SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.28 número4Terapêutica Biológica na Doença de Behçet: A Experiência de um Centro índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Medicina Interna

versão impressa ISSN 0872-671X

Medicina Interna vol.28 no.4 Lisboa dez. 2021  Epub 01-Dez-2021

https://doi.org/10.24950/rspmi.editorial.4.2021 

Editorial

Serviços de Urgência e Segurança Clínica

Emergency Departments and Clinical Safety

1Editor-Chefe, Revista da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna

2Hospital da Luz, Lisboa, Portugal


Nada está assim tão mal que não possa piorar (Nova Lei de Murphy, 2004)

Realizou-se com êxito assinalável o 6º Congresso Nacional de Urgência, presidido pelo Dr. José Ávila Costa, e organizado por médicos do Núcleo de Estudos de Urgência e do Doente Agudo da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna.

À Dra. Zélia Lopes coube, enquanto Secretária-Geral do evento, fazer as honras da casa e liderar os trabalhos, tendo sido abordadas questões de natureza organizativa e técnica que preenchem o quotidiano dos internistas em exercício nos serviços de urgência das instituições hospitalares nacionais.

Este encontro científico aconteceu em época de crise grave do funcionamento das áreas de urgência de diversos e importantes hospitais públicos, abordada e divulgada pelos órgãos de comunicação social.

As notícias sobre dificuldades críticas de muitos serviços suscitam inquietações sobre as soluções que tardam e, de um modo difuso, sobre a segurança da operação clínica, particularmente a segurança dos doentes agudos e emergentes acolhidos nessas áreas de exigência assistencial intensa.

A questão é muito antiga: já constituía um problema grave na época em que o autor destas linhas iniciou a sua vida profissional. Ao longo de décadas o tema tem sido discutido profusamente, mas do trabalho de numerosos gru-pos técnicos que têm surgido em diversas instâncias da administração da saúde poucas soluções efectivas nasceram ou conheceram aplicação de sucesso no terreno.

A segurança em ambiente de urgência é um assunto muito sensível nas várias etapas de cada episódio. Recordem-se as fases de registo administrativo (que se quer célere e rigoroso), a definição de prioridades (triagem), a consulta médica, os estudos complementares eventuais, a terapêutica medicamentosa e a cirúrgica, a avaliação final e a transferência para serviços, de internamento ou de ambulatório, acompanhada de informação clínica consistente e útil.

Em urgência o médico tem um encontro com um des-conhecido, encontro fruste e rápido (a pressão do tempo é uma constante) com alguém cuja história clínica e a tabela terapêutica habitualmente não se conhece, encontro tantas vezes dificultado por carências de comunicação (estados de estupor e coma, deterioração cognitiva, efeito de fármacos, mutismo, medo e barreira linguística). A perturbação do ambiente de trabalho, o acesso não controlado de doentes e familiares, a dispersão da atenção podem fazer perigar a intervenção clínica dificultando, por exemplo, a formulação da pergunta crucial (a questão de “investigação”) - o que o traz cá? Porque decidiu procurar o serviço de urgência? - que é a base de todo o escrutínio posterior. Não há espaço temporal para empregar com tranquilidade a abordagem de tipo analítico (reflexão, criação de hipóteses e sua investigação) dando lugar a intervenções ditadas pela intuição, pela atitude heurística do reconhecimento e pelo shotgunning (perante uma situação sem explicação solicitam-se estudos complementares sem realizar uma avaliação pré-teste, na esperança de que algum permita uma clarificação). Sobrecarga assistencial, intensidade cognitiva, esforço emocional e privação de sono perturbam o discernimento de qualquer médico, mesmo o mais competente e empenhado, abrindo caminho ao erro e ao insucesso. Este conjunto de factores, caracterizáveis como organizativa e processualmente depressivos, frena qualquer expectativa positiva, interesse e entusiasmo que iniciados e veteranos possam depositar na prática da urgência hospitalar.

