SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.28 número3Impacto da Pandemia COVID-19 na Mortalidade em Serviço de UrgênciaComplicações Neurológicas da Telangiectasia Hereditária Hemorrágica índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Medicina Interna

versão impressa ISSN 0872-671X

Medicina Interna vol.28 no.3 Lisboa set. 2021  Epub 01-Dez-2021

https://doi.org/10.24950/cc/59/21/3/2021 

Casos Clínicos

Cólica Renal Periódica: Síndrome de Nutcracker por Duplicação da Veia Renal Esquerda

Periodic Renal Pain: Nutcracker Syndrome Due to Duplication of the Left Renal Vein

1Serviço de Medicina Interna, Hospital de Vila Real, Centro Hospitalar de Trás-os-Montes e Alto Douro, Vila Real, Portugal.

2Serviço de Cirurgia Vascular, Hospital de Vila Real, Centro Hospitalar de Trás-os-Montes e Alto Douro; Vila Real, Portugal.


Resumo

A síndrome de nutcracker é uma patologia rara, resultante do aumento da pressão na veia renal esquerda devido a diferentes anomalias anatómicas. Apresenta-se com sintomas pouco específicos, tais como dor lombar, hematúria ou varicocele que levam a diagnóstico tardio. Apresentamos o caso de uma doente de 22 anos de idade com múltiplos episódios de dor lombar esquerda e recorrente de grande intensidade, geralmente a preceder o início do cataménio. O estudo imagiológico do território vascular revelou anomalias a nível da vasculatura venosa pélvica esquerda, com duplicação da veia renal homolateral, a condicionar congestão pélvica. Após várias admissões (três internamentos com diagnóstico de pielonefrite aguda) a doente foi submetida a angioplastia da veia renal esquerda com embolização da veia gonadal. Após período de resolução sintomático, houve recaída sintomática associada a disfunção renal vindo a condicionar o autotransplante renal com inserção na fossa ilíaca esquerda. Um alto nível de suspeição é fundamental, sobretudo na ausência de resposta ao tratamento conservador e na recorrência de sintomas sem achados imagiológicos a sugerir outras patologias de natureza obstrutiva e/ou inflamatória.

Palavras-chave: Síndrome do Quebra-Nozes/complicações; Síndrome do Quebra-Nozes/diagnóstico; Veias Renais/anomalias congénitas.

Abstract

The Nutcracker syndrome is a rare condition, resulting from increased pressure in the left renal vein due to different anatomical anomalies. It presents with non-specific symptoms, such as low back pain, hematuria or varicocele, that lead to late diagnosis. We present the case of a 22-year-old patient with multiple episodes of high-intensity and recurrent low back pain, usually preceding the beginning of the catamenium. The imaging study of the vascular territory revealed anomalies in the left pelvic venous vasculature, with duplication of the homolateral renal vein, conditioning pelvic congestion. After several admissions (3 hospitalizations with diagnosis of acute pyelonephritis), the patient underwent angioplasty of the left renal vein with embolization of the gonadal vein. After a period of symptomatic resolution, there was symptomatic relapse associated with renal dysfunction, which conditioned the renal autotransplantation with insertion in the left iliac fossa. A high level of suspicion is essential, especially in the absence of response to conservative treatment and in the recurrence of symptoms without imaging findings suggesting other pathologies of an obstructive and / or inflammatory nature.

Keywords: Renal Nutcracker Syndrome/complications; Renal Nutcracker Syndrome/diagnosis; Renal Veins/abnormalities.

Introdução

Apresentamos o caso de uma doente de 22 anos de idade que recorreu ao Serviço de Urgência (SU) em 08/2018 por dor lombar esquerda muito intensa.

Tinha como antecedentes relevantes: apendicectomia laparoscópica e menarca aos 11 anos; interrupção voluntária de gravidez aos 21 anos. Sem antecedentes de doenças crónicas, de litíase renal ou alterações anatómicas estruturais/funcionais do trato genito-urinário conhecidas. Sob contraceção oral com progestativo.

A jovem referia dor lombar esquerda de intensidade segundo escala numérica de 8/10, refratária apenas aliviada com recurso a opióides, de início súbito e intensidade crescente, associada a febre elevada (>39ºC), náuseas e anorexia, geralmente a preceder a fase pré-menstrual. A dor agravava com a micção, movimento e com o ortostatismo, aliviando parcialmente em decúbito. Referia por vezes sintomas genitourinários tais como disúria, poliaquiúria, urgência miccional, dor pélvica e dispareunia. Negava alterações do trânsito gastrointestinal e sintomas constitucionais.

