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Medicina Interna

versão impressa ISSN 0872-671X

Medicina Interna vol.29 no.1 Lisboa mar. 2022  Epub 01-Abr-2022

https://doi.org/10.24950/rspmi.2022.01.amhc 

Pontos de Vista

“A Morte que Ocorre por Decisão da Própria Pessoa”: Reflexão Crítica sobre os Termos e Conceitos do Decreto nº 199/XIV da Assembleia da República

"Death that Occurs by Decision of the Person Himself": Critical Reflection on the Terms and Concepts of Decree No. 199/XIV of the Assembleia da República

1Departamento de Medicina, Urgência e UCI, Hospital da Luz - Arrábida, Vila Nova de Gaia, Portugal

2Núcleo de Estudos de Bioética da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna, Lisboa, Portugal

3Escola Superior de Saúde de Santa Maria, Porto, Portugal


Resumo

Os autores discutem os termos e conceitos que constam das “definições” do Decreto n.º 199/XIV da Assembleia da República Portuguesa, considerando que a expressão “morte medicamente assistida” é equívoca e incorreta. Defendem que o critério determinante da “morte por vontade da própria pessoa”, no contexto deste diploma é o sofrimento intolerável e não a doença diagnosticada.

Palavras-chave: Suicídio Assistido.

Abstract

The authors discuss terms and concepts included in the "definitions" of Decreto nº. 199/XIV of the National Portuguese Assembly Republic, considering that the expression "medically assisted death" is equivocal and incorrect. They argue that the determining criterion of "death by the will of the person himself" in the context of this diploma is intolerable suffering and not the diagnosed disease.

Keywords: Suicide; Assisted.

Enquadramento

A Assembleia da República (AR) Portuguesa aprovou o Decreto-Lei 199/XIV (que “Regula as condições em que a morte medicamente assistida não é punível e altera o Código Penal”)1 em substituição do Decreto-Lei 109/XIV (sobre o mesmo assunto)2 que havia sido aprovado pela AR em fevereiro de 2021. O Presidente da República (PR)3 enviou o Decreto-Lei (DL) 109/XIV para o Tribunal Constitucional (TC) justificando-se com “o carácter muito indefinido do conceito de sofrimento intolerável” e a “total ausência de densificação do que seja lesão definitiva de gravidade ex-trema, nem de consenso científico”, acrescentando ainda que “ao utilizar conceitos altamente indeterminados, ademais em matéria de direitos, liberdades e garantias, remetendo a sua definição, quase total, para os pareceres dos médicos orientador e especialista, o legislador parece violar a proibição de delegação”,

Em março de 2021 o TC pronuncia-se4 “pela inconstitucionalidade da norma constante do artigo 2.º, n.º 1” do Decreto-Lei 109/XIV, devolvendo o diploma à AR.

Em novembro de 2021, a AR aprova um novo diploma: Decreto nº 199/XIV1 (com o mesmo título), que o PR devolve ao Presidente da AR aludindo ao argumento da rampa deslizante dado que “… ordenamentos jurídicos europeus em que a eutanásia se encontra prevista (holandês, belga e luxemburguês) admitem que: a morte assistida possa ocorrer sem que o doente sofra de uma doença fatal ou em fase terminal…” “… exigência inversa é feita nos or-denamentos jurídicos do continente americano (canadiano, colombiano, Oregon, Washington, Vermont, Califórnia, Havai, Nova Jérsei, Maine e Distrito da Colúmbia)5”. No mesmo documento comenta ainda que “… esta diversidade de soluções normativas reflete a diferença de valoração e de ponderação atribuída às mencionadas exigências de natureza objetiva relativas à proteção da vida humana em confronto com a autodeterminação individual do doente …”.5No final, o PR solicita à AR que clarifique se1 é ou não exigível “doença fatal” como requisito de recurso a morte medicamente assistida e2 não o sendo, a exigência de “doença grave” e de “doença incurável” é alternativa ou cumulativa.5

TERMOS E CONCEITOS NO DECRETO-LEI 199/XIV

O artigo 2º do Decreto nº 199/XIV introduz “definições” (termos e conceitos) com implicações na prática clínica (Tabela 1).

