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Medicina Interna

versão impressa ISSN 0872-671X

Medicina Interna vol.26 no.4 Lisboa dez. 2019

https://doi.org/10.24950/rspmi/CC/20/19/4/2019 

CASOS CLÍNICOS / CASE REPORTS

Stroke-Like Migraine Attacks After Radiation Therapy (SMART): Um Caso Clínico

Stroke-Like Migraine Attacks After Radiation Therapy (SMART): A Case Report

 

Marli Cruz1
https://orcid.org/0000-0003-0025-8194

Rui Barros1
https://orcid.org/0000-0002-5609-1867

José Mário Roriz2
https://orcid.org/0000-0002-2329-5476

Joana Martins3
https://orcid.org/0000-0002-0418-4893

António H. Carneiro1
https://orcid.org/0000-0002-0774-686

1Departamento de Medicina, UCI e Urgência, Hospital da Luz – Arrábida, Vila Nova de Gaia, Portugal

2Serviço de Neurologia, Hospital da Luz – Arrábida, Vila Nova de Gaia, Portugal

3Serviço de Neurorradiologia, Hospital da Luz – Arrábida, Vila Nova de Gaia, Portugal

 

Resumo:

A síndrome stroke-like migraine attacks after radiation therapy (SMART) é uma condição extremamente rara que consiste no aparecimento de sinais e sintomas neurológicos complexos ou estados confusionais, em doentes submetidos a radioterapia cerebral prévia. Encontram-se alterações características na ressonância magnética cerebral que normalizam com a resolução dos sintomas. O presente caso clínico descreve uma doente de 64 anos com antecedentes de radioterapia cerebral e aparecimento de hemiparesia direita de novo, confusão e depressão do estado de consciência, com alterações na ressonância magnética cerebral compatíveis com síndrome SMART. Os autores pretendem alertar para a existência desta síndrome e para o seu eventual subdiagnóstico.

Palavras-chave: Acidente Vascular Cerebral/etiologia; Perturbações de Enxaqueca/etiologia; Radioterapia/efeitos adversos

Stroke-like migraine attacks after radiation therapy (SMART) is an extremely rare syndrome that involves the appearance of complex neurological signs and symptoms or confusional states in patients who have undergone brain radiation years earlier. There are characteristic changes in brain magnetic resonance imaging that normalize with the resolution of symptoms. We report the case of a 64-year-old woman with a history of brain radiotherapy and the onset of inaugural right hemiparesis, confusion and decreased level of consciousness, presenting brain magnetic resonance imaging changes compatible with the diagnosis of stroke-like migraine attacks after radiation therapy. The authors intend to draw attention to the existence of this syndrome and its possible under-diagnosis.

Keywords: Migraine Disorders/etiology; Radiotherapy/adverse effects; Stroke/etiology

 

Introdução

As potenciais complicações da radioterapia cerebral são várias, entre as quais a síndrome SMART (stroke-like migraine attacks after radiation therapy), uma entidade rara. Atendendo ao aumento do número de indivíduos submetidos a radioterapia cerebral, importa definir e clarificar a sua existência. Sendo a sua patofisiologia desconhecida e os achados anatomopatológicos inespecíficos, são a clínica e as alterações imagiológicas que auxiliam no diagnóstico.

 

Caso Clínico

Mulher de 64 anos, com défice cognitivo ligeiro e síndrome depressivo. Antecedentes de neoplasia da mama há 11 anos, submetida a cirurgia e quimio-radioterapia neoadjuvante. Metástase parietal direita única detetada 3 anos após o diagnóstico inaugural, submetida a tumorectomia e radioterapia cerebral preventiva holocraniana (3 GY, em 10 frações), apresentando vertigens como sequela. Sem evidência atual de recidiva. Sem história prévia reconhecida de enxaqueca.

Avaliada por episódio transitório de cefaleia holocraniana de moderada intensidade, hemiparesia direita e alterações da linguagem com duração inferior a uma hora, sem referência a movimentos involuntários ou automatismos/estereotipias.

Apresentava-se sub-orientada na admissão, mas apirética e já sem défices neurológicos focais objetiváveis; incapaz de melhor caracterizar as queixas inaugurais. Investigada com análises sem alterações; tomografia computorizada crânio-encefálica (TC CE) sem lesões endocranianas expansivas ou vasculares recentes; ressonância magnética (RM) e angiografia por ressonância magnética cerebral confirmaram a permeabilidade dos principais eixos arteriais cerebrais e ausência de lesões isquémicas agudas. Ficou internada com o diagnóstico presuntivo de acidente isquémico transitório (AIT).

No segundo dia de internamento desenvolveu confusão e agitação psicomotora, evoluindo nos dois dias seguintes com progressiva depressão do estado de consciência e hemiparesia direita grau 3, com postura espástica. Sem registo de movimentos involuntários. Repetiu RM cerebral que mostrou hipersinal cortical em fluid-attenuated inversion recovery (FLAIR) e diffusion-weighted imaging at b1000 (DWI b1000) nas regiões insular, temporal e parietal esquerdas, com franco realce marginal cortical em T1 com gadolínio (Fig. 1) – sem envolvimento da substância branca.

O estudo citoquímico e anátomo-patológico do líquido cefalorraquidiano (LCR) foi normal. O EEG documentou traçado encefalopático, sem aparente atividade periódica ou epileptiforme. Foi tentada prova terapêutica com antiepiléptico, sem modificação clínica evidente.

Assumiu-se o diagnóstico presuntivo de síndrome SMART e iniciou corticoterapia, considerando os sintomas de confusão e desorientação iniciais, com progressiva melhoria clínica até remissão do quadro, em cerca de 4 semanas. A RM de seguimento (Fig. 2), três semanas após a primeira, mostrou resolução das alterações previamente observadas.

 

Discussão

A síndrome SMART é uma condição extremamente rara, descrita pela primeira vez em 1995 em quatro crianças submetidas a radioterapia cerebral por neoplasia.1 Como o nome indica, ocorre em doentes submetidos a irradiação cerebral para tratamento neoplásico anos antes.2 Dada a maior prevalência de doentes sobreviventes a neoplasias, cada vez mais se tem assistido a um aumento do número de referências na literatura a esta síndrome.

Consiste no aparecimento de sinais e sintomas neurológicos complexos, nomeadamente cefaleias acompanhadas por défices neurológicos transitórios, evocativos de aura migrainosa, crise epiléptica, AIT (ex. hemiplegia, hemianopsia, afasia) ou estados confusionais,3,4 habitualmente com instalação subaguda, em doentes submetidos a radioterapia no passado.

Existe uma maior prevalência entre indivíduos do género masculino (cerca de duas vezes),5,6 apesar de não se saber o motivo para esta desigualdade entre géneros. Não parece existir uma relação entre o tipo histológico do tumor cerebral nem a dose de radioterapia cerebral7 com o aparecimento desta síndrome. Porém, parece que a fossa posterior é mais sensível à radioterapia, com achados mais frequentes nesta zona quando se efetua o diagnóstico de SMART.7

Os achados na RM cerebral consistem em hipersinal cortical nas sequências de TR longo (predominantemente insular, temporal, parietal ou occipital), com captação associada de contraste. Podem associar-se aspetos de necrose laminar cortical, com hiperdensidade em TC, variável restrição DWI e hipersinal T1 na RM.8 As alterações são mais prevalentes nas portas de incidência rádica – naturalmente contralaterais aos défices gerados. Ocorrem entre 2 a 7 dias após o início dos sintomas, com habitual normalização da imagem após 14 a 35 dias.3,9,10 Apesar de ainda não ter sido estabelecida a causa destas alterações na RM, alguns consideram que o hipersinal TE reflete edema vasogénico subagudo, por alteração da barreira hemato-encefálica secundária à radioterapia.6