Ao exame físico, apresentava Murphy renal positivo à esquerda, sem irradiação de dor, palpação abdominal indolor, sem organomegalias, irritação peritoneal ou ascite. O exame ginecológico foi descrito como: toque vaginal não doloroso, áreas anexiais livres e não dolorosas. Restante exame físico sem alterações. O estudo analítico apresentava hemograma, função renal e ionograma sem alterações, β-HCG negativa, parâmetros inflamatórios limítrofes para infeção esedimento urinário sem achados sugestivos de infeção ou hematúria. Realizou uma ecografia transvaginal evidenciando útero anterovertido de dimensões normais, endométrio linear e ovários esquerdo e direito sem alterações

Analisamos a história pregressa da doente e verificamos múltiplas vindas ao SU desde os 11 anos, com clínica sobreponível, em agravamento, sobretudo entre 2017-2018, com vindas praticamente mensais. Os diagnósticos prévios apontavam para cólicas renais, pielonefrites e cistites agudas, dado a semelhança de apresentação clínica. A doente foi submetida a diferentes ciclos de antibioterapia, apesar de, analiticamente, não se observar elevação de parâmetros inflamatórios, litíase renal em imagem ou sedimento urinário/uroculturas positivas. A periodicidade da dor tinha relação com fase perimenstrual, ficando assintomática dias após a menstruação e durante parte do novo ciclo. Foi observada por Ginecologia diversas vezes que excluía causa ginecológica que justificasse a clínica, com exame físico e ecografias transvaginais descritas como normais.

A doente foi admitida a internamento no Serviço de Medicina Interna para controlo álgico e investigação subsequente. Realizamos uma angiografia por tomografia computadorizada abdominopélvica (Fig. 1) e angiografia por ressonância magnética pélvica subsequente (Fig. 2), com referência a alterações nos vasos pélvicos à esquerda, que confirmaram o diagnóstico clínico de síndrome de congestão pélvica secundário a síndrome de nutcracker, tendo sido referenciada para consulta de Cirurgia Vas-cular. Iniciou terapêutica médica com bioflavonoides em altas doses para controlo da congestão venosa, com efeito parcial no alívio dos sintomas até intervenção cirúrgica, motivo pela qual não foi realizado ecografia com Doppler (ECO-Doppler) dos vasos abdominopélvicos, dada a indicação cirúrgica inequívoca que a doente apresentava quer pela clínica, quer pelos achados imagiológicos já obtidos.

Foi submetida a embolização da veia gonadal esquer-da por angioplastia da veia renal esquerda, realizada a 06/08/2019 com reintervenção a 02/03/2020. Permaneceu assintomática até 06/2020 quando, por novos episó-dios de dor lombar, foi necessário um autotransplante renal com reinserção na fossa ilíaca esquerda, dado evidência de divisão anómala da veia renal esquerda com inserção ao polo inferior do rim homolateral, a provocar disfunção de órgão, constatada no perioperatório por venografia e descrita no relato cirúrgico (imagens não disponíveis). Por complicações associadas ao pós-operatório, a doente mantém seguimento em Cirurgia Vascular e Urologia, mas sem dor lombar desde a cirurgia.

Figura 1: Tomografia computorizada abdominopélvica, com estudo angiográfico, com relato de: «varizes ectasiadas e tortuosas em topografia parauterina esquerda com veia ovárica esquerda de calibre aumentado (11 mm).» 

Figura 2: Ressonância magnética abdominopélvica com es-tudo angiográfico com relato de: «... ligeira proeminência dos vasos laterouterinos sobretudo à esquerda, onde se acompanha de discreta ectasia da veia gonadal homolateral. Cursa sem evidentes sinais de trombose, podendo traduzir incipiente varicocelo ou ser apenas variante anatómica da normalidade.» 

Discussão

A dor lombar esquerda e o varicocelo são achados típi-cos do SN, descritos em 38% e 35,7%, respectivamente, induzidos pela hipertensão renal resultante e relacionados com o desenvolvimento de circulação colateral.2,5-7Ao caso clínico, acresce a existência da congestão pélvica que con-tribuía para o agravamento na fase perimenstrual e a intolerância ao ortostatismo.

A história clínica e o exame físico levaram-nos a diagnósticos diferenciais que incidiam em focos infeciosos ou litiásicos, dada a sintomatologia altamente sugestiva, com náuseas, febre e dor lombar de elevada intensidade. A pouca frequência de sintomas urinários inferiores e a associação da dor com o ciclo menstrual pela provável ingur-gitação das veias gonadais, fez-nos incluir diagnósticos do foro ginecológico com as imagens resultantes a demonstrar anomalias nos vasos pélvicos. A história natural desta síndrome permanece por esclarecer. Inferimos que no caso apresentado, esta patologia já apresentasse anos de evolução, face às múltiplas vindas ao longo do tempo.

