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Medicina Interna

versão impressa ISSN 0872-671X

Medicina Interna vol.27  supl.1 Lisboa maio 2020

https://doi.org/10.24950/rspmi/COVID19/ULSM//S/2020 

ARTIGOS DE OPINIÃO / OPINION ARTICLES

 

Cuidados Intermédios em Tempo de Pandemia: Uma Introdução e Dois Testemunhos

Intermediate Care in Pandemic Time: An Introduction and Two Testimonies

 

Luísa Guerreiro1
https://orcid.org/0000-0001-8189-8761

Raquel Calisto2
https://orcid.org/0000-0002-3980-8117

J. Vasco Barreto3
https://orcid.org/0000-0002-5391-5883

 

1AHG de Medicina Interna, Coordenadora da UCIP do Hospital Pedro Hispano, ULS de Matosinhos, Portugal

2AH de Medicina Interna, membro da UCIP do Hospital Pedro Hispano, ULS de Matosinhos, Portugal

3AHG de Medicina Interna, Director do Serviço de Medicina Interna do Hospital Pedro Hispano, ULS de Matosinhos, Portugal

 

Palavras-chave: Coronavírus; COVID-19; Infecções por Coronavírus; Unidades de Cuidados Intermédios; Pandemia

Keywords: Coronavirus; Coronavirus Infections; COVID-19; Intermediate Care Units; Pandemics

 

“Maintenant je sais que l'homme est capable de grandes actions. Mais s'il n'est pas capable d'un grand sentiment, il ne m'intéresse pas.”

Agora sei que o Homem é capaz de grandes acções. Mas se não for capaz de um grande sentimento, não me interessa.

In “La Peste”, Albert Camus, 1947. Tradução: Ersílio Cardoso (Livros do Brasil, 2016)

 

Uma Introdução

talvez dispensável

 

A formação médica tradicional dota-nos, em doses relativas variáveis, de dois instrumentos fundamentais: a competência cognitiva e a capacidade resolutiva. Alguns de nós trazem já consigo (e ela nem sempre sobrevive inteiramente à dureza da vida prática) a vocação de cuidar, mas quem não a tiver por natureza dificilmente a encontra no percurso académico. Enfim, mais ou menos intelectualizados, mais ou menos desembaraçados, mais ou menos humanizados, em geral sabemos o que somos e com que contar.

A chegada da actual pandemia tem sido para a maioria de nós uma experiência nunca vivida, e para a qual estávamos dramaticamente impreparados: a experiência da desidentificação e da grande imprevisibilidade, na forma e no conteúdo. Na forma, porque precisámos de redefinir a lógica da organização que andámos a cultivar ao longo de anos. No conteúdo, porque tudo o que sabíamos de repente se parece subordinar (diria que parece apenas) a uma nova matriz de pensamento, tanto no exercício diagnóstico como na definição de prioridades.

O presente texto veicula o testemunho de dois elementos de uma Unidade de Cuidados Intermédios. Duas internistas que têm tido, em simultâneo, os desafios de aprender tudo o que podem sobre a doença, de reinventar a Unidade e a sua posição relativa no Hospital e de lidar com a sua própria experiência de tudo isto enquanto pessoas. Responder a este conjunto de reptos e sair inteiro, e maior do que antes, é uma experiência para a qual não fomos preparados e que a literatura médica não nos ensina a viver.

É por isso que este artigo é escrito na primeira pessoa.

 

Testemunho 1

 

A Experiência da Coordenação

e do chocolate

Chamo-me Luísa Guerreiro, sou médica, sou Internista, sou mulher, sou mãe, sou filha e sou cidadã.

Desde há cerca de 10 anos que trabalho na Unidade de Cuidados Intermédios Polivalente (UCIP) do Hospital Pedro Hispano (HPH) exercendo também funções de Coordenadora. É um espaço de internamento para doentes graves cuja condição clínica ultrapassa o limite de intervenção de uma enfermaria de Medicina e pressupõe a ausência de indicação para internamento no serviço de Medicina Intensiva. Recebe doentes de todo o hospital, e no modelo departamental do HPH faz parte do Serviço de Medicina e por sua vez do Departamento de Medicina. Dispõe de uma equipa dedicada de médicos Internistas, responsável pela gestão global do doente, com a participação das especialidades nas decisões clínicas e na execução de procedimentos de diagnóstico e terapêutica.