A sua clarificação é essencial para que a discussão se centre nos reais conceitos envolvidos e que, em caso de implementação da lei, esta assente em terminologia de significado conhecido e consensual para todos os intervenientes, desidrato que nem sempre foi conseguido no documento em apreciação.

Tabela 1: Definições” introduzidas pelo Decreto-Lei 199/XIV 

Morte medicamente assistida
Suicídio medicamente assistido
Eutanásia
Doença grave ou incurável
Lesão definitiva de gravidade extrema
Sofrimento decorrente da doença
Sofrimento considerado intolerável pela própria pessoa Médico orientador
Médico orientador
Médico especialista

Morte medicamente assistida

A expressão morte medicamente assistida significa, em bom português que a morte teve assistência médica. Esta supervisão já acontece com a maioria dos portugueses na medida em que, em Portugal, 63% das mortes acontecem nos hospitais, 25% no domicílio e 12% noutros locais.6 A “morte que ocorre por decisão da própria pessoa”,1 não pode ser confundida com a “morte medicamente assistida”, como se escreve no artigo 2º do Decreto nº 199/XIV.1A “morte medicamente assistida” acontece com todos os que têm assistência médica nos últimos dias ou horas de vida, o que é boa prática. A “morte que ocorre por decisão da própria pessoa”, pode ou não ter assistência médica, mas só tem enquadramento legal se cumprir o estipulado na Lei aplicável. O Decreto nº 199/XIV confunde, de forma inaceitável, o que é decisão da pessoa para solicitar que lhe seja provocada a morte, com o facto de morrer com assistência médica.

Aduzir-se-ão três objeções à expressão “morte medicamente assistida”:

  1. Proporcionar assistência médica no fim de vida e no momento da morte é boa prática, quando contribui para proporcionar maior conforto à pessoa. É um contrassenso recorrer a uma expressão de uso corrente no léxico português, com significado claro e inequívoco para lhe atribuir um significado errado e contrário ao do senso comum;

  2. Se a maioria das mortes ocorre nos hospitais então, por definição, são medicamente assistidas, o que nada tem a ver com a “morte que ocorre por decisão da própria pessoa”. Na relação clínica e no debate público essa confusão é inevitável e as suas consequências só podem ser danosas;

  3. No nosso entendimento, a expressão que melhor define o que está em apreciação é: ”morte a pedido da própria pessoa”8 porque é autoexplicativa, exclui todas as mortes que não são a pedido da própria pessoa e clarifica a intencionalidade da “morte provocada”. A expressão “morte que ocorre por decisão da própria pessoa”1 quando utilizada sem salvaguardas, permite que nela se incluam ações irrefletidas, passionais ou por doença psiquiátrica capazes de despertar impulso suicida que, por definição, estão excluídas da intenção deste diploma

Esta incoerência semântica revela um erro conceptual, com relevância, porque a forma como as palavras são utilizados tem consequências no teor e qualidade da comunicação. Como refere Susana Magalhães,7 “há palavras que esvaziam a esperança, outras que escondem a vulnerabilidade de quem sofre e de quem cuida” “há palavras que transfiguram a responsabilidade e, assim, há palavras que cuidam e outras que eliminam a possibilidade de relação”.7

Por uma questão pragmática, nesta reflexão, utilizare-mos a expressão, “morte que ocorre por decisão da própria pessoa”, que consta do Decreto nº 199/XIV, para referir a morte provocada a pedido do próprio.

Suicídio medicamente assistido

O recurso a esta expressão é um equívoco que introduz fatores de confusão e imprecisão:

  1. Não se percebe a necessidade de atribuir duas designações diferentes (“morte” e “suicídio”) ao processo de “morte que ocorre por decisão da própria pessoa”.1 O que legitima e despenaliza a ação é a “decisão da própria pessoa”, o seu “sofrimento percebido como intolerável”, de acordo com as disposições legais aplicáveis. Nos termos do Decreto 199/XIV, o enquadramento, a motivação e o resultado da ação são exatamente os mesmos;