Analiticamente não têm sido encontradas alterações de relevo. A realização de biópsia cerebral é rara e, na maioria dos casos descritos, sem achados anatomopatológicos específicos.3,11

A patofisiologia da síndrome SMART ainda não está esclarecida. É considerada a possibilidade de se tratar de uma vasculopatia reversível secundária à radiação, por disfunção endotelial semelhante à encefalopatia posterior reversível (PRES).6,12 Em alguns casos, os achados histológicos mostraram uma proliferação vascular, associada a infiltrados celulares perivasculares e gliose.2,11 Alguns autores defendem que estas alterações na barreira hemato-encefálica resultariam em edema cortical,8 enquanto outros parecem contrariar esta hipótese.13

Outra hipótese considerada é a de disfunção neuronal, secundária ao impacto da radiação sobre o sistema trigeminovascular.7,13 Esta levaria a alterações da homeostasia condicionando uma diminuição do limiar de excitabilidade neuronal, o que levaria a uma depressão cortical alastrante, mecanismo semelhante ao que se pensa ocorrer nas auras de enxaqueca.14

Os fatores desencadeantes dos episódios e o seu momento de instalação não estão bem esclarecidos. Foi descrito um caso de ocorrência desta síndrome no período pós-operatório imediato15 de uma doente submetida a remoção de metástase cerebral, submetida previamente a radioterapia. Não há segura suscetibilidade genética estabelecida, mas alguns autores referem uma possível associação à mutação S218L do gene CACNA1A, relacionado com a síndrome de hemiconvulsão-hemiplegia-epilepsia (SHHE), que partilha algumas características clínicas da SMART.5

O tratamento adequado não está, também, esclarecido, privilegiando-se o tratamento sintomático.10 O uso de anticonvulsivantes tem sido preconizado quando estão presentes crises epilépticas ou por analogia com os mecanismos migrainosos. O verapamil e o propranolol têm sido usados, por extrapolação da profilaxia de enxaqueca, com descrição de melhoria da cefaleia.11 A administração de corticóide tem como racional endereçar os infiltrados inflamatórios perivasculares e a proliferação vascular que se julgam poder estar na génese de edema cortical transudativo.11

Pela raridade da síndrome, na literatura apenas se encontram publicados casos clínicos ou revisão de um pequeno número de casos sobre esta patologia. Em 2015 foram contabilizados em 42 por Zheng et al.6 A maioria dos autores descreve uma recuperação completa dos doentes com este diagnóstico, podendo demorar meses, no entanto nalguns casos, a recuperação pode ser extremamente lenta ou incompleta.10 O dano neuronal secundário, com aspetos imagiológicos de necrose laminar cortical, poderá explicar a recuperação incompleta de alguns doentes. Embora o quadro seja geralmente monofásico, alguns doentes podem apresentar recidiva dos sintomas meses mais tarde.

No caso descrito, o diagnóstico foi estabelecido atendendo à clínica da doente, alterações na RM cerebral e história prévia de irradiação cerebral holocraniana. A RM cerebral permitiu excluir eventos isquémicos/hemorrágicos e confirmar as alterações imagiológicas características. Atendendo a que se trata de um diagnóstico de exclusão, é fundamental a realização de 1) eletroencefalograma (EEG) para excluir estado de mal não convulsivo e edema cortical ictal8; 2) estudo vascular para excluir evento isquémico cerebral; 3) punção lombar para excluir encefalite infeciosa/autoimune/para-neoplásica ou infiltração carcinomatosa.