No dia 13/03/2020 a minha vida modificou-se para sempre. Após participar numa reunião das chefias do meu hospital, e de lá ter saído sentindo-me como se tivesse levado um murro no estômago, daqueles que nos tiram o fôlego, nunca mais fui a mesma pessoa, nas várias facetas que vos descrevi no meu primeiro parágrafo.

No dia 13/03/2020 o mesmo aconteceu à unidade que coordeno, nunca mais foi a mesma. Os propósitos, o planeamento, a metodologia de trabalho, a equipa, os espaços, os circuitos, o material e o mais que possam imaginar, foram avaliados, revistos e reajustados.

Voltando um pouco atrás, ao início do mês de Março, à  semelhança  de  muitos  hospitais  portugueses, o Hospital Pedro Hispano começou a preparar-se para enfrentar a COVID-19. Parecia tudo muito fácil. O Serviço de Infecciologia estava a coordenar o processo. Já havia muita informação a circular, espaços de internamento em preparação, circuitos de doentes pensados e profissionais de saúde treinados. O Serviço de Medicina Intensiva também estava em alerta, iria receber os doentes mais graves. Portanto, tudo controlado, não haveria razão para preocupações e os restantes serviços do hospital iriam poder continuar a fazer o seu trabalho de sempre sem percalços ou interrupções. Desenganem-se, não foi nada disto que aconteceu…

Pressentindo o impacto inevitável que a situação iria ter na UCIP, rapidamente percebi que era fundamental pensar na forma como nos poderíamos preparar para enfrentar este desafio, que iria ser global. Na segunda semana de Março organizámos um momento de formação, envolvendo toda a equipa, médicos, enfermeiros, assistentes operacionais, a nossa secretária clínica e até a funcionária da limpeza. Revimos conceitos, equacionámos  circuitos,  treinámos  procedimentos.  Consigo ainda recordar o medo e o espanto nos olhos dos meus colaboradores, a perplexidade nas suas perguntas, a vontade de que tudo não passasse afinal de mais um exagero.

A partir daqui tudo foi muito rápido.

Primeiro que tudo dividi tarefas. Na minha forma de encarar o funcionamento das equipas de trabalho, talvez porque faça parte de uma em que embora diferentes todos se complementam, valorizo incondicionalmente a contribuição  de cada um para o enriquecimento do trabalho global. Numa corrida contra o tempo, defini de imediato quem me substituiria se fosse necessário, atribuí temas fundamentais para que se criassem protocolos de actuação, pedimos equipamento, revimos notas de encomenda de material técnico, agradecemos doações e estudámos, estudámos e estudamos…

Reorganizámos esquemas de trabalho. O horário passou a ser feito semana a semana, vislumbrando imprevisibilidades. Os turnos de trabalho passaram a ser de 12 horas. Seria insensato mantermos turnos de 24 horas e por sua vez os turnos de 6 horas implicariam um grande consumo de recursos em simultâneo.

Valorizando a segurança de toda a equipa dividimos a nossa unidade em áreas de risco de contaminação, estabelecendo circuitos de doentes, de profissionais e regras de conduta em cada um destes espaços, dispondo sempre de material de protecção adequado. Treinámos, executámos e supervisionámos os diferentes procedimentos.

Recebemos novos elementos, dos diferentes grupos profissionais, que vieram juntar-se à equipa. Foi nossa preocupação a garantia da sua melhor integração, a compreensão rápida das novas metodologias, a necessidade quase obsessiva de interiorização dos procedimentos de segurança.

De uma forma clara revimos em conjunto com a Medicina Intensiva indicações de internamento, estratificação de gravidade dos doentes, limites de intervenção, distribuição dos recursos quer técnicos quer humanos. Dentro do mesmo espírito, colaborámos com o restante Serviço de Medicina, definindo fronteiras, participando na organização dos espaços e na preparação dos seus profissionais.

