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Medicina Interna

Print version ISSN 0872-671X

Medicina Interna vol.28 no.1 Lisboa Mar. 2021  Epub Mar 15, 2021

https://doi.org/10.24950/r/p.paixao/1/2021 

Pontos de vista/ Points of view

COVID-19: A Pandemia (In)esperada

COVID-19: Pandemic unexpected

1Director do Serviço de Patologia Clínica, Hospital da Luz, Lisboa, Portugal

2Presidente da Sociedade Portuguesa de Virologia.

3Professor de Microbiologia da Unidade de Infeção da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, Portugal


Palavras-chave: COVID-19; Pandemia; SARS-CoV-2

Keywords: COVID-19; Pandemics; SARS-CoV-2

Introdução

As pandemias fazem parte da história do Homem, dizimando as populações em número superior ao ocasionado pelas guerras durante os períodos de atividade pandémica, algo que se mantém bem presente, como se poderá verificar pelo número de óbitos associado à COVID-19. Mas as referências históricas não nos devem servir apenas comparações teóricas, mas sim para retirarmos ilações para o presente e o futuro, uma das quais facilmente se consegue retirar através de uma breve análise histórica: a transmissão respiratória. Ela esteve presente nas principais pandemias da humanidade: peste (se é verdade que a peste bubónica é transmitida por pulgas, a peste pneumónica terá muito provavelmente sido a responsável pela rápida disseminação da peste em muitas das zonas atingidas), a varíola, a gripe e, claro, a COVID-19.1 Vamos excluir a SIDA, que embora causadora de uma importantíssima pandemia, esta teve uma evolução lenta, portanto fora do contexto destas pandemias de atingimento rápido da população mundial.

Transmissão

Ainda revolvendo o passado, se pesquisarmos informações com mais de 100 anos, a propósito da tristemente célebre pandemia de gripe em 1918 (H1N1), encontramos frases como esta: “control efforts worldwide were limited to non-pharmaceutical interventions such as isolation, quarantine, good personal hygiene, use of disinfectants, and limitations of public gatherings”.2 Fotografias com profissionais de saúde e autoridades, polícias por exemplo, de máscara são também comuns, realçando a semelhança entre as condutas adotadas em duas pandemias separadas por mais de um século.

As gotículas são reconhecidamente a principal forma de transmissão. Entenda-se por gotícula o material líquido com um diâmetro médio entre 5 e 200 µm emitido para fora do nosso corpo quando espirramos, tossimos, cantamos, gritamos, falamos ou simplesmente respiramos, sendo que a quantidade emitida está em quantidade decrescente nesta lista.

Esta definição de gotículas é, no entanto, algo académica, uma vez que é relativamente frequente a emissão de verdadeiras gotas com mais de 200 µm, sobretudo nos tais atos de maior frequência de emissão, como o espirrar, tossir ou cantar/gritar (estes dois sobrepõem-se por vezes…).3 As máscaras, sejam elas quais forem (embora naturalmente o grau de proteção conferido varie consoante o tipo das mesmas), são obviamente uma barreira física fundamental para diminuir a transmissão, apesar do excessivo tempo que se demorou, na primeira vaga, a assumir este princípio lógico.4

Os aerossóis são teoricamente descritos como partículas inferiores a 5 µm e que devido ao seu tamanho possuem duas caraterísticas: conseguem manter-se muito mais tempo na atmosfera, permitindo a contaminação a maior distância que os dois metros e, por outro lado, podem infetar as vias aéreas superiores, mas também diretamente as inferiores, passando a glote com maior facilidade. Dizemos teoricamente, porque por vezes partículas maiores podem permanecer igualmente em suspensão, dependendo de condições como o teor de humidade (mais seco, mais tempo em suspensão).5 Que os aerossóis desempenham um papel na transmissão em espaços fechados, sobretudo quando há concentração de pessoas e má renovação do ar, é admitido por todos, mas qual a magnitude desse papel, é difícil de determinar. Assim, locais como bares, discotecas, mas também restaurantes e ginásios, entre outros, quando não se conseguem evitar as condições acima referidas (concentração e inadequada renovação de ar, a que se juntam os períodos sem máscara), poderão levar à formação de aerossóis infeciosos, caso algum indivíduo infetado esteja nesse local.6 Intencionalmente não referimos os transportes públicos, que poderão ocasionalmente originar alguns casos, mas que com o uso obrigatório da máscara e com o tempo médio de permanência nos mesmos (nomeadamente urbanos e sub-urbanos), estamos em crer que não têm desempenhado um papel crucial nesta pandemia.

Relativamente aos objetos e superfícies, são uma forma comprovada de transmissão,7 mas que provavelmente estará a ter um impacto menor nesta pandemia, fruto eventual dos cuidados com a higienização das mãos, que parece ter sido assumida pela grande maioria da população.

Prevenção

Definidas as formas de transmissão, a prevenção deriva naturalmente destas. As medidas gerais são bem conhecidas e já foram referidas acima (distanciamento, máscara, desinfeção das mãos), mas a sua aplicação prática é bem mais complicada. Desta forma, não tem existido uniformidade nas medidas de prevenção adotadas nos diferentes países e nem mesmo dentro do mesmo país as linhas orientadoras são sempre coerentes ao longo do tempo. De uma forma resumida, podemos dizer que a evidência científica aponta para que, no balanço entre as vantagens e as desvantagens, as escolas devem permanecer abertas (a não ser quando os surtos dentro delas atinjam dimensões que obriguem ao contrário, ou quando a situação na comunidade atinge valores muito elevados), os eventos de massa devem ser suspensos, as restrições em datas festivas devem ser cumpridas, e a utilização de espaços fechados deve ser restrita e/ou controlada, só para mencionar as medidas mais importantes.8

Pensamos que valerá a pena mencionar de novo a questão dos espaços fechados. O fechamento das discotecas e de muitos bares, por muito penosa que esta medida seja para os profissionais desta área, tem suporte científico: reúnem-se nestes espaços várias das condições predisponentes para a transmissão, como o facto de serem habitualmente espaços fechados, muitas vezes com insuficiente renovação de ar, e com contato próximo entre as pessoas e sem uso de máscaras. No caso das discotecas, acrescente-se a maior mobilidade das pessoas, o aumento da frequência respiratória e até o cantar para acompanhamento da música.9 A todos estes deve ser acrescentado o fator álcool, uma vez que o aumento dos níveis de alcoolémia pode, como se sabe, diminuir a adesão a regras estabelecidas.

Para os restaurantes é mais complicado de definir o grau de risco, uma vez que este parece ser bastante variável consoante a situação. Mas existe evidência que o risco aumenta, o que depende sobretudo do cumprimento das regras de distanciamento, mas também da renovação do ar (espaços interiores), fundamental para evitar a concentração de aerossóis.

De notar também que o fluxo de ar num espaço fechado, como num restaurante, pode ter um papel crucial na transmissão, se esse fluxo criar correntes de ar que passem de mesa para mesa, como ficou demonstrado num célebre surto num restaurante na China.10 Para fecharmos o papel dos restaurantes na transmissão, convirá dizer que, embora as regras atrás mencionadas tenham o seu papel, continua a ser a companhia que temos à nossa frente na refeição o principal fator de risco, daí a frase “não será tanto onde vamos, mas sim com quem vamos comer” o que importa mais.

Falando de prevenção, seria inevitável fazermos uma abordagem muito breve sobre a vacinação. Temos várias e boas vacinas, com metodologias que são novas na aplicação à vacinação, mas que, na altura da redação deste texto, tudo indica serem seguras e eficazes.11 Não há outra possibilidade de sairmos desta fase pandémica, uma vez que a famosa imunidade de grupo, estimada em cerca de 70%, só seria atingida com um número inaceitável de mortes e de grande e prolongada disrupção económica, social e familiar. Após meses de restrições e milhares de mortes, provavelmente apenas cerca 10% da população já teve contato com o vírus, o que significaria multiplicar por sete o que já passámos…intolerável. Mas mesmo que as vacinas sejam seguras e eficazes e possam acabar com a pandemia, tal como a conhecemos, existem ainda questões para as quais não sabemos as respostas e que só os resultados no terreno permitirão elucidar: qual o período de duração do efeito vacinal? Teremos de ter vacinações regulares, à semelhança do que acontece com a gripe? As vacinas protegem apenas da doença ou conseguem bloquear eficazmente a transmissão viral? Todas as vacinas terão o mesmo efeito protetor nos diferentes grupos alvo, ou haverá alguma(s) que se destaque(m) pela positiva ou pela negativa? E as variantes que vão aparecendo, acabarão por escapar à resposta imune? Não havendo atualmente respostas seguras para nenhuma das questões, podemos apenas adiantar que as variantes que têm aparecido recentemente serão, muito provavelmente, abrangidas pela resposta à vacinação, mas que o contínuo aparecimento de mutações nestas ou noutras variantes poderá fazer com que a partir de certa altura a resposta imune possa começar a ser insuficiente para a proteção necessária. É nessa altura que a atualização das vacinas, eventualmente num processo algo semelhante ao que acontece com a gripe, terá de ter lugar. A boa notícia é que esta atualização terá um processo mais fácil com as novas metodologias utilizadas para as vacinas anti-COVID-19.12

Diagnóstico

Intencionalmente saltamos a vertente clínica, algo que um médico virologista deverá deixar para quem de direito. Não podemos, no entanto, deixar de referir a preocupação com que acompanhamos as notícias das possíveis sequelas deixadas pela COVID-19. A confirmarem-se, sobretudo se prolongadas no tempo, são mais um sinal da gravidade desta infeção viral.

A biologia molecular, das quais a mais utilizada é a RT-PCR, método que amplifica o RNA viral, é a referência para o diagnóstico. É o melhor método, com uma boa, mas não perfeita sensibilidade, o que significa que resultados falsamente negativos podem ocasionalmente aparecer. Quanto aos falsos-positivos, eles são claramente mais raros, mas não impossíveis de aparecer.13

Outra questão que se prende com a RT-PCR é o prolongamento no tempo dos resultados positivos pós-infeção, podendo por vezes estender-se por várias semanas ou até meses.

No entanto, vários estudos demonstraram que, na grande maioria das infeções assintomáticas e nas de baixa ou média gravidade, a excreção de vírus infeciosos para lá do 10º dia era uma raridade, o que originou a mudança de política relativamente à alta dos infetados: 10º dia sem recurso a teste. Nos casos mais graves e em imunodeprimidos poderá estender-se até ao 20º dia, mas este é o limite (mesmo para profissionais de saúde) e a partir daqui todos podem voltar às suas atividades sem realizar teste. Também não se deve realizar teste nos 90 dias após um teste positivo, pelo mesmo motivo anteriormente referido: o prolongamento no tempo da excreção de RNA, mas sem correspondência na excreção de vírus viáveis, pelo que estes resultados lançam muito mais confusão do que ajudam a resolver.14

Quanto aos testes rápidos de antigénio, é bem conhecida a sua sensibilidade ligeiramente inferior à da RT-PCR, mas as suas vantagens de rapidez, baixo custo, boa especificidade, fazem com que seja um teste útil quando a RT-PCR não permite uma resposta rápida. Mas será sobretudo para certos rastreios que podem ser de grande utilidade,15 porque de outra forma (RT-PCR), os rastreios poderão ser economicamente incomportáveis. Somos de opinião que estes testes, desde que devidamente compreendidas as suas limitações, poderão ser preciosos na luta contra a pandemia.

Quanto à serologia, baseada na deteção de IgM, IgA ou IgG, tem, segundo alguns, um papel no diagnóstico da infeção aguda. É discutível, uma vez que a serologia demora algum tempo a ser positiva, pelo que apenas ocasionalmente poderá ser de alguma utilidade neste contexto e ainda assim temos de ter algum cuidado com as IgM falsamente positivas. Já a sua utilização para ver o estado imunitário (leia-se, evidência de infeção antiga) é, naturalmente, a referência.16 Relembrar que uma percentagem (ainda significativa, na nossa experiência perto de 10%, mesmo ao fim de 3-4 semanas de seguimento) não desenvolve anticorpos após a infeção natural, embora o seu significado não esteja totalmente esclarecido (a resposta em termos de imunidade celular também estará comprometida? Terão mesmo menos proteção e como tal mais sujeitos a reinfeção?). Outra nota que devemos mencionar, embora esta muito técnica e que terão de ser os laboratórios a resolver, tem que ver com as metodologias a utilizar no caso de se pretenderem ver as respostas à vacinação: vários dos métodos serológicos atualmente comercializados identificam as IgG contra o antigénio N, aparentemente por este originar melhor resposta serológica. Mas as vacinas que vão ser utilizadas na primeira linha levam à produção de antigénio S (o tal da spike) e, consequentemente, depois da vacinação apenas teremos anticorpos contra esta proteína… portanto só poderemos utilizar métodos serológicos que detetem anticorpos contra a proteína S. As principais casas comerciais já estão a tentar resolver este problema e os Laboratórios terão de o ter em conta quando efetuarem serologias a pessoas vacinadas.

Considerações finais

Se o que aprendemos com esta pandemia nos servirá no futuro, é sempre uma interrogação. Na altura da redação deste texto, já foi possível observar o efeito do abrandamento de medidas em alturas cruciais, como foi o Natal de 2020. É estranho que cada nova vaga que aparece seja pior que a anterior, como se pouco ou nada tivéssemos aprendido com a experiência. Haverá certamente múltiplas razões para isso, como uma má condução política (e com corresponsabilidade das autoridades de saúde), mas também, claramente, falta de consciência cívica de uma (significativa?) parte da população. Por sorte a vacina já anda por aqui, mas só nos próximos meses é que saberemos se ela conseguirá evitar novas vagas…

Sem querer terminar de forma catastrofista, parece-nos necessário relembrar que a probabilidade de futuras pandemias é muito significativa, pelos fatores sobejamente conhecidos (aumento da população mundial, invasão de habitats naturais com aumento de contato com reservatórios, etc). Também sabemos que os vírus respiratórios, nomeadamente algum dos muitos vírus influenza ou algum dos coronavírus, são os candidatos naturais a assumirem esse papel, mas naturalmente que dizermos se será daqui a 1, 3 ou 10 anos seria puramente especulativo. Mas para já, tratemos da pandemia presente…

REFERÊNCIAS

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Responsabilidades ÉticasEthical Disclosures3

Recebido: 16 de Janeiro de 2021; Aceito: 16 de Janeiro de 2021

Correspondence /Correspondência: Paulo Paixão - paulo.paixao@nms.unl.pt Director do Serviço de Patologia Clínica, Hospital da Luz, Lisboa, Portugal Av. Lusíada 100, 1500-650, Lisboa

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