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Medicina Interna

versão impressa ISSN 0872-671X

Medicina Interna vol.27 no.1 Lisboa mar. 2020

https://doi.org/10.24950/rspmi/Editorial/1/2020 

EDITORIAL / EDITORIAL

A História Clínica

The Clinical Examination

 

João Sá
https://orcid.org/0000-0002-2466-7163

Editor-Chefe

Hospital da Luz, Lisboa, Portugal

 

“It is much more important to know what sort of a patient has a disease than what a sort of disease the patient has”

William Osler

 

Mão amiga fez-me chegar um artigo de revisão intitulado Reinvigorating the clinical >examination for the 21st century.1 Os autores, internistas, intensivistas e cardiologistas exercendo no Reino Unido e nos Estados Unidos da América, pretenderam recordar a importância do encontro clínico – a consulta em ambulatório ou no internamento – as virtudes e vantagens da história e do exame objectivo na criação de uma relação humana e terapêutica e na extracção de uma ideia diagnóstica que fundamente o pedido de estudos complementares e um tratamento eficaz em função dos objectivos propostos.

Os factores que têm justificado a redução do tempo que médicos utilizam no contacto com os doentes são de natureza diversa. Entre alguns outros recordem-se os períodos de consulta limitados (por vezes de modo escandaloso e indigno), objectivos de “produção” em termos de actos e de doentes recebidos, equipas médicas de dimensão modesta e insuficiente (a realidade da Medicina Interna em muitas instituições hospitalares nacionais), registos exigentes em processos clínicos electrónicos dificilmente navegáveis, um contingente dilatado de relatórios solicitados por entidades financiadoras, tempo variável alocado à discussão de oportunidades e efeitos de estudos de imagem e laboratório que têm surgido em número e sofisticação crescentes.

E, no entanto, o encontro entre doente e médico é uma espécie de “início de tudo” em Medicina. Recordo os tempos da escola médica e as diversas etapas dos internatos. A história clínica era intensa e extensamente ensinada e treinada (leitura e emenda de erros ou imprecisões). Recordo um estágio do Internato Geral no Serviço de Cirurgia do Hospital do Desterro. A directora de Anestesiologia (Dra. Marieta Soveral Rodrigues, que tenho o privilégio de encontrar com alguma frequência) não autorizava qualquer >acto anestésico sem que no processo clínico constasse história e diagnóstico. Tratava-se de uma atitude básica de boa prática, de segurança do doente (e dos médicos) numa época em que a patient safety ainda não era moda. Mesmo nos serviços de Cirurgia Geral havia um ou mais dias de leitura de histórias complementada pela decisão cirúrgica e a escolha de abordagens e técnicas.

Fui interno do Internato Complementar (especialidade) no Serviço de Medicina do Hospital de Santa Marta que tinha como director o Dr. Carlos Henrique George. A exigência sobre a qualidade técnica e literária da narrativa clínica atingia níveis impensáveis nos nossos dias. A leitura era quotidiana (excepto aos Sábados, dia da reunião de serviço…) na presença do director e de dois assistentes, um dos quais chefe de equipa. Era um exercício fundamental em ambiente de tensão pedagógica. Após a exposição da anamnese era solicitado ao interno um compromisso diagnóstico. De facto existe prova segura de que se conseguem extrair certezas acerca da natureza das doenças com base na entrevista e no escrutínio de sintomas. Seguia-se a leitura do exame físico e do resumo posto o que eram elencados um ou mais diagnósticos (com alguma formalidade esta fase designava-se por “Lê-se e admite-se”, de certa forma aquilo que hoje se designa por debriefing). O pedido de estudos complementares e a proposta terapêutica vinham depois. Em visita subsequente, e perante diagnóstico diferente do admitido inicialmente (evolução clínica, resultados de testes), implementava-se a correcção necessária (“Revê-se e admite-se”).

Nessa época as provas de concurso para obtenção de lugar num quadro hospitalar incluíam, para além da etapa curricular, da clínica e da avaliação teórica uma designada “prova de caras” onde o candidato realizava a história clínica a um doente sorteado na ocasião na presença de todos os elementos do júri que tomavam notas para discussão posterior. O julgamento sobre a qualidade da entrevista ao doente e a exemplaridade e excelência dos gestos semiológicos era intenso, por vezes mesmo demolidor.

Reconheça-se que a actividade assistencial hospitalar nessa época não conhecia o ritmo da que se verifica nos nossos dias. Mas este facto de modo algum poderá servir para reduzir a importância do exame clínico de cabeceira, fundamental para que se consiga valorizar a intermediação criativa e frequentemente decisiva dos estudos de laboratório e de imagem. E, sublinhe-se, tem importância reconhecida na construção de uma boa relação médico doente o que lhe confere uma dimensão cerimonial.

Assim o ensino do encontro clínico mantém completa actualidade e devem as escolas médicas considerá-lo uma prioridade. Forte responsabilidade a dos educadores médicos nos ambientes de pré e pós-graduação onde é fundamental ensinar a olhar, a ouvir, a perguntar, a relacionar e integrar, a concluir e a planear. Os momentos iniciais de uma primeira consulta envoltos nalgum mistério – não sabemos que é nem o que pretende – serão os mais difíceis. A atitude do clínico, de interesse real e de envolvimento (importância do olhar para a figura e da concentração) permitem desbloquear a reserva inicial do doente, facilitando o acesso ao núcleo de problemas que o afligem. Os cenários são diversos: o doente confuso, o vago, aquele que parece mudar a narrativa, o idoso, o afásico, o deficiente auditivo, o amaurótico, o que carrega dependência de substâncias, o que manifesta hostilidade, o que é acompanhado por familiares que tendem a monopolizar o protagonismo, o humilde, o poderoso, o que chora, o que simula…2 E no exame físico o respeito, a delicadeza e a intenção dos gestos num momento em que existe intrusão do espaço próximo ou privado de cada um, para muitos os 60 cm à volta do corpo, uma rara prerrogativa que as sociedades conferem a médicos e outros profissionais de saúde.

A imagem do médico sentado ao lado do seu doente repousado num leito de hospital, em presença e comunhão, conserva contemporaneidade e continuará a marcar no futuro, por mais sofisticada que possa vir a ser a automatização de processos, a robotização e a aplicação da inteligência artificial no exercício da clínica.

 

REFERÊNCIAS

1.      Garibaldi BT, Zaman J, Artandi MJ, Elder AT, Russel SW. Reinvigorating the clinical examination for the 21st century. Pol Arch Intern Med. 2019;129:907-912. doi:10.20452/pamw.15073.         [ Links ]

2.      Orient JM. The Interview. In: Orient JM, editor. Sapira’s Art & Science of Bedside Diagnosis. Philadelphia: Lippincott, Williams and Wilkin; 2005. p.17-43.

 

Publicado/Published: 17 de Março de 2020

 

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