Privilegiámos a comunicação. Entre nós, com os nossos doentes, com as suas famílias. Todos os dias telefonamos a um familiar, muitas vezes sem informações adicionais, mas com a noção de que a incerteza e o medo poderão ser demolidores. Fazemos vídeo chamadas entre os doentes e as suas famílias, procuramos equilibrar o nosso profissionalismo, as nossas emoções e a privacidade que estes momentos requerem. Permitimos visitas. É verdade, de uma forma muito controlada e supervisionada, proporcionamos a vinda da família dos doentes graves porque percebemos que esta é a única forma de proporcionar algum conforto a quem vai perder o pai, a mãe, o marido, a mulher.

Recorremos, sem preconceitos, à ajuda do Serviço de Saúde Mental quer directamente para com os nossos doentes, quer para as famílias e individualmente para cada um de nós. Elegemos tempos de descanso, tempos de pausa, tempos em que comemos chocolate e tempos em que nos rimos de uma boa piada.

Mas não, não foi tudo fácil, melhor dizendo, não está a ser tudo fácil. Quando no final do turno regressamos às nossas casas temos que organizar tarefas domésticas, tratar dos nossos filhos, falar à distância com os nossos pais, que são idosos, vulneráveis e às vezes estão tão sós. Temos que lidar com a possibilidade de sermos veículos de transmissão da doença. E temos os nossos amigos, os nossos vizinhos, a senhora da padaria, que nos perguntam ansiosamente “quando é que isto irá melhorar?”.

Às vezes estamos cansados, outras vezes apreensivos, outras vezes tão alerta que o sono custa a chegar. Nessas noites de insónia tenho que vos confessar alguns pensamentos recorrentes: e se algum dos meus colegas de trabalho adoece gravemente? O quê que falhou para que isso acontecesse? Como é que vamos lidar com esta fatalidade?

São perguntas sem resposta que nos obrigam em cada dia a rever, a estudar, a validar e a aceitar que poderemos não conseguir evitar aquilo para o qual não queremos sequer estar preparados.

Sem querer ser demasiado optimista, permitam-me dizer que até ao momento, num universo de 60 profissionais que trabalham na UCIP, apenas dois ficaram com sintomatologia ligeira e tiveram a confirmação da infecção. Mas não sabemos como irá ser daqui para a frente. Daí que a disciplina, o rigor e a concentração manter-se-ão bem presentes na nossa forma de pensar e agir.

Confesso que hesitei muito na forma como iria escrevereste texto. Poderia tê-lo feito com um cunho formal, científico, descritivo e objectivo; com  gráficos,  tabelas  e  referências múltiplas; mas pediram-me um ponto de vista, um testemunho e quiçá uma reflexão, portanto decidi que esta seria a única forma possível de descrever a minha experiência e a vivência da UCIP nestes tempos de pandemia.

E para acabar, deixem-me ainda partilhar convosco que esta época tão conturbada, como todos os momentos menos bons da minha vida, tem sido exigente mas muito enriquecedora. Fez-me perceber que ser médico é ser especial. Não me interpretem mal, não é daquela forma que faz com que a população aplauda às janelas, com palmas ou com tachos e panelas, o nosso trabalho. Nada disso. Só estamos a fazer aquilo para que fomos treinados. É ser capaz de ter medo mas conseguir enfrentá-lo; é ser capaz de estudar, de organizar e reinventar; é ser capaz de delegar; é ser capaz de se adaptar; é ser capaz de colaborar com os colegas mais fortes e com os mais vulneráveis; é ser capaz de permanecer junto a um doente nos seus momentos finais para que ele não morra só; é ser capaz de informar e confortar; é ser capaz de momentaneamente desanimar mas rapidamente recuperar a força para continuar.

Obrigada a todos os meus colegas.

 

Testemunho 2

Cinco Momentos-chave

e um encontro com a psicóloga

Chamo-me Raquel Calisto. Nos meses de Março e Abril de 2020 fiz parte da equipa da UCIP para a avaliação e orientação de doentes com COVID 19. De seguida descrevo o que foi a minha vivência pessoal, revendo cinco momentos chave, estruturantes deste percurso. Considero que esta partilha de pontos de vista envolve ganhos enormes para as equipas em termos organizacionais e que o trabalho junto do doente com COVID 19 foi uma oportunidade única de crescimento pessoal e científico.

 

13 DE MARÇO - REUNIÃO DA UCIP: CONSTRUIR OS ALICERCES PARA UMA RESPOSTA À INFECÇÃO POR SARS-COV-2

Numa equipa todos têm de estar unidos num mesmo propósito. Numa pandemia os profissionais de saúde têm de estar sintonizados com os fundamentos de actuação e devem perceber que há princípios práticos que não podem falhar porque põem em risco toda a equipa. Foi fundamental para o sucesso destes dias juntarem-se, num único momento inicial, os intervenientes futuros da resposta da UCIP.

Nessa reunião, já referida, falou-se do que é o SARS-CoV-2 e que doença causa, do panorama internacional e nacional (à data havia no mundo 134559 casos de infecção, 78 casos em Portugal, 0 óbitos), do circuito do doente e das normas da UCIP a este respeito; falou-se também sobre “o que fazer nas nossas casas”. Na reunião foi dado grande destaque ao uso de equipamentos de protecção individual (EPI). Foi realizado um vídeo sobre estes procedimentos. Revendo, foi fundamental ter uma equipa bem treinada em colocar e retirar EPI para nos prepararmos para lidar com a infecção por SARS-CoV-2, o que, de resto, faz parte das checklists para a boa preparação de profissionais para lidar com a pandemia.1,2

Deste dia nasceu um grupo de WhatsApp entre todos os elementos da equipa. Esse foi o nosso meio de comunicação preferencial para partilha e actualização de informações. Partilharam-se vários documentos que, entretanto, foram construídos por elementos da UCIP ou por outros elementos do HPH (Tabela 1), bem como documentos de outras instituições, nacionais e internacionais, entre outras informações relevantes. Esta reunião marcou o início de um propósito conjunto por um objectivo comum. Todos ficaram a perceber o seu papel o que tornou a cadeia de actuação mais sólida. Mais tarde percebi que noutras equipasb não foi assim. Houve equipas em que o “elo mais fraco” quebrou a cadeia de segurança, por exemplo, porque não foi integrado na equipa e porque não percebeu o propósito da actuação. Isso não aconteceu connosco.

 

 

24 DE MARÇO - SUPORTE NÃO INVASIVO DA INSUFICIÊNCIA RESPIRATÓRIA NA COVID-19

A primeira doente grave internada com infecção por SARS-CoV-2 foi admitida na UCIP a 18 de Março. Nestas primeiras semanas de contacto com a COVID 19 sofregamente consumimos tudo o que foi publicado ou partilhado on-line por sociedades científicas a respeito da doença. A forma de adquirir novo  conhecimento científico mudou nestes dias. Habitualmente toda a nossa prática clínica assentava em medicina baseada na evidência. Voltamos a um tempo em que não há evidência, em que o que existe é uma partilha pouco segura da experiência de Whuan, do Norte de Itália e de Madrid que nos chega continuamente pelo WhatsApp, através de webinars.3,4

Por esta altura recebi a tarefa de coordenar a resposta ao nível da ventilação não invasiva (VNI) na COVID 19. Senti muita necessidade em perceber o que estava a ser feito noutros hospitais a este respeito, consegui respostas de colegas através dos meus contactos pessoais. Tive muita pena (mantenho essa tristeza) de não ver organizada uma resposta global efectiva célere com partilha de formas de organização do trabalho entre hospitais no nosso país.

