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Medicina Interna

Print version ISSN 0872-671X

Medicina Interna vol.27  supl.1 Lisboa May 2020

https://doi.org/10.24950/rspmi/Editorial/COVID19/S/2020 

EDITORIAL / EDITORIAL

Não Sabemos… Mas Acreditamos

We Do Not Know… But We Believe

 

João Sá
https://orcid.org/0000-0002-2466-7163

Editor-Chefe

Hospital da Luz, Lisboa, Portugal

 

Não sabemos como começou, mas sabemos onde. Não sabemos quando e como acabará.

Sabemos como se pode manifestar, mas a falta de especificidade da expressão clínica justifica a condição de suspeitos de muitos que por outros motivos estão febris, tossem ou respiram com dificuldade. Isto porque não sabemos.

Dispomos de um teste de diagnóstico em que não depositamos confiança absoluta. Por isso repetimos. Não sabemos.

Não sabemos como tratar. Existem linhas de investigação e estão lançados diversos estudos, de observação a maioria porque, neste contexto de ameaça difusa potencialmente letal, a existência de grupos de controlo tratados de modo convencional pode violar os princípios da Ética. E assim poderemos continuar a não saber.

Confrontados com uma situação nunca vivida sentimos que na ausência de argumentos terapêuticos eficazes não evoluímos desde 1918 (a Espanhola).

Conhecemos rapidamente a intimidade do agente (o genoma) mas não conseguimos neutralizá-lo.

Se teremos a bênção da imunidade perpétua também não sabemos.

Suspeitamos da agressividade, sabemos que se pode morrer pela infecção mas presumimos que a inflamação exacerbada também pode ser letal. Mas não sabemos ao certo.

Haverá uma segunda vaga epidémica no próximo Inverno? Alguns juram que sim. A alternativa poderá ser um convívio armado com uma doença (em parte) controlável que veio para ficar como tantas outras (tuberculose, doença VIH)? Eventual-mente, mas não sabemos.

Estaremos expostos a novas pandemias? É possível. Lembremo-nos da gripe sazonal a Influenza, que temos presente, mas nem sempre a respeitamos.

Desde o pós-Guerra Mundial (a Segunda) ultrapassámos a gripe Asiática (H2N2, 1957), a de Hong-Kong (H3N2, 1968), a cólera (entre nós, país pobre da Europa, 1971 e 1974), a SARS-CoV1 (2002), a H1N1 (2009), a MERS (2012), a febre hemorrágica de Ébola (2014).

Irá ser estabelecida uma reserva estratégica de dispositivos de protecção, de diagnóstico, monitorização e terapêutica que possam ser colocados em prontidão quase imediata em surtos futuros? Sabe-se que foi criada em França depois das ameaças da década passada, mas posteriormente malcuidada e desbaratada. Não sabemos.

Sabemos que a contagiosidade é elevada e que a reclusão domiciliária de comunidades e países permite contrariá-la. Mas ainda assim corremos o risco de nos transformarmos em vectores, desconhecendo que o somos. Mesmo testados negativamente hoje poderemos ser contaminados amanhã. Assim suspeitos instala-se a impressão, para não dizer o sentimento, de desconfiança em nós próprios e dos que nos rodeiam, e dos estranhos com quem estamos a distância respeitosa, nos locais de encontro social permitidos - abastecimentos de alimentos, de medicamentos e notícias (os jornais e as revistas). Não sabemos quem são os outros e por isso trocamos de passeio evitando cruzamentos que podem ser perigosos. Ninguém é responsável, a culpa é do agente e da sua imprevisibilidade.

O respeito pelas distâncias preventivas faz com que não saibamos como nos relacionar em família, com amigos e companheiros.

Pelo menos por enquanto quebrou-se o hábito de reuniões de toda a família, um momento sempre precioso. Até quando? Não sabemos.

E a comunicação com os nossos doentes conhecerá um novo figurino imposto pela distância? As tele e vídeo-consultas, ferramentas já instaladas e tão úteis que são, conhecerão um protagonismo insuspeitado há 2 meses atrás?

Receamos que os nossos filhos e os nossos netos desconheçam o sentido da felicidade, da suficiência económica e da dimensão social da existência. Por eles tememos no receio de um futuro incerto. Mais uma ameaça.

As manifestações visíveis do afecto ficarão arredadas por muito tempo, uma violência cultural e social imensa para muitos povos, nomeadamente os do Sul da Europa? Não sabemos.

Que acontecerá às nossas surtidas gastronómicas e culturais, tempos de encontro e partilha, de conhecimento dos outros e de tudo? Não sabemos.

Poderemos dançar livremente a menos de 2 metros de distância (dançar tem as virtudes da expressão emocional não contida e um valor terapêutico)?

Como serão futuramente concebidos e construídos os espaços privados e públicos?

Em modelos gregários tradicionais ou nos que facilitam o distanciamento, o isolamento e a solidão?

Poderemos viajar? Possivelmente, mas em grupo limitado (cinco pessoas?) na demanda de destinos antes seguros, hoje incertos.

E nos museus será um observador por obra de arte? Ou por cada dependência dos espaços expositivos?

E na música ao vivo como se adaptarão a solenidade dos clássicos e o ruído da metálica a novos figurinos de assistência que poderão minimizar ou anular as expressões de emoção e comunhão (a música dá-nos prazer e faz-nos mais felizes)? Desconhecemos.

Poderemos assistir e participar em reuniões e congressos científicos e profissionais como é nosso hábito, e disfrutar dos “congressos de corredor” tão úteis social e profissionalmente? Talvez não como até agora, mas não sabemos.

Sabemos o que se passa na Líbia, no Yémen, na mais recente cidade-mártir da Síria, Idlib? Sabemos dos refugiados? Não, deixaram de ser eventos de primeira página.

A não ser que contendores e vítimas se infectem maciçamente e passem a constituir ameaça. E assim todos serão inimigos.

Receamos os efeitos do colapso da economia cuja dimensão e intensidade antevemos. Sabemos quem suporta já e quem vai assumir os custos num futuro próximo. Mas não sabemos se sairá criada uma nova ordem Mundial mais justa no trabalho e na partilha do rendimento (trata-se de empurrar o coeficiente de Gini para o valor 0, ou próximo dele).

Não sabemos o que acontecerá às lideranças políticas incompetentes e acéfalas. Esperamos com ansiedade as alternativas que teimam em não surgir num horizonte que imag-inamos regenerador e luminoso.

Não sabemos o que acontecerá às organizações internacionais que exibem fragilidades quotidianas. Mas imaginamos novas instâncias supranacionais sólidas que nos assistam eficazmente na neutralização das ameaças e na resolução das questões que se arrastam por décadas, pelo tempo de muitas vidas, sem solução à vista.

Mas acreditamos e sabemos que a pandemia vai ser vencida mais tarde ou mais cedo, tal como aconteceu com as outras. Será extinta ou conhecerá um ocaso puro, simples e definitivo.

Os sinais positivos são muitos. Ousa-se afirmar que a doença, não obstante a destruição civilizacional e as vítimas que se lamentam, abre uma janela de oportunidades.

Neste passo recordo Pessoa “O valor das coisas não está no tempo que elas duram, mas na intensidade com que acontecem. Por isso existem momentos inesquecíveis, coisas inexplicáveis e pessoas incomparáveis”.

A informação dos meios de comunicação generalistas dá-nos a conhecer o que se passa em terras distantes permitindo o conhecimento da dimensão do problema, pressionando favoravelmente decisores em todos os cantos do planeta.

A publicação técnica, muito opinativa e de consistência científica ainda frágil neste momento, mesmo assim permite construir edifícios fisiopatológicos que fundamentarão um acervo terapêutico que adivinhamos próximo (fármacos, imunização).

Os laboratórios de investigação biomédica e os de produção de moléculas e substâncias entenderam tornar prioritária esta cruzada.

A epidemiologia está muito activa e desenha cenários que ajudarão políticos e planeadores definir uma vida diferente, um novo Mundo, melhor e mais seguro.

O conhecimento, de uma forma geral, atravessa uma época de expansão rápida, uma arma contra a paralisia que os medos induzem.

A escrita e a arte estarão a conhecer a criatividade que lhes é habitual nos momentos de crise profunda. Escondidas para já as obras, serão reveladas na época de distensão e de equilíbrio que se seguirá.

O pensamento filosófico, perturbado por tempos de tanta incerteza, estará a sofrer um impulso no sentido da criação de novos paradigmas e na reapreciação dos dogmas julgados imutáveis.

A Academia sobressaltou-se e reagiu com alarme e energia justificados, e contribuição pedagógica e científica certeira.

Diariamente somos confrontados com a imaginação de gestores e trabalhadores, no comércio e nas fábricas, que de um momento para o outro souberam mutar a sua actividade sobrevivendo e, mais do que isso, destinando o labor à causa dos doentes e seus cuidadores com os equipamentos e in-strumentos que acautelam a segurança.

Os exemplos de solidariedade são tantos e tão diversos que se torna difícil enumerá-los e destacá-los, mas são a prova de que as comunidades, o país, os portugueses souberam reagir em fé, sacrifício, entrega, determinação e uníssono a uma ameaça diferente de todas as pretéritas.

De dádiva e desinteresse não receberão lições médicos, enfermeiros, técnicos, assistentes operacionais, secretários e gestores que nos centros de saúde e nos hospitais, de modo espontâneo e intuitivo, de um dia para o outro procederam a mudanças radicais de organizações, estruturas, equipa-mentos e práticas afrontando os efeitos da pandemia SARS-CoV-2. Nesta edição da Medicina Interna ficam expostas as intervenções que equipas de internistas, intensivistas, infecciologistas e outros actores clínicos produziram com os resultados positivos que se podem apreciar hoje, ainda que a batalha não possa considerar-se vencida (a 27 de Abril Portugal tinha 24 027 casos confirmados, 995 internados, dos quais 176 em cuidados intensivos e 928 falecidos - taxa de letalidade 3,8%). E tiveram ainda a arte de arrastar as lideranças institucionais, locais, regionais e nacionais para a consciência da necessidade de investimento poderoso em saúde, de novas formas de financiamento, com um objectivo sagrado que se pode re-sumir numa palavra: a vida.

Destino um abraço forte de respeito, admiração e amizade aos que estão na frente.

 

Publicado/Published: 4 de Maio de 2020

 

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