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Medicina Interna

Print version ISSN 0872-671X

Medicina Interna vol.27  supl.1 Lisboa May 2020

https://doi.org/10.24950/rspmi/COVID19/A.Carvalho/CHUC/S/2020 

ARTIGOS DE OPINIÃO / OPINION ARTICLES

 

Internamento em Época de Pandemia: Indicações e Efeitos de Modelos Assistenciais de Geometria Variável

Hospitalization in Times of Pandemic: Indications and Effects of Care Models of Variable Geometry

 

Armando de Carvalho
https://orcid.org/0000-0003-2455-8781

Diretor do Serviço de Medicina Interna do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, Coimbra, Portugal

Professor Catedrático da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, Coimbra Portugal

 

Palavras-chave: Coronavirus; Infecção por Coronavírus; Hospitalização; Medicina Interna; Serviços Hospitalares.

Keywords: Coronavírus; Coronavirus Infection; Hospital Departments; Hospitalization; Internal Medicine.

 

A infeção pelo SARS-Cov-2 causou uma pandemia que veio por à prova os serviços de saúde em todo o mundo. Apesar de menos de 10% dos doentes necessitarem de internamento hospitalar e destes apenas cerca de 20% precisarem de cuidados intensivos, o número absoluto, por haver muitos casos em simultâneo, ameaça a capacidade de resposta dos hospitais.

A COVID-19 é uma entidade nova, ainda não comple-tamente conhecida, quer na sua fisiopatologia, quer nas suas consequências clínicas. É uma doença infeciosa, com tradução essencialmente respiratória, mas não só, poden-do atingir outros órgãos e sistemas (coração, rins, fígado, sangue, etc.), pelo que tem que ser vista como patologia sis-témica e, por isso, os doentes devem ser abordados de forma global, não podendo ser assumidos apenas por uma especialidade médica. A Medicina Interna desempenha, como não podia deixar de ser, um papel fundamental nesta pandemia e a sua ação tem sido e será fundamental.

Tudo isto obrigou a repensar a organização hospitalar, exigindo no imediato aquilo que até agora muitas vezes não passava de boas intenções anunciadas repetidamente, mas de difícil concretização: organizar o internamento em função dos doentes e não dos serviços e especialidades.

Tomando como exemplo o Centro Hospitalar e Univer-sitário de Coimbra - CHUC, o modelo de reorganização do internamento assentou na necessidade de ter um espaço diferenciado, quer em termos físicos, quer humanos, para o tratamento dos doentes com COVID-19. Nessa área estão em perfeita articulação a urgência, as enfermarias, os cuida-dos intermédios e intensivos, de modo a prestar atendimento e tratamento de forma global e integrada a todos os doentes com necessidade de cuidados hospitalares. Como especialidades nucleares estão a Medicina Interna, a Infeciologia, a Pneumologia (como já era habitual nos planos de contingên-cia para a gripe) e a Medicina Intensiva, com a colaboração doutras especialidades, médicas e cirúrgicas, quer na ocu-pação do seu internamento, quer na colaboração dos seus médicos.

O CHUC comporta os dois anteriores hospitais centrais - Hospitais da Universidade de Coimbra (HUC) e Hospital Geral - Covões (HG), este agora exclusivamente dedicado a COVID-19, enquanto os HUC se destinam a todos os outros casos, tendo apenas uma enfermaria do Serviço de Doenças Infeciosas para internamento de alguns doentes com COVID-19: Assim, há 260 camas para doentes com COVID-19, 226 para doentes “estáveis” e 34 para doentes críticos (no momento em que escrevo estão ocupadas 62 % estáveis e 21% críticos).