Considerei necessário construir urgentemente um documento que revisse o suporte não invasivo da insuficiência res- piratória aguda (IRA) na infecção por SARS-CoV-2. Fi-lo com ajuda de uma Internista, Joana Simões, e de uma Pneumologista, Bárbara Seabra. Dividimos este documento em: IRA e seu suporte geral, IRA na pandemia COVID 19, oxigenoterapia na pandemia COVID 19, terapêutica inalatória na pandemia COVID 19, oxigenoterapia de Alto Fluxo (OAF) na pandemia COVID 19, VNI na pandemia COVID 19. Cada um destes temas foi subdividido em 3 subtemas: princípios teóricos, segurança dos profissionais de saúde, princípios práticos. Este documento foi partilhado a 24 de Março junto dos médicos e enfermeiros do hospital, escrito numa linguagem comum acessível a ambos os grupos profissionais. A sua divulgação assegurou o cumprimento de regras de segurança e ajudou na consolidação da implementação de boas práticas. Por exemplo, até então a forma generalizada de fazer terapêutica inalatória era por nebulização com máscara facial e esta passou a ser feita com recurso a inaladores de suspensão pressurizada e câmara expansora. Também os circuitos de VNI sofreram grandes alterações, sendo adaptados (Fig. 1).

Foi também nesta altura que me embrenhei nas questões das compras e da logística para assegurar um parque de VNI e de OAF adequado a novas necessidades. Tive um excelente contacto com os profissionais destas áreas, que deram o seu melhor. Tornou-se evidente a existência de concentração preferencial de material de suporte respiratório em alguns hospitais. Gosto de acreditar que tenha resultado apenas de desorganização, mas a sensação que tive foi amargamente semelhante à que me provocou o açambarcamento de comida enlatada nos supermercados.

 

06 DE ABRIL 2020 - A ENFERMEIRA I. FOI INTERNADA

Se houve coisa que aprendemos todos com esta pandemia foi que a vulnerabilidade é uma condição que nos toca a todos, não só aos nossos doentes.5 A anunciada infecção de profissionais de saúde também chegou ao HPH. Um dos momentos mais importantes deste percurso foi o internamento da enfermeira I na UCIP. Vermos os nossos pares doentes, mais frágeis, fez tremer os mais sólidos alicerces. Víamos na enfermeira I. uma colega e víamo-nos a nós próprios. Todos os olhos estavam postos nela. Felizmente o seu percurso na unidade correu bem.

Com esta vulnerabilidade dos profissionais de saúde exposta, ficou ainda mais evidente que ninguém é insubstituível. Todos os profissionais de saúde a trabalhar no cenário de infecção por SARS-CoV-2, sobretudo em posições de liderança, devem fazê-lo com a noção de que podem ter de ser substituídos de um momento para o outro porque pode acontecer serem infectados. Tornou-se evidente o sentimento de frustração de quem teve de sair de cena por estar infectado mas, como é óbvio, isto não pode perturbar a resposta organizada dos serviços.

 

19 DE ABRIL DE 2020 - A MORTE DO SR. L.

Como médicos do doente grave agudo, estamos habituados a estabelecer limites à nossa intervenção, a perceber se o que fazemos é suporte adequado ou inadequado e quando estamos a roçar a distanásia. Para mim durante esta pandemia tornou-se mais difícil tomar decisões de fim de vida por um grande motivo: o conhecer da história natural da doença é fundamental para perceber até onde vamos na linha de suporte. No meu espectro de acção isto é particularmente decisivo nos doentes “do not entubate”. O conhecimento que temos desta doença é muito pouco robusto. Vários factores confundidores perturbaram esta tarefa: como lidar com um doente gravemente hipoxémico e sem sinais de dificuldade respiratória? O doente que está na terceira semana de doença, é de suportar até às 4 semanas para perceber se ela muda o seu curso e tende à resolução, ou estamos apenas a adiar o inadiável? Começámos terapêutica experimental há 3 dias, quantos dias mais devemos suportar o doente? No início diz- ia-se que praticamente toda a pneumonia por SARS-CoV-2 com insuficiência respiratória moderada evoluía como ARDS. Posteriormente percebeu-se que há dois fenótipos de doença, L e H, com apresentação, abordagens e prognóstico diferentes.6,7  Todo o desconhecimento relativo ao curso da doença levou-nos a ter de conviver ainda mais com a incerteza nos nossos dias, o que causou grandes dificuldades na tomada de decisões de fim de vida.8

Até ao dia em que redijo este texto internámos 40 doentes na UCIP com infecção por SARS-CoV-2. Destes, sete morreram na nossa unidade. Tem-se falado muito no fim de vida neste contexto. Rapidamente percebemos que a nossa estratégia seria tentar mediar videochamadas entre doente e família. Em algumas famílias, quando isto se revelou insuficiente, passou a ser permitida a despedida presencial, estando assegurada a segurança de todos com EPI. Promover a despedida entre famílias e doentes por videochamada é difícil. No caso do Sr. L., partilhei com uma das filhas a sua má evolução ao telefone e ela ficou de reunir a família e de perceber como quereriam fazer esta despedida. Entretanto o Sr. L. agravou, estava em sofrimento, precisei de o sedar. Falei com a família, esta não era a despedida de que estavam à espera. Escolheram fazê-la por videochamada, vários filhos e a esposa. Viram o seu ente querido, falaram para ele, disseram o que conseguiram dizer. Da minha parte, o que mais me custou foi a dificuldade de gerir os silêncios com um ecrã a separar- nos, a dificuldade na gestão da comunicação não-verbal neste contexto, como transmitir empatia estando vestida com equipamento protecção individual (EPI) e não estando fisicamente lado a lado com os familiares. Custou também ver a posição da futura viúva que poucas vezes na vida terá feito uma video-chamada e que agora se despedia assim do marido, através de um objecto estranho e impessoal. Apesar de tudo acho que a família ficou mais serena depois de o ver tranquilo e isso foi recompensador.

 

23 DE ABRIL - O CONTACTO DA PSICOLÓGICA

Ao longo destes dias, para conseguir trabalhar abnegadamente tive necessidade de verbalizar junto dos meus colegas as minhas dificuldades na conjugação casa-hospital. Em casa deixava os meus filhos e marido em teletrabalho, tive dificuldades na organização de horários, em lidar com a mudança da dinâmica familiar, em gerir a ausência de redes de apoio num momento como este. Foi também inevitável algum sentimento de culpa por ter assumido, ao manter-me com eles em casa, o risco de os infectar. Tentei manter esse sentimento gerível, partilhando-o com os meus colegas, muitos deles com os mesmos problemas que eu, na tentativa de que não viesse atormentar-me os dias. A dificuldade da gestão dos mais velhos, da solidão dos meus mais velhos, também foi pesando. Foi evidente que, para muitos dos elementos da equipa, havia dificuldades nesta conjugação casa-trabalho. A partilha entre nós e o sentimento de pertença contrabalançou com o risco de exaustão emocional e de evolução para burnout.9

Em determinado momento o serviço de Psicologia passou a contactar-nos proactivamente. Dei por mim a falar sobre o que me tinha acontecido nos últimos dias, como se a validar com alguém desconhecido, mas cientificamente credível, se estava a fazer tudo bem. A conversa foi tranquilizadora, ouvi pequenas mensagens que me ajudaram a serenar algumas angústias. Houve uma mensagem particularmente importante “não se esqueça que isto não é um sprint, isto é uma maratona”. Acho que aí tive a verdadeira noção de que devia garantir mais espaço para momentos com telemóvel desligado, que tinha de tentar guardar de facto algum tempo para mim se pretendia chegar à meta. Estranhamente, percebi que valorizei mais esta mensagem, dita por uma profissional que nem sequer conheço fisicamente, do que a mesma mensagem dita pelos meus pares. Actualmente combinamos conversas telefónicas uma vez por semana, continuo a usá-las para aferir como tenho estado.

Passaram seis semanas da nossa primeira reunião. Passaram muitas horas de estudo, muitas alterações nas nossas rotinas e na nossa vida. Hoje, 27 de Abril, contabilizam-se 3 055 651 casos de infecção por SARS-CoV-2 no mundo, 24027 em Portugal e 928 mortos no nosso país. No hospital, nesta última semana, ficou tudo estranhamente calmo, as admissões destes doentes estão a diminuir, volta a haver silêncio nos corredores. Todos esperamos que este não seja o silêncio antes da nova tempestade.

