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Medicina Interna

versão impressa ISSN 0872-671X

Medicina Interna vol.27 no.1 Lisboa mar. 2020

https://doi.org/10.24950/CC/86/19/1/2020 

CASOS CLÍNICOS / CASE REPORTS

 

Tétano: Ainda uma Ameaça: Relato de Caso Clínico

Tetanus: Still a Threat: Clinical Case Report

 

Catarina Carvalho
https://orcid.org/0000-0001-9459-2155

Alexandra Albuquerque
https://orcid.org/0000-0001-6616-9667

Fátima Campante
https://orcid.org/0000-0002-8804-4213 

 

Serviço de Medicina Interna, Centro Hospitalar Barreiro Montijo, Barreiro, Portugal  

 

Resumo:

O tétano é uma doença potencialmente fatal, prevenível através da vacinação, causada por neurotoxinas produzidas pelo Clostridium tetani, que cessam a neurotransmissão inibitória. Apresenta uma tríade sintomática: rigidez, espasmos musculares e disfunção autonómica. A abordagem terapêutica é essencialmente sintomática, englobando: limpeza da ferida, sedação, bloqueio neuromuscular, suporte ventilatório e antibioterapia. Apresentamos o caso clínico de uma mulher de 79 anos, com vacina antitetânica desatualizada, admitida em contexto de ferida da face anterior do punho esquerdo, sem profilaxia com imunoglobulina antitetânica. Reavaliada na urgência 5 dias após o evento, com trismo, opistótono, falência respiratória e disautonomia. Procedeu-se a limpeza da ferida, administração de imunoglobulina e antibioterapia, sedação, ventilação mecânica e transferência para uma unidade de cuidados intensivos. Trata-se de um caso sem profilaxia, provavelmente evitável, mostrando a ameaça que o tétano representa, o que deve alertar os profissionais de saúde para a situação imunológica e cumprimento do plano nacional de vacinação.

 

Palavras-chave: Clostridium tetani; Espasmo; Tétano/complicações; Tétano/tratamento farmacológico; Trismo.

 

Abstract:

Tetanus is a potentially fatal disease, preventable through vaccination, caused by neurotoxins produced by Clostridium tetani, which cease inhibitory neurotransmission. It presents a symptomatic triad: stiffness, muscular spasms and autonomic dysfunction. The therapeutic approach is essentially symptomatic, including wound cleaning, benzodiazepines, neuromuscular blockade, ventilatory support and antibiotic therapy. We present the clinical case of a 79-year-old female patient, with outdated tetanus vaccine, admitted in the context of an injury to the left wrist, without prophylaxis with tetanus immunoglobulin. Reassessed in the emergency 5 days after the event with trismus, opisthotonos, respiratory failure and dysautonomia. We proceeded to wound cleaning, immunoglobulin and antibiotic therapy administration, sedation, ventilatory support and we transferred the patient to an intensive care unit. It was a case without prophylaxis, showing that tetanus is still a threat that should alert us all to the immunological situation and compliance with the national vaccination plan.

 

Keywords: Clostridium tetani; Tetanus/complications; Tetanus/drug therapy; Spasm; Trismus.

 

Introdução

O tétano é uma doença do sistema nervoso potencialmente fatal,1 capaz de ser prevenida através da vacinação.2 É uma importante causa de morte nos países em desenvol-vimento, estimando-se entre 800 mil e 1 milhão de mortes anualmente e uma taxa de mortalidade superior a 50%,3 afetando doentes sem a imunidade adequada.2

É causado por neurotoxinas produzidas pelo Clostridium tetani, um habitante natural do solo, encontrado nas fezes humanas e animais domésticos.4 A porta de entrada é geralmente uma ferida puntiforme ou laceração que contacta com os esporos dos bacilos,2 difíceis de cultivar, o que implica um diagnóstico essencialmente clínico.3 Apresenta uma tríade sintomática: rigidez, espasmos musculares e, se grave, disfunção autonómica.3

O tratamento é baseado nos seguintes princípios: sedação para controlo dos espasmos e disfunção autonómica; desbridamento cirúrgico e controlo de foco com antibioterapia; neutralização da toxina; suporte em cuidados intensivos com bloqueio neuromuscular e ventilação mecânica.5

Caso Clínico

Apresentamos o caso de uma mulher de 79 anos, leucodérmica, com antecedentes pessoais de hipertensão arterial essencial, anemia crónica e diabetes mellitus não insulino-tratada, medicadas em conformidade. Cinco dias antes da admissão hospitalar sofre uma queda em contexto de acidente com portão. Tem traumatismo do membro superior esquerdo do qual resultou fratura da extremidade distal do rádio e pequena ferida incisa da face anterior do punho, sendo submetida a desinfeção, limpeza e colocação de tala gessada; iniciou antibioterapia com amoxicilina e ácido clavulânico, que cumpriu em ambulatório. Neste episódio não foi questionada relativamente a vacina do tétano, que se encontrava desatua-lizada, nem foi administrada imunoglobulina anti-tetânica.

 

Tabela 1: Gasimetria arterial e análises laboratoriais

 

Regressou novamente ao serviço de urgência por rigidez súbita do pescoço e maxilar correspondentes a trismo, produção de secreções que não conseguia mobilizar e sudorese profusa, condicionando dificuldade respiratória e saturações periféricas de oxigénio de 74% em ar ambiente. Apresentou uma taquicardia sinusal de 130 batimentos por minuto, gasimetria arterial com hipoxemia e acidose láctica e análises laboratoriais com aumento importante de parâmetros inflamatórios.

Após administração de diazepam e colocação de máscara de oxigénio de alta concentração, verificou-se uma ligeira melhoria da rigidez, bem como das saturações periféricas que subiram para 92%. Foi feita revisão da lesão no punho onde se verificou ferida incisa de cerca de 1 cm conspurcada, com exsudado purulento e saída de pus com compressão e exposição de tendões, sendo realizada limpeza cirúrgica.

Assumindo-se tétano, foi administrada imunoglobulina antitetânica e antibioterapia com metronidazol. Apesar destas medidas, a situação clínica da doente continuou a agravar-se, com falência respiratória e opistótono ainda durante a observação na urgência, pelo que se decidiu por entubação orotraqueal, ventilação mecânica invasiva e bloqueio neuromuscular. A doente foi transferida cerca de 6 horas após a admissão para uma Unidade de Cuidados Intensivos de outro hospital por não haver vagas disponíveis no centro hospitalar de admissão.

 

Tabela 2: Gravidade do Tétano - classificação Ablett

 

 

Figura 1: Ferida incisa face anterior do punho esquerdo

 

Nesta unidade passou por diversas complicações infeciosas, com reduzida resposta à terapêutica dirigida, o que levou a um internamento de quase 3 meses, estado de dependência grave e realização de traqueostomia. Regressou ao hospital de origem, para a enfermaria de Medicina Interna, onde foi ainda submetida a gastrostomia endoscópica percutânea para alimentação e tentativa de reabilitação. Contudo a doente não recuperou, tendo vindo a falecer após mais 2 meses de internamento.

 

Figura 2: Opistótono

 

Discussão

Embora uma doença cada vez menos frequente nos países desenvolvidos, o tétano continua a ser uma doença presente no nosso país, dado que a imunização prevista no Plano Nacional de Vacinação (PNV) nem sempre é cumprida, como no caso descrito.

O bacilo produz duas neurotoxinas: a tetanolisina que conduz a danos localizados no tecido ao redor da lesão, criando as condições ideais para a multiplicação; e a tetanospasmina que leva ao síndrome clínico.3 Esta é uma neurotoxina potente, que penetra nos terminais nervosos junto aos músculos infetados e que impede a libertação do neurotransmissor inibitório ácido gama-aminobutírico (GABA) para a fenda sináptica. Os neurónios motores ficam sem controlo inibitório, mantendo descargas excitatórias que levam a espasmos motores.5,6 Os seus efeitos são exercidos na medula espinhal, tronco encefálico, nervos periféricos, junções neuromusculares e diretamente nos músculos.4

Os sintomas mais precoces são a rigidez do pescoço, odinofagia e dificuldade na abertura da boca. Se restritos, trata-se de tétano localizado, uma forma menos grave com menor quantidade de toxina em circulação.3 No tétano ge-neralizado o envolvimento dos músculos faciais leva ao trismo (risus sardonicus) enquanto que o envolvimento do tronco a dorso leva ao opistótono. Os espasmos são muito dolorosos e podem ser espontâneos ou devido a estimulação como barulho, luz, toque ou emoção. O envolvimento dos músculos respiratórios pode levar a asfixia e o espasmo laríngeo a obstrução da via aérea, sendo a falência respiratória a principal causa de morte.6 Entre os distúrbios autonómicos encontram-se a pressão arterial lábil, taquicardia, pirexia e sudorese profusa.4

Existem duas janelas temporais: o período de incubação pode variar entre 24 horas e 26 dias,3 que reflete a distância percorrida pela neurotoxina no sistema nervoso, podendo estar relacionada com a quantidade de neurotoxina libertada4; e o período de instalação (tempo desde o primeiro sintoma até ao primeiro espasmo generalizado),7 que varia entre 1 a 7 dias.2 Quanto mais curtos estes períodos, pior o prognóstico e maior a agressividade.7 Verificamos que, desde a contaminação até ao aparecimento dos primeiros sintomas, decorreu apenas um período de 5 dias, demonstrando assim a agressividade da infeção, com a doente a encontrar-se já em grau III na admissão, segundo a classificação de Ablett.8