  2. A destrinça centra-se apenas na forma como a morte se concretiza, ação essa que é meramente instrumental e da exclusiva responsabilidade do requerente. O Decreto nº 199/XIV estipula, nos artigos 9º e 13º, que “… o médico orientador informa e esclarece o doente sobre os métodos disponíveis para praticar a morte medicamente assistida, designadamente a autoadministração de fármacos letais pelo próprio doente ou a administração pelo médico ou profissional de saúde devidamente habilitado para o efeito, mas sob supervisão médica, sendo a decisão da responsabilidade exclusiva do doente …”.1 Reforça ainda que “… O médico orientador, de acordo com a vontade do doente, combina o dia, hora, local e método a utilizar para a morte medicamente assistida…”1 e que “… a escolha do local para a prática da morte medicamente assistida cabe ao doente”.1 Assim, as opções são variadas, são suportadas nos mesmos princípios e cumprem os mesmos preceitos legais. Neste contexto, a dicotomização do procedimento perfila-se como preconceito ideológico e não como um preceito ético ou jurídico;

  3. Por definição, a ideação suicida ou a sua tentativa deve, sempre e sem exceção, levar o profissional de saúde a ativar uma sucessão de intervenções para impedir a autólise. Assume-se, por defeito, que o ato é irrefletido, circunstanciado pelo desespero ou por padecimento psiquiátrico e, por isso, em situação de perda da capacidade de autonomia refletida. A ação imediata deve ser a de impedir a todo o custo a concretização do suicídio e corrigir ou eliminar a causa.8 Ao termo suicídio não deve ser atribuído nenhum outro significado ou atitude além das mencionadas. No DL nº199/XIV a expressão “morte que ocorre por decisão da própria pessoa” tem signifi-cado e enquadramento totalmente diferentes e não autoriza nenhuma das ações atrás referidas, pois exige o respeito pela vontade expressa pela pessoa desde que essa vontade seja conforme aos preceitos legais

c) Eutanásia

O termo eutanásia não consta do Decreto nº 109/XIV. Foi introduzido na discussão pelo Presidente da República ao escrever no requerimento ao TC: “…saber se a eutanásia, enquanto conceito, é ou não conforme com a Constituição …”.3 A iniciativa foi infeliz e é um retrocesso na clarificação de termos e conceitos.

A palavra eutanásia é originária do grego e significa “morte doce e fácil”, mas tem vindo a ser utilizada para referir o ato de matar em situações sem qualquer relação com a “decisão da própria pessoa”. Surge na imprensa, “… a eutanásia em canis municipais como forma de controlo de animais de rua …”,9“… eutanásia em animais de laboratório"10 e disponibilização de serviços de “Eutanásia Animal”.11 A utilização deste termo nestes contextos encontra suporte na Lei n.º 27/2016 de 23 de agosto que “aprova a criação de uma rede de centros de recolha oficial de animais e es-tabelece a proibição do abate de animais errantes como forma de controlo da população”, utilizando o termo euta-násia para referir o abate de cães, gatos, ratos e restantes animais.

A vulgarização do termo “eutanásia” é mais gravosa quando utilizada em referência ao holocausto nazi como um “…. programa de eutanásia nazista (…) para eliminar pes soas com deficiências físicas e mentais. …”12 e em campa-nhas eleitorais ao parodiar “… eutanasiar" a economia do País …”.13

Há autores que ainda agravam mais a desinformação ao adjetivar a eutanásia (ativa, passiva, voluntária, involuntária, …) ou criando neologismos de significado equívoco como ortotanásia, cacotanásia, mistanásia, distanásia, …

Esta falta de atenção à linguagem é alarmante quando contamina a reflexão académica. Desidério Murcho, profes-sor de Filosofia na Universidade Federal de Ouro Preto, pu-blica estes parágrafos,14 tomados como texto de referência para o assunto: “A eutanásia é voluntária quando é a própria pessoa que quer ser morta, como Ramón Sampedro Cameán e Gillian Bennett14”; “… é ativa quando se mata a pessoa, em vez de se deixar que morra porque lhe foram retirados os tratamentos ou as tecnologias sem as quais ela não sobrevive - como o chamado «pulmão artificial», ou respirador14”; “Quando a eutanásia não é voluntária, há dois tipos diferentes: numa delas é puro homicídio, e por consequência impermissível, porque é matar uma pessoa que manifesta o desejo de não ser morta; mas no outro caso as coisas são menos claras porque a pessoa está em coma, por exemplo, e não manifestou anteriormente qualquer de-sejo, nem de ser morta naquela circunstância, nem de não ser. A ironia é que, neste último caso, a eutanásia passiva é uma prática comum nos hospitais ...”.14