 

REFERÊNCIAS

1.     World Health Organization. Infection prevention and control during health care when COVID-19 is suspected: interim guidance [19 de Março de 2020]  Disponível  em: https://www.who.int/emergencies/diseases/novel-coronavirus-2019/technical-guidance/infection-prevention-and-control.         [ Links ]

2.     Getting ready for COVID 19 - Lessons from de first 10 days in Mylan. [5 de Março de 2020] Disponível em: https://www.esicm.org/covid-19-update-from-our-colleagues-in-northern-italy/        [ Links ]

3.     Respiratory Management for Severe COVID-19 Patients Webinar - Part 2. [19 de Março de 2020]  Disponível em:  https://www.youtube.com/watch?v=pAb_AC2-g3M.         [ Links ]

4.     Sociedade Portuguesa de Pneumologia. COVID-19 Lessons From Madrid, webinar promovido pela Sociedade Portuguesa de Pneumologia. [28 de Março de 2020] Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=u7qvIZGRC0A.

5.     Carneiro A, Sarmento A. Debates Covid 19: questões éticas em tempos de pandemia. [23 de Abril de 2020] Disponível em https://www.spmi.pt/debates-covid-19-questoes-eticas-em-tempos-de-pandemia/        [ Links ]

6.     Gattinoni L, Chiumello D, Caironi P, Busana M, Romitti F, Brazzi L, et al. COVID-19 pneumonia: different respiratory treatment for different pheno- types? Intensive Care Med. 2020 (in press). doi: 10.1007/s00134-020-06033-2.         [ Links ]

7.     Gattinoni L, Coppola S, Cressoni M, Busana M, Chiumello D. Covid-19 Does Not Lead to a "Typical" Acute Respiratory Distress Syndrome. Am J Respir Crit Care Med. 2020 (in press). doi: 10.1164/rccm.202003-0817LE.         [ Links ]

8.     Barreto JV. Incerteza e Curiosidade: Acerca de Cada Doente. Rev Port Med Int. 2017;24:174-5. doi: 10.24950/rspmi/E/2017.         [ Links ]

9.     Solms L., Vianen A, Theeboom T, Koen J, Pagter A and Hoog M. Keep the fire burning: a survey study on the role of personal resources for work engagement and burnout in medical residents and specialists in the Netherlands. BMJ Open. 2019; 9: e031053. doi: 10.1136/bmjopen-2019-031053.

 

Responsabilidades Éticas

Conflitos de Interesse: Os autores declaram a inexistência de conflitos de interesse na realização do presente trabalho.

Fontes de Financiamento: Não existiram fontes externas de financiamento para a realização deste artigo.

Proveniência e Revisão por Pares: Comissionado; sem revisão externa por pares.

 

Ethical Disclosures

Conflicts of interest: The authors have no conflicts of interest to declare. Financing Support: This work has not received any contribution, grant or scholarship.

Confidentiality of Data: The authors declare that they have followed the pro-tocols of their work center on the publication of data from patients. Provenance and Peer Review: Commissioned; without externally peer reviewed.

 

© Autor (es) (ou seu (s) empregador (es)) 2019. Reutilização permitida de acordo com CC BY-NC. Nenhuma reutilização comercial.

© Author(s) (or their employer(s)) 2019. Re-use permitted under CC BY-NC. No commercial re-use.

 

Correspondence/Correspondência:

Luísa Guerreiro - luisa.guerreiro@ulsm.min-saude.pt

AHG de Medicina Interna, Coordenadora da UCIP do Hospital Pedro Hispano, ULS de Matosinhos, Portugal

Rua Dr. Eduardo Torres, 4464-513, Senhora da Hora

 

Received/Recebido: 02/05/2020

Accepted/Aceite: 02/05/2020

 

Publicado/ Published:8 de Maio de 2020

 

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