As benzodiazepinas são a terapêutica standard no controlo dos espasmos e na sedação. O bloqueio neuromuscular com agentes curarizantes atua também no controlo de espasmos e distúrbio autonómico.9 A porta de entrada deve ser limpa e desbridada atempadamente; a antibioterapia previne a proliferação do C. tetani, sendo recomendados a penicilina G ou metronidazol. A administração intramuscular de imunoglobulina antitetânica deve ser precoce, entre 3000 a 6000 unidades, de modo a evitar a entrada da toxina no sistema nervoso.10 Está recomendada a infiltração de parte da imunoglobulina em torno da ferida, embora a sua eficácia não esteja comprovada.11 Os doentes devem também ser colocados num ambiente calmo e escuro para evitar estimulação desnecessária. O controlo da disautonomia pode ser tentado com labetalol, morfina, clodinina4 e sulfato de magnésio.10 Com este caso pretendemos mostrar que o tétano continua a ser uma ameaça, um desafio diagnóstico e lembrar que é prevenível. Tem características patognomónicas e fáceis de identificar, o que pode condicionar uma abordagem rápida para um tratamento célere.

 

REFERÊNCIAS

1.      Moynan D, O’Riordan R, O’Connor R, Merry C. Tetanus – a rare but real threat. IDCases. 2018;12:16-17. doi: 10.1016/j.idcr.2018.02.004.

2.      Chalya PL, Mabula JB, Dass RM, Mbelenge N, Mshana SE, Gilyoma JM. Ten-year experiences with tetanus at a Tertiary hospital in Northwestern Tanzania: A retrospective review of 102 cases. World J Emerg Surg. 2011;6:20. doi: 10.1186/1749-7922-6-20.         [ Links ]

3.      Cook TM, Protheroe RT, Handel JM. Tetanus: a review of the literature. Br J Anaesth. 2001; 87:477-87.         [ Links ]

4.      Thwaites CL. Tetanus. Pract Neurol.2002; 3:130–7.

5.      Bjørnar H. Tetanus: pathophysiology, treatment, and the possibility of using botulinum toxin against tetanus-induced rigidity and spasms. Toxins. 2013;5:73-83. doi: 10.3390/toxins5010073.         [ Links ]

6.      Farrar JJ, Yen LM, Cook T, Fairweather N, Binh J, Parru CM. Tetanus. J Neurol Neurosurg Psychiatry. 2000;69:292–301.

7.      Ogunrin OA. Tetanus – a review of current concepts in management. Benin J Postgrad Med. 2009; 46-61. doi:11:10.4314/bjpm.v11i1.48828

8.      Ablett JJL. Analysis and main experiences in 82 patients treated in the Leeds Tetanus Unit. In: Ellis M, editor. Symposium on tetanus in Great Britain. Boston: Leeds General Infirmary; 1967. p.1–10.

9.      Okoromah CN, Lesi FE. Diazepam for treating tetanus. Cochrane Database Syst Rev. 2004;1:CD003954.         [ Links ]

10.    Chaturaka R, Deepika F, Senaka R. Pharmacological management of tetanus: an evidence-based review.  Crit Care. 2014;18:217. doi: 10.1186/cc13797.         [ Links ]

11.    American Academy of Pediatrics. Summaries of Infection Diseases. In: Kimberlin DW, Brady MT, Jackson MA, Long SS, editors. Red Book: 2015 Report of the Committee on Infectious Diseases. 30th ed. Elk Grove Village:AAP; 2015. p.773-8.         [ Links ]

 

Responsabilidades Éticas

Conflitos de Interesse: Os autores declaram a inexistência de conflitos de interesse na realização do presente trabalho.

Fontes de Financiamento: Não existiram fontes externas de financiamento para a realização deste artigo.

Confidencialidade dos Dados: Os autores declaram ter seguido os protocolos da sua instituição acerca da publicação dos dados de doentes.

Consentimento: Consentimento do doente para publicação obtido.

Proveniência e Revisão por Pares: Não comissionado; revisão externa por pares.

 

Ethical Disclosures

Conflicts of interest: The authors have no conflicts of interest to declare.

Financing Support: This work has not received any contribution, grant or scholarship

Confidentiality of Data: The authors declare that they have followed the protocols of their work center on the publication of data from patients.

Patient Consent: Consent for publication was obtained.

Provenance and Peer Review: Not commissioned; externally peer reviewed.

 

© Autor (es) (ou seu (s) empregador (es)) 2019. Reutilização permitida d e acordo com CC BY-NC. Nenhuma reutilização comercial.

© Author(s) (or their employer(s)) 2019. Re-use permitted under CC BY-NC. No commercial re-use.

 

Correspondence / Correspondência:

Catarina Carvalho – anacatccarvalho@gmail.com

Serviço de Medicina, centro Hospitalar Barreiro Montijo, Barreiro, Portugal

Avenida Movimento das Forças Armadas, 2834-003, Barreiro

 

Received / Recebido: 24/04/2019

Accepted / Aceite: 02/11/2019

 

Publicado / Published: 17 de Março de 2020

 

 

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