Logo que possível, passaram a testar-se para a infeção por SARS-CoV-2 todos os doentes a internar, sendo criadas enfermarias-tampão onde aguardam o resultado, dependendo deste o seu encaminhamento para as áreas COVID ou não-COVID. O Serviço de Medicina Interna manteve as 136 camas nos HUC e agregou mais duas enfermarias, uma do Serviço de Ginecologia e outra do Serviço de Gastrenterologia; foi reduzido o número de camas em cada enfermaria, para que os doentes tenham maior distância entre si e quatro das seis enfermarias estão dedicadas exclusivamente a doentes com patologia respiratória e teste COVID inicial negativo. As 68 camas do Serviço de Medicina Interna do HG foram destinadas a doentes com COVID-19, a que se somaram camas até agora atribuídas aos Serviços de Pneumologia, Cardiologia, Cirurgia e Ortotraumatologia.

Assim, a Medicina Interna é agora responsável pelo internamento geral da especialidade, por doentes suspeitos de infeção por SARS-CoV-2 com teste negativo, pela maioria dos doentes internados com COVID-19, pelas equipas de Medicina do Serviço de Urgência geral (nos HUC) e dedicado à COVID-19 (no HG), cedendo ainda médicos ao Serviço de Medicina Intensiva.

No internamento dedicado a COVID-19 no HG, as equipas médicas são lideradas pela Medicina Interna e incluem médicos das especialidades de Pneumologia e Infeciologia, com a participação doutras especialidades, de acordo com os doentes internados. No internamento de Medicina Interna, não-COVID, conta-se também com a colaboração doutras especialidades, quando necessário.

Para além do internamento hospitalar, que tem representado em Portugal menos de 10% dos cuidados aos doentes com COVID-19, a esmagadora maioria destes é tratada em casa, com apoio dos cuidados de saúde primários. A pandemia veio mostrar que todos somos necessários e que é fundamental uma articulação perfeita entre os diferentes níveis de cuidados, de saúde e entre as várias especialidades médicas, de acordo com as necessidades dos doentes…

Estamos, pois, perante uma nova realidade do internamento, no que diz respeito à sua organização em termos logísticos e de cuidados médicos. As camas estão atribuídas aos doentes com uma determinada patologia e não a serviços específicos, as equipas médicas estão organizadas de acordo com as necessidades dos doentes e são multidisciplinares. Afinal, aquilo que defendemos há muito tempo!

Se esta é a realidade atual, imposta pela pandemia, importa sobretudo considerar o que podemos daqui levar para o futuro. Como nos vamos reorganizar, tendo em conta aquilo que já defendíamos e que de certo modo esteve na base do plano atual, mas também a realidade duma pandemia que não vai acabar já e que serve para nos alertar para a necessi-dade de estar preparados para situações do mesmo género?

Ninguém duvida que o internamento deve ser gerido de acordo com as necessidades dos doentes, pelo que a alocação de camas aos Serviços tem que ser dinâmica, naquilo que alguns referem como geometria variável. Só assim haverá adaptação às necessidades de cada momento, de acordo com as circunstâncias, como foi agora o caso, ou como acontece todos os invernos por causa da gripe sazonal. Com este tipo de gestão deixaria de ser necessário um plano anual de contingência para as temperaturas extremas, porque tudo estaria já programado. Deixaria de haver um excesso de vagas não ocupadas nuns Serviços e falta de lugar para internar doentes noutros. Tudo isto parece óbvio, mas foi preciso uma pandemia para fosse aceite!

Para além da gestão dinâmica dos espaços de internamento é crucial mudar também a organização dos cuidados médicos. A realidade mostra-nos que na maioria dos casos os doentes não devem ser atribuídos somente a uma especialidade, ou internados exclusivamente a cargo dum determinado Serviço, mas antes têm que dispor do saber e da experiência de vários especialistas. Isso implica a constituição de equipas multidisciplinares, dedicadas especialmente a determinados grupos nosológicos, em que a Medicina Interna assumirá um papel primordial na integração dos dados e na gestão global do doente.

Esta pandemia dá-nos um contributo muito importante para a necessária reorganização dos nossos hospitais, preparando-os para os desafios do presente e do futuro, que incluem à cabeça o envelhecimento da população e a polipatologia que caracteriza já a maioria dos doentes, mas também as pandemias, de que este surto pode ser apenas o primeiro exemplo do século XXI.

Não é nova a proposta duma estrutura departamental e já existem várias experiências desse modelo, correndo-se o risco de serem mais formais do que funcionais. Também não é original propor a atribuição dos doentes à Medicina Interna, a quem caberá a liderança de todo o processo clínico. Igualmente se defende a ação dos internistas para além do seu Serviço, por exemplo na cogestão de doentes cirúrgicos. Mais recentemente, e como medida inovadora, está na ordem do dia a hospitalização domiciliária. É importante que estas ideias se transformem em ações e sejam aplicadas de forma organizada e com verdadeiro impacto na prática clínica. Não basta que formalmente se definam, ou mesmo se criem, se não estiverem efetivamente ao serviço dos doentes, prestando a cada um cuidados personalizados e do melhor nível.

A pandemia de COVID-19 veio evidenciar a utilidade da gestão integrada dos recursos e dos cuidados médicos, mas também a falta de hábito de nos organizarmos assim. Por isso, assistimos nalguns casos a uma distribuição pouco equitativa do trabalho, quer entre diferentes especialidades, quer mesmo entre os internistas.

Da experiência que colhemos desta pandemia, o que deve ficar como lição para o futuro é a demonstração de que é possível fazer diferente e melhor, de que é desejável apostar num internamento dinâmico e verdadeiramente centrado no doente. Devemos empenhar-nos para que não se perca este balanço inicial, para que não se recue para um modelo que há muito devia ter sido abandonado e para que não se fique pela formalização de departamentos que nada de essencial mudem.

Também deve ficar o exemplo da articulação entre os diferentes níveis de cuidados, com a saúde pública, a medicina geral e familiar e os hospitais a trabalharem em conjunto, com a mesma finalidade, o que tem sido essencial nesta pandemia. Mesmo que nem tudo esteja perfeito, fica demon-strado que é possível e desejável esta interligação e sinergia, indispensável ao bom funcionamento do sistema de saúde. Infelizmente, continuamos a ter dificuldade de colocação de alguns doentes com alta clínica, agora agravada pelos problemas surgidos em lares. De pouco servirá uma organização diferente do internamento hospitalar se existirem problemas a montante ou a jusante. Esta é uma questão nuclear que importa resolver.

Uma pandemia é, em si mesma, um evento mau. Mas até nas piores coisas podemos e devemos colher ensinamentos para o futuro, de modo a que depois da provação se renasça melhor e mais forte. É isso que desejamos e esperamos para os nossos hospitais e para nós próprios.

 

Responsabilidades Éticas

Conflitos de Interesse: Os autores declaram a inexistência de conflitos de interesse na realização do presente trabalho.

Fontes de Financiamento: Não existiram fontes externas de financiamento para a realização deste artigo.

Proveniência e Revisão por Pares: Comissionado; sem revisão externa por pares.

 

Ethical Disclosures

Conflicts of interest: The authors have no conflicts of interest to declare. Financing Support: This work has not received any contribution, grant or scholarship.

Confidentiality of Data: The authors declare that they have followed the pro-tocols of their work center on the publication of data from patients. Provenance and Peer Review: Commissioned; without externally peer re-viewed.

 

© Autor (es) (ou seu (s) empregador (es)) 2019. Reutilização permitida de acordo com CC BY-NC. Nenhuma reutilização comercial.

© Author(s) (or their employer(s)) 2019. Re-use permitted under CC BY-NC. No commercial re-use.

 

Correspondence/Correspondência:

Armando de Carvalho - aspcarv-alho@gmail.com

Diretor do Serviço de Medicina Interna do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra - Portugal

Professor catedrático da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, Coimbra - Portugal

Praceta Prof. Mota Pinto, 3000-075 - Coimbra

 

Received/Recebido: 23/04/2020

Accepted/Aceite: 24/04/2020

 

Publicado/ Published: 4 de Maio de 2020

 

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