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Medicina Interna

Print version ISSN 0872-671X

Medicina Interna vol.27  supl.1 Lisboa May 2020

https://doi.org/10.24950/rspmi/COVID19/J.L.PioAbreu/S/2020 

ARTIGOS DE OPINIÃO / OPINION ARTICLES

 

Comunicação Médico-Doente no Cenário COVID-19

Medical-Patient Communication in the COVID-19

 

José Luís Pio Abreu
https://orcid.org/0000-0001-9414-1143

Aposentado. Chefe de Serviço de Psiquiatria do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra. Professor Associado de Psiquiatria da Faculdade de Medicina Universidade de Coimbra, Coimbra, Portugal

 

Palavras-chave: Coronavírus; Infecção por Coronavírus; Pandemia; Relação Médico-Doente

Keywords: Coronavirus; Coronavirus  Infection; Pandemics; Physician-Patient Relations

 

Entre a vida e a morte

É interessante que todos os doentes saídos do internamento ou dos Cuidados Intensivos após tratamento ao COVID-19 não se cansem de elogiar os profissionais de saúde que os acompanharam. Profissionais que, vestidos de astronautas, eles mal os enxergaram, mas ficaram a saber o nome. Do lado dos astronautas, existe uma equipa que se complementa e apoia mutuamente, no meio de uma panóplia de tubos, sensores e monitores que se centram nos limites da vida daquele doente. Está ali um mundo de alta tecnologia que o leigo só conhece dos filmes de ficção. Só que a suposta ficção não se centra nas guerras planetárias, mas sim no suporte da vida do doente que ali está. Cirurgiões, anestesistas e enfermeiros estão familiarizados com a sua “nave espacial”, mas nunca refletiram demasiado na comunicação com os seus doentes, geralmente inconscientes. E, no entanto, ela domina tudo, a par do humanismo altruísta que perpassa por todos, cada um na sua função.

Neste cenário onde a tecnologia marca e muda os limites entre a vida e a morte, a comunicação está no toque que dá segurança, mesmo protegido por luvas, na palavra ou simples exclamação, no olhar que nunca se esconde, ou apenas na presença. Podemos não dar conta, mas tudo isso é o que liga o doente ao mundo. E é tudo quanto lhe importa. Há que tomar decisões e comunicá-las tanto quanto possível. Atento aos mais pequenos sinais, o doente incorpora-os na sua consciência que anda a viajar entre o sono e a vigília. Mas sabe que tem ali quem o possa ajudar ao mínimo problema. Essa é a sua família próxima e atenta. É uma família de empréstimo, mas também a que, na situação de isolamento no hospital, faz a ligação à sua família de sangue. Para os profissionais, o desafio é então duplo e, provavelmente, inédito. Não há experiência desta situação, pelo que teremos de recorrer à nossa intuição e humanidade. Podemo-nos deixar trair pela emoção e erro. Mas o que importa é fazer o melhor que podemos sem deixar nunca de apostar na esperança, mesmo que ela não seja provável. E, na maior parte das vezes, ganhamos a aposta.

 

O ritual comunicativo da consulta

Para ter chegado até aqui, outras decisões foram tomadas e outros médicos passaram pela vida do doente. O simples facto de poder contar com um médico, seja ele quem for, é vital. Teoricamente, é o médico de família, mas existe frequentemente mais alguém. “O meu médico, a minha médica”, é um dos mais preciosos bens. Dantes marcava-se a consulta. Agora telefona-se, e ter o contacto na mão, mesmo que este não se use, é ainda mais seguro do que um seguro de saúde (que, alias, oferece de presente um medico pessoal). Um amigo médico protege mais do que um santo protetor. Pode, no entanto, acontecer, neste estranho tempo, que o contacto anterior tenha sido feito por uma linha telefônica, do lado de lá da qual está um agente anónimo que indaga apenas algumas informações antes que uma decisão seja tomada. Mas a segurança só começa a existir quando um verdadeiro médico estiver presente.

Todos  reconhecemos  que  estamos  numa  emergência de Saúde Pública, à qual se submetem as práticas médicas tradicionais. Com a promoção das comunicações à distância, duas coisas estão a acontecer. A primeira é a melhoriada acessibilidade dos médicos. À distância de um telefone-ma, de uma vídeo-chamada ou de uma das várias plataformas disponíveis, é possível falar com um medico. Isto é bom, e pode ser que tenha vindo para ficar. A partir de agora, é bem provável que os médicos se ponham à disposição dos seus doentes para contactos à distância. Sempre aconteceu desde que os telefones estão disponíveis, mas com limita- ções. Com a necessidade e facilidade de contactos, pode-se esperar que esta tendência se alargue, faltando saber as novas condições.

A segunda consequência é a redução das consultas presenciais, e esta não é uma boa notícia. A consulta presencial é sempre um ritual de comunicação interpessoal, registado no processo clínico, que é a base de toda a Medicina. Foi assim por milénios e continuará, muito provavelmente, a sê-lo. No fim da consulta, tão previsivelmente como acontece em qualquer ritual religioso, lá virá o diagnostico, terapêutica e prognostico, tão ansiosamente esperados como um doente nos cuidados intensivos espera saber o que a seguir lhe acontecerá, ou, num ritual judiciário, o réu espera pela absolvição ou sentença. Mas, antes, terá ocorrido uma troca comunicativa intensa onde se encontram presentes todos os meios verbais e não-verbais: a palavra ou simples rumor, o olhar, a expressão, a postura e o toque, nem que seja a propósito de medir a tensão arterial, a magia do toque do médico.

Para acentuar a analogia com outros rituais, o médico é também um profeta em cada consulta. Dirá o que pode acon- tecer e, se contar com a colaboração do doente, oferecer-lhe-á a esperança da cura. Muitas vezes é o efeito placebo e, depen- dendo da confiança que o doente tem no médico, a profecia cumpre-se (as self-fufilling prophecies são conhecidas nas teorias da comunicação). E nada substitui o poder do ritual comunicativo entre médico e doente. Este pode vir munido de todas as informações da Internet, de vários exames complementares e opiniões alheias, pode mesmo pedir a interposição do Dr. Watson da IBM. Mas nada substitui este efeito interpessoal. Por muito que se desenvolvam os contactos à distância, serão sempre um complemento do ritual da consulta presencial.

 

A magia da relação interpessoal

Para a medicina tradicional, o doente é um livro que o médico aprende a ler com todos os seus sentidos. A visão e a audição - esta não só para ouvir palavras - bem como o toque (palpação, medição do pulso) estão geralmente presentes nas diversas práticas clínicas. O gosto (com a prova da urina, hoje substituída pela glicémia sanguínea), estava também presente. Já o cheiro, tradicionalmente importante, ainda nos pode dar preciosas informações. As teleconsultas não permitem que isto aconteça, e os exames complementares não vão substituir a medicina clínica. Quantos médicos inexperientes não  ficam  desesperados  porque  os  exames complementares não condizem com o seu diagnóstico feito ao milímetro? Para além da doença, existe sempre a complexidade da pessoa que temos à nossa frente.

Durante esta pandemia e da nunca vista colaboração internacional e em tempo real de cientistas e médicos, o conhecimento tem evoluído explosivamente e, no fim, contaremos com mais recursos do que nunca. O modelo médico, baseado na decisão diagnóstica, não ficará em causa. Mas não poderemos esquecer que, para além do diagnóstico, estará sempre uma pessoa diferente e complexa que procura a nossa ajuda. Essa ajuda pode ser feita com os recursos farmacêuticos, físicos e psicológicos que temos ao nosso dispor. Mas antes de mais é necessário fazer uma aliança terapêutica, onde o doente, cada vez mais, tem de dar um consentimento informado. Então, a abordagem médica é sempre um ritual comunicativo que promove essa aliança.

 

Empatia, compaixão e altruísmo

A pandemia apanhou o mundo ocidental num estranhotempo  caracterizado  pelos  encontros  fugazes,  pela  mobilidade, pela interculturalidade e falta de referências comuns.

Muitas vezes é também a mobilidade do médico que complica o problema. Sendo hoje muito raro que um médico (o médico de família, antigo João Semana) se estabeleça numa comunidade por toda a suavida, algo terá de mudar. Provavelmente, deveremos dar maior importância ao processo clínico que acompanhará o doente. Ao mesmo tempo, o aumento da esperança de vida obriga os médicos a lidar com quatro gerações bastante diferentes no que respeita a costumes, valores, educação e mesmo linguagem. Nesta torre de Babel será, ainda possível a comunicação?

Esta questão pode ter diferentes respostas segundo a perspectiva disciplinar pela qual é encarada. Na clínica médica, o problema não se coloca. Em primeiro lugar, porque a comunicação entre o médico e o doente não se circunscreve ao uso das linguagens formais. Pelo contrário, a comunicação é global e tem por base a compaixão e empatia, ou seja, a colocação no lugar do doente. A colocação no lugar do outro, agora explicada pelas mais recentes teorias psicológicas, é uma atividade espontânea que deu aos humanos, tão diferentes entre si, a capacidade de se compreenderem mutuamente, e assim se entenderem. Além disso, ao contrário das também recentes tecnologias de influência comunicativa, consiste em atender e respeitar o ponto de vista do interlocutor, nem que se tenha de abdicar de si próprio. Por vezes exige algum esforço, mas é treinada durante toda a atividade clínica.

Para se colocar no lugar do doente, o médico, para além de bom observador, tem de estar bastante atento. É proverbial dizer-se que o bom comunicador é aquele que sabe ouvir. Os médicos mais competentes têm a oportunidade de o confirmar. Esses médicos também sabem que a sua profissão avançará muito após a experiência da pandemia, e muito mudará então. Mas as suas bases fundamentais não se vão alterar. E muito menos mudarão as raízes da Medicina: a empatia, a compaixão e a dedicação aos outros. A experiência global da eclosão do coronavírus que nos desafia está também a elevar estes valores ao património supremo da humanidade.

 

Responsabilidades Éticas

Conflitos de Interesse: Os autores declaram a inexistência de conflitos de interesse na realização do presente trabalho.

Fontes de Financiamento: Não existiram fontes externas de financiamento para a realização deste artigo.

roveniência e Revisão por Pares: Comissionado; sem revisão externa por pares.

 

Ethical Disclosures

Conflicts of interest: The authors have no conflicts of interest to declare. Financing Support: This work has not received any contribution, grant or scholarship.

Confidentiality of Data: The authors declare that they have followed the protocols of their work center on the publication of data from patients. Provenance and Peer Review: Commissioned; without externally peer re-viewed.

 

© Autor (es) (ou seu (s) empregador (es)) 2019. Reutilização permitida de acordo com CC BY-NC. Nenhuma reutilização comercial.

© Author(s) (or their employer(s)) 2019. Re-use permitted under CC BY- NC. No commercial re-use.

 

Correspondence/Correspondência:

José Luís Pio Abreu - jlpdca@gmail.com

Aposentado. Chefe de Serviço de Psiquiatria do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra.

Professor Associado de Psiquiatria da Faculdade de Medicina Universidade de Coimbra, Coimbra, Portugal

Rua António José de Almeida, 329, Sala 68, 2º. Piso. 3000-045 Coimbra.

 

Received/Recebido: 26/04/2020

Accepted/Aceite: 28/04/2020

 

Publicado / Published: 8 de Maio de 2020

 

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