O autor deste texto, seguramente distante da realidade que envolve as pessoas que morrem nos hospitais, confunde de forma gravosa, situações totalmente distintas. Qualquer profissional de saúde bem formado sabe o que é o suporte artificial de funções vitais e o que significa não iniciar ou suspendê-lo; o que significa a decisão de não reanimar; o que são as boas práticas no ajuste do plano terapêutico em situação de morte iminente e o que significa a “obstinação terapêutica”. Os profissionais de saúde que acompanham doentes no processo de morrer sabem que há procedimentos que foram adequados e justificados (cirurgias, medicamentos, exames, …) num determinado contexto, mas que deixam de o ser quando as circunstâncias se alteram. A prática clínica inclui, por vezes, a necessida-de de recorrer a procedimentos que são, em si, ofensas à integridade física (punções venosas, algaliação, cirurgias, transplantes, diálise, entubações, ventilação invasiva, …,) que são admissíveis e recomendadas do ponto de vista deontológico, moral, ético e legal se “segundo o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina, se mostrarem indicados e forem levados a cabo, de acordo com as leges artis, por um médico ou por outra pessoa legalmente autorizada, com intenção de prevenir, diagnosticar, debelar ou minorar doença, sofrimento, lesão ou fadiga corporal, ou perturbação mental, não se consideram ofensa à integridade física…”, como se estabelece no artigo 150º do Código Penal.15 O contrário é um ilícito, pelo que a terminologia de Desidério Murcho não tem suporte científico, ético ou jurídico.

Utilizar a palavra eutanásia, com estas variáveis confundidoras, na discussão da assistência médica em fim de vida, no momento da morte e num diploma com as implicações que este tem é fonte segura má interpretação e por isso má prática. No âmbito da reflexão sobre o Decreto nº 199/XIV sugere-se o abandono total do termo eutanásia e que toda a discussão ou referência ao tema se cinja àquilo que, de facto, está em apreciação: a “morte que ocorre por decisão da própria pessoa”.

d) Doença grave ou incurável

e) Lesão definitiva de gravidade extrema

O legislador entendeu que seria necessário introduzir o conceito de doença grave, incurável, definitiva e / ou de gravidade extrema para que o processo de “morte que ocorre por decisão da própria pessoa” fosse acionado. Nesse contexto estabelece que o requerente será “… doravante designada por doente…”.1Na verdade, estas situações não têm relação de causalidade direta com a decisão do requerente.

As situações de doença grave ou incurável ou que se acompanham de lesão definitiva e de gravidade extrema são seguramente aquelas que mais exigem acompanhamento médico e/ou de profissionais conexos que atuam nos determinantes da saúde, sejam estes clínicos ou sociais. A presença de doença não curável (ie, uma doença crónica), a presença de lesão definitiva ou mesmo a existência de fatores de gravidade não é justificação para ativar o processo de “morte que ocorre por decisão da própria pessoa”. Idealmente, as pessoas com doenças com estas características são acompanhadas por equipas com quem constroem o plano ajustado ao seu estado de saúde, à evolução e ao impacto da doença no seu percurso vital e, na generalidade, não têm necessidade de requerer a “morte que ocorre por decisão da própria pessoa”.

A mesma doença provoca respostas diferentes em pessoas diferentes, não em função da doença em si, mas em função da forma como a pessoa vive a sua doença, na ótica dos seus próprios valores.

Como sustenta Diego Gracia “… a saúde e a doença não são factos, são valores... Os médicos, durante a sua formação aprendem muitos factos clínicos, lesões, disfunções, infeções, … e isto leva-os a pensar que a doença é um puro facto biológico. Nada mais longe da realidade - É um sofisma que nos livros de lógica vem descrito como: “tomar a parte pelo todo”. “É óbvio que há factos, quer na saúde quer na doença, mas sobre eles instalam-se os valores. A saúde e a doença são avaliações e valorações...”.16

Percebe-se que o PR tenha sentido necessidade de esclarecer o texto do Decreto nº 199/XIV quando solicitou “… à Assembleia da República que clarifique se é ou não exigível “doença fatal” como requisito de recurso a morte medicamente assistida e se, não o sendo, a exigência de “doença grave” e de “doença incurável” é alternativa ou cumulativa. …”.5

A resposta que o legislador der a estas questões formuladas pelo PR, não se sustentará na evidência científica da ciência médica, pois a legitimação da despenalização da “morte que ocorre por decisão da própria pessoa” nada tem a ver com os factos demonstráveis na avaliação médica. É uma questão exclusivamente de valores do requerente.

f) Sofrimento decorrente da doença considerado intolerável pela própria pessoa

O sofrimento é o critério major na discussão da legitimidade do conceito de “morte que ocorre por decisão da própria pessoa”. O sofrimento é do domínio íntimo da pessoa, pelo que é impossível de quantificar e difícil de avaliar por terceiros, ainda que possa ser presumido. Só o próprio sabe se o seu sofrimento é ou não intolerável.

Diferentes Países / Estados têm ordenamentos legislativos diferentes como assinala o PR: “… esta diversidade de soluções normativas reflete a diferença de valoração e de ponderação atribuída às mencionadas exigências de natu-reza objetiva relativas à proteção da vida humana em confronto com a autodeterminação individual do doente”.5

O legislador espanhol confrontou-se com os mesmos desafios na elaboração da Ley Organica 3/2021. Optou por estabelecer que “… esta Ley introduce en nuestro ordenamiento jurídico un nuevo derecho individual como es la eutanasia …”16 e que “… Se entiende por esta la actuación que produce la muerte de una persona de forma directa e intencionada mediante una relación causa-efecto única e inmediata, a petición informada, expresa y reiterada en el tiempo por dicha persona, y que se lleva a cabo en un contexto de sufrimiento debido a una enfermedad o padecimiento incurable que la persona experimenta como inaceptable y que no ha podido ser mitigado por otros medios. (…) Así definida, (…) se conecta con un derecho fundamental de la persona constitucionalmente protegido como es la vida, pero que se debe cohonestar también con otros derechos y bienes, igualmente protegidos constitucionalmente, como son la integridad física y moral de la persona, la dignidad humana, el valor superior de la libertad, la libertad ideológica y de conciencia o el derecho a la intimidad…”17 e “… Cuando una persona plenamente capaz y libre se enfrenta a una situación vital que a su juicio vulnera su dignidad, intimidad e integridad, como es la que define el contexto eutanásico antes descrito, el bien de la vida puede decaer en favor de los demás bienes y derechos con los que debe ser ponderado, toda vez que no existe un deber constitucional de imponer o tutelar la vida a toda costa y en contra de la voluntad del titular del derecho a la vida…”17

Os termos e valores invocados na Ley Organica 3/2021 seguem o disposto na Declaração de Barcelona,18 sustentada nos princípios da Autonomia, Dignidade e da Integridade, conforme os códigos de Bioética e a Biolegislação Europeias.19

A Autonomia tem cinco atributos:

  1. a capacidade de criação de ideias e objetivos para a vida;

  2. a capacidade de discernimento moral, “autorregulação” e privacidade;

  3. a capacidade de reflexão e ação sem constrangimentos;

  4. a capacidade de responsabilidade pessoal e envolvimento político;

  5. a capacidade de consentimento informado.19 A Dignidade é a propriedade em virtude da qual os seres possuem estatuto moral.19 A Integridade expressa o núcleo intocável, a condição básica da vida digna. Respeitar a integridade é respeitar a privacidade e, em particular, o entendimento do doente sobre a sua própria vida e doença.19 A Vulnerabilidade é o objeto do princípio moral que obriga ao cuidado com os vulneráveis, sendo que os vulneráveis são aqueles cuja autonomia, dignidade ou integridade podem estar ameaçadas.19 É a vida, na sua finitude e fragilidade, que, naqueles capazes de ter autonomia, fundamenta a possibilidade e necessidade de toda a moralidade.19

g) Médico orientador, médico indicado pelo doente

h) Médico especialista na patologia que afeta o doente

A existência de um médico orientador é um princípio sensato ao fim em vista, mas vai implicar a aquisição de novas competências e definições ao ato médico.