Desde há muito se sabe que a sobre utilização dos serviços de urgência induz obrigatoriamente disfunções e patologias de organização. A literatura técnica é rica em publicações acerca do tema. Portugal assume neste contexto um lugar de destaque que ninguém inveja: em 2019 foram registados 8 159 096 episódios de urgência num país com 10 milhões de habitantes.1 Desde os anos sessenta do século passado a utilização das urgências tem conhecido um crescimento que apenas a partir de Março de 2020, fruto do impacto da doença pelo SARS-CoV-2, foi contrariado. Mas os números mais recentes emitidos pelas autoridades da saúde mostram que “os bons velhos tempos estão de regresso”.2

Não se conhece uma definição consensual de sobrecarga ou sobre utilização em urgência e emergência. Por isso se afirma que essas situações se verificam quando os recursos de um serviço são insuficientes para dar resposta à solicitação. Ora este desequilíbrio verifica-se permanentemente. Têm sido desenvolvidas e estudadas métricas como a duração do episódio de urgência, os tempos porta-triagem e porta-médico, as taxas de ocupação de cadeirões e macas, o peso dos doentes triados como graves que abandonam os serviços sem serem alvo de observação por médico, e o desvio de ambulâncias de instituições saturadas (este muito valorizado na literatura técnica norte-americana).

Mas as variáveis importantes são o número de doentes entrados, o número de médicos em exercício, o número de leitos disponíveis e o número de doentes triados (e seus níveis de prioridade), todos um função de uma unidade de tempo. Deve atender-se à capacidade instalada no global de cada instituição que lhe permita receber os doentes admitidos para os internamentos, bem como a necessidade de flexibilidade operacional que tem sido demonstrada nos tempos duros da pandemia presente, e que poderá vir a ser necessária em ameaças futuras e incertas.

Na actualidade sabe-se que o número de doentes aumenta, a dimensão das equipas em exercício vai reduzindo, e o número de leitos disponíveis não pode crescer por condicionamento arquitectónico estrutural e por carência de médicos, enfermeiros e assistentes operacionais.

A multiplicação do número de serviços de urgência (um movimento verificado a partir do fim dos anos oitenta do Século XX), a contratação de mais profissionais (cada vez mais complexa no caso dos médicos e enfermeiros), a criação de uma especialidade médica dedicada à urgência (blindada, cognitivamente um produto de balcanização de conhecimento, conduzindo a um futuro incerto os seus protagonistas) não têm solucionado, nem conseguirão resolver, um cenário de crise crónica e permanente.

Mas é do conhecimento geral, dos estudiosos, dos técnicos e dos leigos, que a única solução eficaz, em qualquer país, mas sobretudo naqueles que sofrem do fenómeno crónico de sobrelotação das urgências, é a regulação dos acessos (aos serviços de urgência). O modelo “porta aberta” deverá dar lugar ao serviço dedicado aos doentes de emergência médica, cirúrgica e aos traumatizados, nomeadamente os politraumatizados. Naturalmente os pacientes correctamente rastreados e credenciados pelos seus médicos assistentes, que lhes definem um estado de gravidade em doenças caracterizadas por serem “tempo-de-pendentes” (ex.: doença cardíaca e neurovascular aguda / hiperaguda, infecção grave e sépsis) carentes de cuidados imediatos, serão também elegíveis para acolhimento nos serviços de urgência.

Esta solução, que não é nova nem original, requer que sejam encontradas alternativas de acesso a cuidados para os doentes e acidentados não graves, que se cons

ideram desde sempre como indutores de falsas urgências.

Haja coragem, decisão e energia para que esta mudança radical, uma verdadeira reconfiguração do Serviço Nacional de Saúde e do Sistema Nacional de Saúde, seja posta em prática por quem tem a responsabilidade. Caso contrário a falência de toda a estrutura assistencial hospitalar estará próxima e será inevitável.

E ninguém deseja que tal suceda.

REFERÊNCIAS

1. Instituto Nacional de Saúde. Estatísticas de Saúde. [consultado 05/11/2021] Disponível em: https://ine.pt/Links ]

2. Serviço Nacional de Saúde. Monitorização Diária dos Serviços de Urgência [consultado 05/11/2021] Disponível em: https://www.sns.gov.pt/monitorizacao-do-sns/servicos-de-urgencia/caracterizacao-urgenciasLinks ]

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons