagem dos braços ou pernas. Da mesma forma, devem manter, se assim o desejarem, a comunicação com o doente e exprimir os seus sentimentos: falar e tocar, mesmo que o doente não comunique.10,12

Apoio espiritual

A espiritualidade é inseparável da vida e das experiências quotidianas, derivando de percepções, ideias e crenças. Ela envolve relações com lugares e coisas, com nós mesmos, com os outros, com grupos e comunidades e com a transcendência. Para cada um de nós, esses relacionamentos formam um padrão único e cada um de nós necessita que esse padrão esteja praticamente intacto para se sentir seguro ou completo. Alguns sentem-se mais inteiros em determinados lugares ou quando estão rodeados por coisas particulares ou por pessoas que amam; alguns sentem-se íntegros quando, através da oração, ritual ou espera silenciosa, se encontram mais próximos de Deus. A rede de relacionamentos importantes define quem somos e, quando esses relacionamentos são interrompidos, sentimo-nos vulneráveis.

Espiritualidade não significa obrigatoriamente religião: muitos indivíduos definem-se como espirituais, mas não religiosos. Contudo, a compreensão da espiritualidade baseada na religião ou no sagrado é mais facilmente compreendida e aceite.

Actualmente, os doentes mais velhos têm frequentemente uma religião e é através dela que habitualmente expressam a sua espiritualidade. Em Portugal, uma vez que prevalece a religião católica, a maioria dos profissionais de saúde está familiarizado ou conhece as práticas e costumes desta religião. Porém, aos poucos vão surgindo doentes de outras culturas e religiões, minoritárias cá em Portugal, e que podem influenciar os cuidados durante o processo de agonia e mesmo os cuidados ao corpo após a morte.

Em Cuidados Paliativos, o apoio espiritual ajuda os indivíduos a encontrarem significado na sua morte. Aqueles que vivem com doenças incuráveis e terminais também manifestam necessidade de apoio espiritual para continuarem a viver o dia-a-dia. O trabalho em equipa multidisciplinar, composta por profissionais com experiência no processo de auto-conhecimento, mudança de percepções e desenvolvimento espiritual, por exemplo, psicólogos, enfermeiros, assistentes sociais, médicos e chefe religioso, é a melhor forma de conhecer e explorar as relações e experiências de significância de um doente e de fornecer o mais completo apoio espiritual, que deve ser sempre oferecido e nunca imposto.21

Educação e formação dos profissionais

Por forma a disseminar e implantar este modelo de acção dirigido ao cuidado holístico do doente, é necessário uma maior educação dos profissionais de saúde em questões relativas à morte e ao morrer, formação pré e pós-graduada em Cuidados Paliativos, que capacite os médicos, independentemente da sua área de especialização, em áreas tão essenciais como o são: a comunicação, a relação médico-doente, a relação médico-família ou a ética; é também necessário o reconhecimento da necessidade da abordagem multidisciplinar para se atingir a eficácia do pleno cuidar, considerando a multidimensionalidade do Ser Humano. Se culturalmente a morte for vista como uma perda ou derrota, em vez de uma importante parte da existência de cada indivíduo, a sociedade deixa de se preparar para a sua aceitação e a medicina descura os cuidados em fim de vida, que cada um de nós tem direito.

Actualmente em Portugal, a par da vontade crescente em aprender e conhecer mais sobre esta área do conhecimento e a par das crescentes necessidades dos nossos doentes, cada vez mais complexos, portadores de doenças crónicas e incuráveis, mas com esperança de vida cada vez maior, tem-se também observado o crescimento e o reconhecimento dos Cuidados Paliativos e das oportunidades de formação para os profissionais de saúde.

Conclusão

É necessária uma nova abordagem: é necessário trazer para a esfera da Medicina a discussão sobre o processo de fim vida e sobre a morte. É necessário que os profissionais de saúde não caiam na rotina de guias de orientação e procedimentos estandardizados, abordando o doente terminal da mesma forma que abordam um doente com uma situação completamente reversível. Nunca esquecer que enquanto médicos e internistas, tratamos doentes e não doenças e ainda lembrar que o nosso doente é um Ser Humano complexo, único e irrepetível, para o qual a única abordagem clínica adequada deve também ser única e individualizada. Lembrar ainda que é essencial discutir esta temática com os principais intervenientes, o doente e a sua família, envolvendo-os no processo de decisão que a eles mais diz respeito.

 

Referencias

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Correspondência: Carmen Pais carmenetp@gmail.com
Serviço de Medicina Interna Centro Hospitalar de Trás-os-Montes e Alto Douro, Vila Real, Portugal Av. da Noruega – Lordelo, 5000-508 Vila Real

 

Conflitos de Interesse: Os autores declaram a inexistência de conflitos de interesse na realização do presente trabalho.

Suporte Financeiro: O presente trabalho não foi suportado por nenhum subsidio o bolsa ou bolsa.

Proveniência e revisão por pares: Não comissionado; revisão externa por pares.

Conflicts of Interest: The authors have no conflicts of interest to declare.

Financial Support: This work has not received any contribution grant or scholarship.

Provenance and peer review. Not commissioned; externally peer reviewed

Publicado / Published: 20, de Setembro de 2019

 

Recebido: 15/10/2018

Aceite: 19/01/2019

 

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