Na perspetiva ideológica de contextualizar o acesso ao processo que culmina com a “morte que ocorre por decisão da própria pessoa”, na presença de cenário clínico de doen-ça que se acompanha de gravidade e/ou incurabilidade e/ou lesão definitiva (em critérios cumulativos ainda a definir pelo legislador), entende-se que essa adjetivação seja comprovada pelo(s) médico(s) especialista(s) na(s) patologia(s) que afeta(m) doente. O plural utilizado nesta redação deve ser incorporado na legislação.

A capacidade para dar consentimento depende da competência para o exercício da autonomia, o que recomenda, sempre que justificado, a avaliação psicológica e/ou psiquiátrica dedicada.

O Decreto nº 199/XIV, apesar de se basear numa atitude progressista, incorre nos mesmos erros que fazem com que os princípios de atuação da Medicina pós-moderna empurrem muitas pessoas doentes e suas famílias para cenários de sofrimento vivido de forma solitária, sem possibilidade de au-todeterminação no percurso da doença e nas decisões terapêuticas e sem beneficiar de modelos de compaixão. Estes são alguns dos determinantes do sofrimento humano decorrente da doença.

É a perceção de sofrimento intolerável (não o estadio ou gravidade da doença) que no Decreto nº 199/XIV legitima o pedido de “morte que ocorre por decisão da própria pessoa”. Assim, a avaliação de fontes de sofrimento aliviáveis deve envolver profissionais especialistas nos determinantes do sofrimento com a intenção de maximizar as oportunidades de alívio desse sofrimento. Este documento seria inovador se determinasse que se criassem condições para a profilaxia do sofrimento intolerável com o fomento da integração de elementos do cuidar que mitigam, sanam e abordam científica e frontalmente as causas de sofrimento humano decorrentes da doença e dos cuidados de saúde.

A doença grave e/ou complexa tende a cursar com dependência e sofrimento que justificam o acompanhamento em sintonia com as opções de vida do doente e uma atenção especial à integração de cuidados no contexto de um plano individual e integrado de cuidados.20 A concretização desse plano, quando existe, é o melhor caminho para otimizar o alívio do sofrimento e dar sentido à existência em conformidade com os valores da pessoa.

As circunstâncias e o sentido da vida são sempre mais importantes e determinantes do que as doenças. A pessoa é muito mais que a doença. O especialista da doença raramente é determinante nas decisões da pessoa e a pessoa é o melhor especialista na forma como vive a sua vida, também no con-texto de doença.

Conclusão

Os termos e conceitos definidos no Decreto nº 199/XIV carecem de revisão para serem mais precisos e corretos, menos equívocos e, por isso, mais aptos a esclarecer os cidadãos e os profissionais de saúde. A determinante do pedido de “morte por decisão da própria pessoa “é o sofrimento intolerável e não a doença.

Declaração de Contribuição / Contributorship Statement:

António H. Carneiro - Conceção, Redação e Revisão.

Rui Carneiro, Catarina Simões - Revisão e Correção.

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1Responsabilidades Éticas Conflitos de Interesse: Os autores declaram a inexistência de conflitos de interesse na realização do presente trabalho Fontes de Financiamento: Não existiram fontes externas de financiamento para a realização deste artigo Proveniência e Revisão por Pares: Comissionado; sem revisão externa por pares. Ethical Disclosures Conflicts of Interest: The authors have no conflicts of interest to declare. Financing Support: This work has not received any contribution, grant or scholarship Provenance and Peer Review: Commissioned; without externally peer re-viewed

2© Autor (es) (ou seu (s) empregador (es)) e Revista SPMI 2022. Reutiliza-ção permitida de acordo com CC BY-NC. Nenhuma reutilização comercial. © Author(s) (or their employer(s)) and SPMI Journal 2022. Re-use permit-ted under CC BY-NC. No commercial re-use.

Recebido: 05 de Janeiro de 2022; Aceito: 05 de Janeiro de 2022

Correspondence / Correspondência: António H. Carneiro - amhcarneiro@gmail.com Departamento de Medicina, Urgência e UCI, Hospital da Luz - Arrábida, Vila Nova de Gaia, Portugal Praceta de Henrique Moreira 150, 4400-346 Vila Nova de Gaia

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