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Medicina Interna

versão impressa ISSN 0872-671X

Medicina Interna vol.29 no.2 Lisboa jun. 2022  Epub 01-Set-2022

https://doi.org/10.24950/rspmi.364 

Pontos de Vista

Sépsis: O Bom Senso está de Volta

Sepsís: Back on Track

1Departamento de Medicina, Urgência e UCI, Hospital da Luz-Arrábida, Vila Nova de Gaia, Portugal.


Resumo

A prevalência da sépsis aumenta em todo o Mundo, mas a sua abordagem continua desafiante porque não tem critério de diagnóstico nem marcadores específicos, além de que as definições têm sido alteradas. A sépsis 3 contribuiu para essa confusão: pois em vez de 1 propôs 2 critérios diferentes (qSOFA e SOFA), conforme o sítio em que se encontra o doente, com descritores diferentes para o mesmo parâmetro. Ignorou o conceito de SIRS e optou pelo reconhecimento dos quadros mais graves e com maior mortalidade, em vez de se centrar no reconhecimento precoce.

As Recomendações Surviving Sepsis Campaign 2021 (RSSC 2021) repõem o bom senso, recusam o qSOFA, reconhecem a importância do conceito SIRS no reconhecimento precoce e das estratégias de avaliação e tratamento centradas na clínica. É o território de eleição dos lnternistas, no ambulatório, na urgência e nas enfermarias O presente texto tem a intenção de rever as componentes das RSSC 2021 que mais beneficiam da intervenção dos lnternistas e da Medicina Geral e Familiar com base nas intervenções que documentadamente salvam vidas na sépsis.

Palavras-chave: Sépsis/diagnóstico; Sépsis/tratamento.

Abstract

Sepsis prevalence is increasing worldwide, but its management is challenging because it has no specific diagnostic criteria or surrogate markers, Definitions have been changing and Sepsis 3 is part of this confusion: because instead of 1 has proposed 2 different criteria (qSOFA and SOFA), depending on place where the patient is evaluated, with different descriptors for the sarne parameter. S3 ignored the SIRS' concept and has centered their criteria in the recognition of the most severe patients with higher mortality, instead of focusing early recognition.

The Surviving Sepsis Campaign 2021 Recommendations, rescan good clinical sense, refuse qSOFA, recognized the importance of SIRS, early recognition and clinical-centered evaluation and treatment strategies. lt is the territory of choice of lnternists either in outpatient clinic or emergency departments and wards This text intends to review the components of the RSSC 2021 that benefit from the intervention of the lnternists and General and General Partitioners based on interventions that effectively save lives in sepsis.

Keywords: Sepsisldiagnosis; Sepsisltherapy.

Introdução

As recomendações Surviving Sepsis Campaign (RSSC) 20211 e o texto de Jean Louis Vincent et al"Equilibrating SSC guidelines with individualized care'',2 trouxeram de volta referências de bom senso na abordagem da sépsis. Esse requisito é muito relevante porque a sépsis não tem definição especifica nem marcadores específicos. A sépsis é multifatorial e multifocal3a sua expressão clínica depende das características do hospedeiro3 e a apresentação clínica: pode ser igual na resposta inflamatória sistémica de etiologia infeciosa e não infeciosa.

Como sustentam Vincent JL e Marshall JC4 as guidelines resultam de abordagens sistemáticas e explicitas feitas para avaliar e sintetizar a informação disponível referente a um tópico pré definido. Não são compilações de verdades, são súmulas do que os seus autores entenderam ser a melhor evidência disponível na data em que foram elaboradas".4Resultam de compromissos entre os autores com base na evidência disponível. Não são consensos, como os textos discordantes de muitos dos subscritores das RSSC 2016 bem documentam. As recomendações são compromissos conjunturais e datados e por isso a sua aplicação exige, além da informação, conhecimento, experiência e a sensatez decorrente da prática clínica. As RSSC 20211 colocam a tónica nas formas graves de sépsis, numa visão do lado dos cuidados intensivos. Contudo, a probabilidade de cura da sépsis é tanto maior quanto mais precoce é o início do tratamento correto. O objetivo do tratamento é chegar a tempo de reverter a desregulação da resposta sistémica que carateriza a sépsis. Por isso é preciso incentivar os profissionais da comunidade, da urgência e das enfermarias a investir no reconhecimento precoce e na abordagem correta da sépsis antes de ser necessário recorrer aos CI. Esta revisão socorre-se do modelo pedagógica da Reanima5 para ajustar as RSSC 20211 à prática clínica.

As RSSC de 2016 (contaminadas pela sépsis 3) propuseram critérios de diagnóstico diferentes conforme o local em que se encontrava o doente. Fora da UCI recomendaram o qSOFA com objetivo de identificar doentes "... com maior probabilidade de terem pior prognóstico ... ", 6 e " ... para pre­ver a morte e o internamento prolongado de doentes com sépsis definitiva ou suspeita em UC/ ... "6 posição que é exa­tamente a contrária da recomendável. Se o doente está na UCI, já não utilizam o qSOFA, mas sim o SOFA6 que é um mero modelo de monitorização e estratificação de gravidade baseado na disfunção de 6 aparelhos/sistemas, de etiologia infeciosa ou não. Acresce que os critérios qSOFA são dife­rentes dos SOFA para o mesmo órgão / sistema, o que não faz nenhum sentido. Esta incoerência faz com que o mesmo doente possa "ter sépsis" na urgência e "não ter sépsis" na UCI ou vice-versa.7

A Sépsis 3 atrasa o diagnóstico da sépsis e por isso as RSSC 2021 " ... recommend against using qSOFA compared to SIRS, NEWS, ar MEWS as a single screening tool for sepsis or septic shock - Strong recommendation, moderate-quality evidence ... "1 refletindo o que a literatura vem demonstrando desde 2016. Como tínhamos antecipado o conceito Sépsis 38 é um erro conceptual com consequências negativas no tratamento de doentes com sépsis. Por isso mantemos o modelo Sépsis 2,5 que em 20019 confirmou os termos e conceitos do consenso de 199110acrescentando novos indicadores clínicos e laboratoriais. Na sépsis, como na maioria das doenças graves e curáveis, o reconhecimento precoce com estratificação de gravidade é a melhor oportunidade de cura. Para tal há que recorrer a critérios sensíveis capazes de identificar precocemente sinais e sintomas (S e S) que evidenciem manifestações da resposta inflamatória sistémica.5

As RSSC 2021 definem sépsis como: " .... disfunção de órgãos com risco de vida causada pela desregulação da resposta do hospedeiro à infeção ... "1e centram-se nas priorida­des clínicas, em particular quando:

  • • Alertam para as manifestações sistémicas de etiologia NÃO infeciosa (SIRS), mas com apresentação clínica sobreponível à da sépsis1

  • • Recomendam a atuação precoce na prevenção de disfunções de órgão para prevenir a sua falência, ou seja, otimizar a oxigenação e a hemodinâmica1 orientadas pela monitorização dos parâmetros de perfusão tecidular.

  • • Assumem que o início do tratamento anti-infecioso deve ser orientado pela estratificação de gravidade inicial e que o tratamento etiológico deve ser orientado pela identificação criteriosa de fatores de risco.1

Em contexto de sépsis e Infeção grave há três intervenções que comprovadamente salvam vidas5:

  1. 1. Reconhecimento precoce que inclui estratificação de gravidade;

  2. 2. Prevenção das disfunções e suporte de órgãos em falência;

  3. 3. Tratamento da causa incluindo controlo do foco quando indicado.

Reconhecimento Precoce

O reconhecimento precoce é a oportunidade para reverter a disfunção imuno-inflamatória, antes da desregulação descontrolada.4 A sua eficácia depende da sensibilidade dos critérios de alerta e do facto de serem critérios de fácil acesso na prática clínica. Os indicadores de SIRS9 e os Early Warning Scores (EWS) são bons sinais de ALERTA, correntemente utilizados na avaliação e monitorização de doentes e fáceis de obter e interpretar. A Tabela 1 sistematiza o modelo de reconhecimento e estratificação de gravidade5,11assente em critérios de ALERTA e de ALARME.

Tabela 1:  Manifestações de alerta (S e S) e marcadores de gravidade para SIRS / sépsis11  

Por definição, quando se priorizam critérios sensíveis aumentam os casos elegíveis, mas reduz-se a especificidade, pelo que é necessário estratificar essa sensibilidade com indicadores de gravidade. O reconhecimento de S e S de ALERTA, surgidos de novo ou em crescendo, exige a ativação de três passos11:

  1. 1. obter gasometria com iões e lactato (estratificar gravidade);

  2. 2. pesquisar S e S de disfunção / falência de órgãos (estratificar gravidade);

  3. 3. procurar foco infecioso (procurar a causa).

Importância da Lactacidemia

O lactato elevado ou em crescendo é indicador de atividade anaeróbica e reflete a deterioração do consumo de O2 (VO2). A hiperlactacidemia denuncia o défice de fornecimento O2 (DO2) e/ou disfunção mitocondrial por sofrimento celular.

Os estados hiperadrenérgicos e a falência hepática também podem contribuir para parte do aumento do lactato sérico.12·13A dinâmica do lactato sérico é mais significativa do que o valor estático e a subida do lactato, pode ser o único indicador de gravidade numa fase inicial (choque críptico).12-14

A hiperlactacidemia que não melhora com o tratamento correto é indicador de mau prognóstico. Ressalve-se, contudo, que os tecidos necrosados / isquémicos (celulite com necrose, pancreatite necrosante, isquemia mesentérica,...) quando reperfundidos lançam na circulação fluidos sequestrados nas áreas em isquemia / necrose, o que pode levar ao aumento transitório da lactacidemia que por definição, tende a melhorar com a melhoria do estado hemodinâmico.12-14

A procura do Foco

A expressão da resposta inflamatória sistémica (SIRS) pode ter causa infeciosa ou não e por isso o seu aparecimento ou agravamento obriga à procura de foco infecioso.1,5Na clínica as causas mais frequentes de SIRS / Sépsis são a isquemia reperfusão (ativada por DAMP) e a entrada em circulação de padrões moleculares associados a patogéneos (PAMP). Esse diagnóstico diferencial (há ou não infeção) é essencial porque determina o tratamento. Nem sempre é possível ter a certeza de qual é, ou se há, foco infecioso e por isso na fase inicial raciocínio clínico deve assentar numa classificação como a proposta por Klouwenberg et al1,15: infeção confirmada, provável, possível ou ausente.1 Há situações inicialmente não infeciosas (pós-operatórios, trauma, doenças autoimunes,...) que no decurso da evolução infetam com aparecimento "de novo" ou agravado de S e S de ALERTA e/ou de ALARME.

Prevenir a Disfunção e Pesquisar a Falência de Órgão

A pressão arterial (PA) e a sua evolução são importantes, mas a melhor forma de saber se a PA é suficiente ou não para as necessidades do doente é a presença, extensão e gravidade dos indicadores de perfusão periférica.2-12. A queda da PA é marcador de disfunção cardiocirculatória, mas a "boa PA" é a que corrige as manifestações de hipoperfusão. Há pessoas (habitualmente hipotensas) que toleram PAsist < 90 mmHg / PAM < 65 mmHg, sem manifestações de hipoperfusão enquanto outras com pressão arterial habitual elevada podem ter S e S de hipoperfusão com PAsist > 110 mmHg / PAM > 70 mmHg.2,12Este conceito é estruturante porque o tempo passado em hipoperfusão aumenta o risco de disfunção multiorgânica (MOOS) ao passo que a prevenção da isquemia tecidular reduz o risco de MODS.14 Os detritos da necrose celular provocados pelos episódios de isquemia / reperfusão (DAMPs) são ativadores potentes da resposta inflamatória sistémica.14 A ativação repetida é mais deletéria do que a isquemia inicial,14,15 que fundamenta a importância de prevenir a disfunção de órgãos pela otimização do DO2. O objetivo imediato é assegurar a oxigenação dos tecidos: SpO2 94%-98% (exceto DPCO) e a pressão arterial necessária para corrigir as manifestações de hipoperfusão.

Na maioria dos doentes a PAM > 65 mmHg é uma referência inicial adequada, mas a evolução das manifestações de hipoperfusão12-15é mais fiável do que a PAM isolada. Por isso se recomenda que a avaliação clínica inclua sempre as manifestações de hipoperfusão, que sugerimos que assente na lógica proposta por Vincent12,15o conceito das três janelas:

  • • Neurológica: confusão, desorientação (delirium), deterioração do nível da consciência - indicador precoce (o cérebro recebe 25% do débito cardíaco)

  • • Cardiocirculatória e a sua expressão cutânea: quebra da pressão arterial sistémica, pele marmórea, atraso no tempo de preenchimento capilar, diferença da tempera­tura central e periférica

  • • Renal: oligúria, insuficiência renal (pois os rins recebem 25% do débito cardíaco) - mas expressa-se no médio prazo

Otimizar a DO2 / VO2

A otimização da DO2 , deve-se iniciar pela perfusão de fluídos se o doente não está em edema agudo do pulmão. As RSSC 20211 recomendam a administração de 30 mUkg (peso teórico ideal), nas primeiras 3h com a intenção de corrigir a hipovolémia, a hipoperfusão tecidular e prevenir a insuficiência renal, a deiscência de anastomoses, o delirium, o risco de AVC, a isquemia esplâncnica e a disfunção multiorgânica.1630 ml/ kg é um valor de referência, identificado em estudos retrospetivos,15·17·18A resposta à perfusão rápida de fluidos ev não é igual em todas as pessoas, depende do défice intravascular e da reserva funcional cardíaca. Os jovens sem comorbilidades têm maior capacidade para tolerar volumes elevados do que com doença cardíaca ou renal, que necessita de ajuste do volume e velocidade de perfusão, pelo que seria preferível que a recomendação referisse 20-40 mUkg,19·20em vez de 30 mUkg. Fluidos em excesso, provocam sobrecarga de volume com risco de edema, hipertensão intrabdominal, insuficiência respiratória, atraso na cicatrização, limitação na mobilização e disfunção multiorgânica.17

Não há nenhuma formula que se aplique a todos os doentes2, porque a necessidade de fluidos varia com a origem da sépsis, a gravidade da lesão endotelial e o estado prévio da função cardiocirculatória. A resposta aos testes dinâmicos: elevação passiva das pernas e "fluid challenge12·15·21·22é, atualmente, a melhor forma de avaliar a necessidade de fluidos ev.

O fluid challenge tem regras de execução para ter significado hemodinâmico15·21:

  1. 1. Os bolus devem ser de 4 mUkg de peso;

  2. 2. A perfusão tem de ser rápida (5-10 min);

  3. 3. Deve ser feito com cristalóides;

  4. 4. A avaliação deve incluir débito cardíaco, pressão arterial, frequência cardíaca, PVC, SpO2, sinais de hipoperfusão. A avaliação deve ser feita antes de começar a perfusão, ao primeiro minuto e no fim da perfusão;

  5. 5. Em condições de recursos limitados o fluid challenge é frequentemente feito com 150-300 ml a perfundir em 15 min15);

  6. 6. A PVC é um bom critério de alarme porque o seu au­mento súbito> 5 mmHg, significa que se atingiu o limite da compliance ventricular e, por isso, a perfusão deve parar de imediato.15·22

O preenchimento vascular deve ser feito com cristalóides equilibrados.10 uso de de NaCI 0,9%, em grande volume aumenta o risco de acidose hiperclorémica.1 Nos estados de hipoalbuminemia / hipoproteinemia graves, em que não há resposta aos cristalóides deve ser considerada a perfusão de albumina.1,2Os amidos e gelatinas ev estão contraindicados na sépsis.

Nos casos em que há hipovolémia com queda da PA e S e S de hipoperfusão, apesar da reposição adequada de volume intravascular é imperativo iniciar vasopressores.23-25O atraso no início de vasopressores em caso de hipotensão com S e S de hipoperfusão aumenta a mortalidade precoce.23-25A pressão arterial resulta da interação complexa entre o débito cardíaco e a resistência arterial, que depende das propriedades mecânicas do sistema arterial (compliance arterial e resistência vascular periférica) e da reflexão da onda de pulso que delas resulta.15 O fluxo sanguíneo nos tecidos depende da PAM e da modelação local do tónus (autoregulação) para manter a perfusão constante.15O objetivo inicial pode ser PAM 65 mmHg, mas os doentes com história prévia de hipertensão, aterosclerose e doença renal crónica, podem necessitar de PA mais elevadas.2·15Nos jovens sem doença vascular prévia e habitualmente hipotensos a pressão arterial alvo pode ser mais baixa se não existirem indicadores de má perfusão periférica.2 As RSSC 20211consideram a noradrenalina como vasopressor de primeiro intenção, mas não há prova concludente de que seja superior a outros vasopressores no tratamento do choque séptico.26 Gamper et al numa revisão para a Cochrane em 2016 concluíram "... não encontramos evidência de diferença substancial na mortalidade com diferentes vasopressores. A dopamina aumenta o risco de disritmia em comparação com a noradrenalina e pode aumentar a mortalidade... ".26 Há incerteza neste domínio, mas não há incerteza no que se refere à necessidade de evitar hipotensão com hipoperfusão.

A disfunção cardiocirculatória na sépsis deve ser reconhecida e corrigida o mais precocemente possível, por isso, tal com Yang et al27 e Ranzani et al,28 se opta por estratificar os estados de choque, na sépsis, em três categorias:

  • Choque vasoplégico27·28- quando a queda da pressão arterial cursa com sinais e sintomas de hipoperfusão (disfunção neurológica, renal ou alterações cutâneas de hipoperfusão), mas o lactato sérico é normal;

  • Choque críptico27·28- quando o lactato é > 4 mmoUL, sem hipotensão, mas podendo ter S e/ou S de hipoperfusão;

  • Choque grave27·28- quando há hipotensão, hiperlactacidemia + manifestações de hipoperfusão;

Hipotensão sem choque15 - É importante salientar que hipotensão por si só não define choque. PA sist < 90 mmHg e/ ou PAM < 65 mmHg com lactato sérico normal e sem manifestações de hipoperfusão, mesmo que curse com sintomas posturais, não impõe tratamento invasivo, como o descrito para os estados de choque.

A identificação precoce de manifestações de hipoperfusão é a oportunidade para inverter mais rápida e eficazmente o sofrimento celular. Nos casos menos graves deve-se iniciar a estabilização com fluidos, mas nos casos com hipotensão grave ou pressão diastólica baixa, que não respondem ao bolus inicias com fluidos justifica-se a administração simultânea de fluidos+ vasopressores.2·15A presença de hipotensão, taquicardia e PA diastólica muito baixa, tipifica um perfil hiperdinâmico dominado pela vasodilatação e recomenda o início precoce de vasopressores.

Vasopressores

Por definição, a perfusão de vasopressores nos estados de choque deve implicar monitorização ev da PA e administração dos vasopressores por acesso central. Contudo, quando não há acesso imediato a ambiente com esses recursos justifica-se o início de vasopressores em perfusão periférica, em veia antecubital, com cateter de calibre largo,25 até se conseguir internar o doente em ambiente que permita colocar CVC e monitorização contínua da PA.1·29O atraso na otimização da PA / DO2 aumenta a mortalidade precoce.28 Nestes contextos a Dopamina é uma opção a considerar, utilizada com maior diluição do que nos ambientes de UCI e com a noção de que só tem efeito vasopressor em doses superiores a 5 µg/kg/min.

Monitorizar e Avaliar a Resposta

A otimização do fornecimento de O2 (DO2), com base na avaliação clínica e monitorização hemodinâmica deve incluir o maior número de variáveis disponíveis, incluindo a SvO2 /SvcO2 / SvmO2, a pressão venosa central e as variáveis associadas ao metabolismo do CO2.2 A presença de SvO2 baixa associada a SaO2 normal denuncia o aumento da extração periférica de O2 e reflete défice de fornecimento o que deve implicar incremento do DO2. A SvO2 normal, por si só, não exclui a presença de disóxia.2

A definição de objetivos e a monitorização da evolução é orientada pela resposta a 4 questões5·11ajustadas ao plano individual de tratamento de cada doente:

  1. 1. Como está a oxigenação? Avaliar SaO2, SpO2, PaO2, SvcO2 + PaO/FiO2 + sinais de esforço respiratório;

  2. 2. Como está a circulação? Avaliar PA, ECG, Pulso, TPC (tempo de preenchimento capilar) PVC, ecoscopia (variações com a ventilação) / elevação m.inf.);

  3. 3. Como estão os órgãos? Avaliados pelo: nível da consciência + pele, mucosas e extremidades + diurese e indicadores analíticos de disfunção de órgão;

  4. 4. Como está a célula? Avaliada pelo: Lactato sérico e SvcO2 + pH e BE;

O conceito de bundles (grupos pré-definidos de procedimentos) tem a intenção de aumentar a probabilidade de cumprimento das intervenções documentadamente eficazes, mas não pode ignorar a ponderação de fatores individuais como o estado de saúde prévio, estado funcional e reserva fisiológica.30 A resposta às intervenções terapêuticas tem de ser criteriosamente monitorizada, para confrontar os objetivos planeados com os resultados verificados e ajustar o plano em função dos resultados atingidos e dos que não foram alcançados"2 ... "Quando se esquece a importância de individualizar os cuidados ... são poucas as intervenções que melhoram significativamente os resultados, em especial a mortalidade ... ".2·31A aplicação literal de recomendações como receita igual para todos (aplicação acrítica de "bundles"30), pode não ser a melhor opção.

Controlo da Causa

O tratamento da infeção do doente em choque inclui a administração de antimicrobianos na primeira hora,1,16logo a seguir à colheita de produtos para estudo microbiológico - hemoculturas sempre - sem atrasar o tratamento mais de 45 minutos.1 Se o doente não está em choque admite-se que o prazo para administração de antimicrobianos se possa prolongar até às 3 horas, para conseguir um diagnóstico definitivo ou provável com a intenção de orientar o tratamento em função da etiologia mais provável.1

As manifestações graves da sépsis resultam da expressão sistémica da resposta do organismo à agressão e podem ser idênticas em síndromes de causa infeciosa e NÃO infeciosa. Nos casos em que não há infeção confirmada ou provável, recomenda-se a reavaliação repetida à procura de possível etiologia não infeciosa não reconhecida.1 A possibilidade de infeção não deve ser descartada, sem completar uma exploração semiológica criteriosa.1 O doseamento da procalcitonina foi retirado dos critérios de diagnóstico e de início de tratamento antimicrobiano da sépsis.1

A Seleção do Antimicrobianos

Prescott e lwashyna32 sustentam que a probabilidade de infeção e a gravidade da doença devem influenciar a prescrição de antimicrobianos, num espectro contínuo caraterizado por um incontornável nível de incerteza.32 Por isso propõem a ponderação conjunta de dois critérios para orientar a escolha do tratamento antimicrobiano de primeira intenção:

  1. Nas formas mais graves (choque) iniciar antimicrobianos de espectro mais largo, mais precocemente (primeira hora), mas nas formas menos graves (sem choque) justifica-se dedicar mais tempo (se necessário) a identificar a causa e otimizar a colheita de produtos para estudo microbiológico;

  2. a escolha de antimicrobianos deve ser ponderada em função da origem da sépsis (quando conhecida), do risco de multirresistências e das caraterísticas do doen­te (otimização farmacocinética e farmacodinâmica)

Neste contexto a seleção de antimicrobianos (sem identificação microbiológica) sugerida nas RSSC 2021 relevam a existência ou não de risco de: SAMR (Staphylococus meticilino resistentes), GNMR (Gramneg multirresistentes), fungos, ...1,31exemplo:

  • Doente em choque + fatores de risco presentes: iniciar tratamento na 1 ª hora, incluindo cobertura:

  • Anti SAMR, se há história prévia de infeção/colonização com SAMR, antimicrobianos ev recentes, infeções cutâneas recorrentes ou úlceras crónicas, presença de artefactos invasivos, hemodiálise, hospitalização recen­te, ... ;1

  • dupla para Gramneg ajustada à prevalência de MR no local onde foi contraída a infeção (https://resistance­map.cddep.org/), ao risco de colonização / infeção com GNMR documentada no ano anterior, ao facto de a infeção ser nosocomial, ter feito antibioterapia de largo espetro nos 90 dias precedentes, ter feito descontaminação digestiva seletiva prévia ou concomitante, ... ;1

  • antifúngica no neutropénico febril, cujo quadro persiste, após 4-7dias de tratamento antimicrobiano de largo espetro;1

  • Kollef et al32 sustentam que o risco de mortalidade e a emergência de micróbios resistentes aumenta, de forma linear (desde o início do internamento), por cada dia de tratamento antimicrobiano inapropriado;32

  • Se o doente não está em choque, não tem fatores de risco identificados, mas tem sépsis definitiva ou provável, deve iniciar tratamento antimicrobiano até às 3 horas, SEM cobertura para SAMR, NEM para GNMR, NEM para fungos, mas ajustado ao foco e à ecologia do local onde a infeção foi contraída1;

  • Quando há isolamento microbiológico credível, o tratamento deve ser orientado pelos testes de sensibilidade sem que haja vantagem em alargar o espetro1;

  • A administração de antimicrobianos deve seguir as boas práticas da farmacodinâmica / farmacocinética com doseamento e ajuste de dose, personalizando o tatamento.1 ;

  • O controlo do foco é essencial e inclui: drenagem de abcessos, desbridamento de tecidos infetados, remoção de próteses/ materiais externos potencialmente infetados, controlo da fonte de contaminação, logo que adequado e a seguir à estabilização inicial.1;

  • O prolongamento das tentativas de "estabilização médica" do doente grave, em particular no choque séptico, em vez do controlo eficaz do foco são em regra desaconselhadas.1

Conclusão

As RSSC 20211 reforçam a importância do reconhecimento e tratamento precoces dos estados de SIRS /sépsis, o que exige a intervenção dos que estão no ambulatório, urgência e enfermarias. Reforça-se a noção de que o choque séptico é uma emergência e a sépsis uma urgência. Salienta-se a importância da prevenção de disfunções pela otimização do DO2 e do suporte dos órgãos em falência. Ressaltam a importância do tratamento antimicrobiano criterioso e atempado, com o controlo do foco quando indicado.

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1Responsabilidades Éticas Confiitos de Interesse: Os autores declaram a inexistência de conflitos de interesse na realização do presente trabalho Fontes de Financiamento: Não existiram fontes externas de financiamento para a realização deste artigo Proveniência e Revisão por Pares: Comissionado; sem revisão externa por pares. Ethical Disclosures Confiicts of lnterest: The authors have no confiicts of interest to declare. Financing Support: This work has not received any contribution, grant or scholarship Provenance and Peer Review: Cornmissioned; without externally peer re­viewed.

2© Autor (es) (ou seu (s) empregador (es)) e Revista SPMI 2022. Reutilização permitida de acordo com CC BY-NC. Nenhuma reutilização comercial. © Author(s) (or their employer(s)) and SPMI Journal 2022. Re-use permitted under CC BY-NC. No cornmercial re-use.

Recebido: 05 de Fevereiro de 2022; Aceito: 09 de Maio de 2022

Correspondence / Correspondência: António H. Carneiro - amhcameiro@gmail.com Departamento de Medicina, Urgência e UCI, Hospital da Luz - Arrábida, Vila Nova de Gaia, Portugal Praceta de Henrique Moreira 150, 4400-346 Vila Nova de Gaia

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