Tendo em conta a apresentação clínica e imagiológica, foram considerados como hipóteses de diagnóstico diferencial:

1) estado de mal não-convulsivo, excluído pela ausência de automatismos/estereotipias clínicas, pela ausência de atividade paroxística ou periódica no EEG e pela não-modificação após desafio terapêutico com antiepiléptico;

2) encefalite infeciosa ou autoimune, desfavorecidas pela ausência de envolvimento da substância branca, pela normalidade do LCR e pela evolução clínico-imagiológica favorável na ausência de terapêutica dirigida;

3) enxaqueca com aura atípica / síndrome de transient headache and neurologic deficits with cerebrospinal fluid lymphocytosis (HaNDL), excluída pela ausência de história familiar ou pessoal prévias, pelo padrão citoquímico inocente do LCR e pelo aspeto imagiológico consolidado e atípico;

4) acidente vascular cerebral (AVC) com hipóxia laminar cortical, desfavorecido pela instalação subaguda, flutuação sintomática na ausência de lesão esteno-oclusiva dos grandes vasos, captação laminar de contraste e ausência de necrose hemorrágica do córtex ou extensão subcortical;

5) posterior reversible encephalopathy syndrome (PRES), excluída pela inexistência dos precipitantes tensionais ou tóxico-metabólicos típicos, pelo envolvimento imagiológico assimétrico e pela ausência de envolvimento da substância branca na RM;

6) citopatia mitocondrial com encefalopatia, acidose lática e episódios semelhantes a AVC (mitochondrial encephalomyopathy, lactic acidosis, and stroke-like episodes - MELAS), desfavorecida pela idade e ausência de extensão subcortical na imagem;

7) encefalite de Rasmussen / síndrome de hemiconvulsão-hemiplegia-epilepsia (SHHE), excluída pela idade de apresentação atípica e ausência de evidência clínica ou eletroencefalográfica de crise;

8) recidiva tumoral e/ou carcinomatose pial, excluídos pelo padrão inocente do LCR, com estudo anátomo-patológico normal, e pela melhoria espontânea;

9) encefalopatia rádica diferida convencional, desfavorecida pela ausência de edema / lesões desmielinizantes subcorticais («diferida precoce») ou de vasculopatia / isquemia / necrose tecidular estabelecida e persistente. Na Tabela 1 podem ser encontrados os diagnósticos diferenciais da síndrome SMART.

Esta síndrome incomum deve, assim, ser equacionada no diagnóstico diferencial de défices neurológicos focais e transitórios, em todos doentes com antecedentes de radioterapia cerebral.

Existem ainda muitos aspetos a esclarecer, nomeadamente a etiologia da síndrome SMART, o que poderá ajudar a comunidade científica a encontrar uma forma adequada de tratar e, eventualmente, prevenir a sua ocorrência.

 

REFERÊNCIAS

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Responsabilidades Éticas

Conflitos de Interesse: Os autores declaram a inexistência de conflitos de interesse na realização do presente trabalho.

Fontes de Financiamento: Não existiram fontes externas de financiamento para a realização deste artigo.

Confidencialidade dos Dados:  Os autores declaram ter seguido os protocolos da sua instituição acerca da publicação dos dados de doentes.

Consentimento: Consentimento do doente para publicação obtido.

Proveniência e Revisão por Pares: Não comissionado; revisão externa por pares.

 

Ethical Disclosures

Conflicts of interest: The authors have no conflicts of interest to declare.

Financing Support: This work has not received any contribution, grant or scholarship

Confidentiality of Data: The authors declare that they have followed the protocols of their work center on the publication of data from patients.

Patient Consent: Consent for publication was obtained.

Provenance and Peer Review: Not commissioned; externally peer reviewed.

 

© Autor (es) (ou seu (s) empregador (es)) 2019. Reutilização permitida de acordo com CC BY-NC. Nenhuma reutilização comercial.

© Author(s) (or their employer(s)) 2019. Re-use permitted under CC BY-NC. No commercial re-use.

Correspondence / Correspondência:

Marli Cruz – marli.cruz@hospitaldaarrabida.pt

Departamento de Medicina, UCI e Urgência, Hospital da Luz – Arrábida, Vila Nova de Gaia, Portugal

Praceta de Henrique Moreira, 150

4400-346 Vila Nova de Gaia, Portugal

 

Received / Recebido: 01/02/2019

Accepted / Aceite: 09/06/2019

 

Publicado / Published: 11 de Dezembro de 2019

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