A abordagem diagnóstica carece de critérios específicos, dificultada pela sobreposição com outras patologias. São usa-dos exames de imagem como ECO-Doppler, tomografia computorizada e ressonância magnética abdominal e venografia retrógrada.1,4,8,9Para além das alterações imagiológicas mais comuns nesta síndrome, neste caso a SN anterior (Fig. 3), a doente apresentava ainda uma variante com a duplicação da veia renal esquerda e inserção de uma das suas confluentes no polo inferior do rim esquerdo condicionando o funcionamento deste e o insucesso das angioplastias efetuadas. O tratamento é variável mediante a apresentação e gravidade do doente.1-3,8,9A interdisciplinaridade foi importante, pois estes doentes são observados por especialidades médicas devido aos diagnósticos mais prováveis e é necessário um elevado nível de suspeição para evitar diagnósticos tardios e consequências na qualidade de vida do doente.

Figura 3: Tomografia computorizada abdominopélvica onde é possível observar o engurgitamento da veia renal esquerda em relação com a aorta abdominal e a artéria mesentérica superior, causando a SN anterior. 

Conclusão

A síndrome de nutcracker é uma anomalia anatómica rara, mas com sintomas muito frequentes noutras entidades médicas. A ausência de resposta ao tratamento conservador e a recorrência dos sintomas sem achados imagiológicos a sugerir outras patologias, deve levar o clínico a considerar não só a exploração das patologias mais comuns, mas também do território vascular subjacente.

REFERÊNCIAS

1. Ananthan K, Onida S, Davies AH. Nutcracker Syndrome: An Update on Current Diagnostic Criteria and Management Guidelines. Eur J Vasc Endovasc Surg. 2017;53:886-94. [ Links ]

2. Orczyk K, Wysiadecki G, Majos A, Stefanczyk L, Topol M, Polguj M. What Each Clinical Anatomist Has to Know about Left Renal Vein Entrapment Syndrome (Nutcracker Syndrome): A Review of the Most Important Findin-gs. Biomed Res Int. 2017;2017:1746570. [ Links ]

3. Kurklinsky AK, Rooke TW. Nutcracker phenomenon and nutcracker syn-drome. Mayo Clin Proc. 2010;85:552-9. [ Links ]

4. Bin Dahman HA, Aljabry AO. A case report of a young girl with recurrent hematuria: a missed diagnosis - renal nutcracker syndrome. BMC Nephrol. 2019;20:349. [ Links ]

5. Inal M, Karadeniz Bilgili MY, Sahin S. Nutcracker Syndrome Accompanying Pelvic Congestion Syndrome; Color Doppler Sonography and Multislice CT Findings: A Case Report. Iran J Radiol. 2014;11:e11075. [ Links ]

6. Berthelota JM, Douaneb F, Maugarsa Y, Frampasb E. Nutcracker syndro-me: A rare cause of left flank pain that can also manifest as unexplained pelvic pain. Joint Bone Spine 2017;84:557-62. [ Links ]

7. Teixeira EL, Machado M, Grilo E, Moreira A, Cordinhã C, Carmo C, Gomes C, Síndrome de Nutcracker: Um Diagnóstico a evocar. Acta Pediatr Port 2016;47:182-6. [ Links ]

8. Calado R, Braz M, Lobo L, Simão C, Síndrome de Nutcracker: Hematúria sem Diagnóstico ? Acta Med Port. 2011;24:695-8. [ Links ]

9. Macedo GL, Santos MA, Sarris AB, Gomes RZ,Diagnosis and treatment of the Nutcracker syndrome:a review of the last 10 years. J Vasc Bras. 2018;17:220-8 [ Links ]

1Responsabilidades Éticas Conflitos de Interesse: Os autores declaram a inexistência de conflitos de interesse na realização do presente trabalho. Fontes de Financiamento: Não existiram fontes externas de financiamento para a realização deste artigo. Confidencialidade dos Dados: Os autores declaram ter seguido os protocolos da sua instituição acerca da publicação dos dados de doentes. Consentimento: Consentimento do doente para publicação obtido. Proveniência e Revisão por Pares: Não comissionado; revisão externa por pares. Ethical Disclosures Conflicts of interest: The authors have no conflicts of interest to declare. Financing Support: This work has not received any contribution, grant or scholarship Confidentiality of Data: The authors declare that they have followed the protocols of their work center on the publication of data from patients. Patient Consent: Consent for publication was obtained. Provenance and Peer Review: Not commissioned; externally peer re-viewed

2© Autor (es) (ou seu (s) empregador (es)) e Revista SPMI 2021. Reutiliza-ção permitida de acordo com CC BY-NC. Nenhuma reutilização comercial. © Author(s) (or their employer(s)) and SPMI Journal 2021. Re-use permit-ted under CC BY-NC. No commercial re-use

Recebido: 17 de Fevereiro de 2021; Aceito: 22 de Abril de 2021

Correspondence / Correspondência: Catarina Maciel - a.catarinamaciel@gmail.com Serviço de Medicina Interna, Hospital de Vila Real, Centro Hospitalar de Trás-os-Montes e Alto Douro, Vila Real, Portugal. Rua dos Lagoeiros, 43, 5000-508 - Vila Real

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons