Introdução
A diabetes mellitus (DM) e a insuficiência cardíaca (IC) são duas patologias crónicas, ambas muito frequentes e com uma relação estabelecida mediada pelas complicações intrínsecas à diabetes de longa duração e especialmente com fraco controlo metabólico. Esta relação tornou-se mais evidente com os estudos de eficácia e segurança cardiovascular dos mais recentes fármacos para tratamento da diabetes que vieram demonstrar a prevalência da IC em doentes com diabetes. Múltiplos estudos ao longo do tempo demonstraram um maior risco de IC em pessoas com DM tipo 2 e pré-diabetes,1-4sendo a IC muitas vezes a primeira manifestação de doença cardiovascular em doentes com DM tipo 2. Estes estudos revelaram também que esta relação não é exclusiva da DM tipo 2, estando a incidência e prevalência de IC também aumentadas nos doentes com DM tipo 1.4,5Por estes motivos, tem sido colocada a possibilidade de a IC ser uma complicação menos valorizada da diabetes (comparativamente com as restantes complicações micro e macrovasculares documentadas).6
FISIOPATOLOGIA DA CARDIOMIOPATIA DIABÉTICA
A IC existente em doentes com DM pode ter diversas etiologias uma vez que habitualmente estes doentes são acompanhados de um elevado risco cardiovascular pelas características da própria evolução da DM, mas também (sobretudo na DM tipo 2) pela presença de outros factores de risco cardiovasculares. Contudo, é reconhecida na literatura a disfunção cardíaca associada à presença de DM.
O termo “cardiomiopatia diabética” tem sido utilizado para designar o conjunto de alterações na estrutura e função cardíacas associadas à DM. Estas alterações ocorrem em pessoas com diabetes e consideram-se não estarem associadas a doença isquémica, hipertensiva ou valvular cardíaca, mas sim a alterações no metabolismo da glucose e dos ácidos gordos, à hiperinsulinémia, insulinorresistência e circulação de citocinas inflamatórias, entre outros.6-8
Ceriello et al7 resumem este mecanismo relacionando o estado de hiperglicémia, hiperinsulinémia e resistência à insulina crónicas com o consequente desvio da utilização de glicose como substrato energético para a utilização de ácidos gordos que acabam por ser preferencialmente utilizados para a produção de ATP (adenosina trifosfato). Esta via metabólica e a utilização dos ácidos gordos pelo coração para produção de energia acaba por originar a acumulação de lípidos tóxicos que promovem um estado inflamatório e uma resposta fibrótica pelos cardiomiócitos, levando à alteração de vias de sinalização, promovendo a apoptose e a insulinor-resistência. Estas alterações vão contribuindo para a modelação e fibrose ventriculares que se traduzem clinicamente em hipertrofia e disfunção diastólica, alterações frequentemente descritas em associação à presença de DM. Existem vários outros factores descritos como prováveis causadores destas alterações, nomeadamente disfunção mitocontrial e activação excessiva do sistema renina angiotensina-aldosterona e sistema simpático,7,8com aumento da reabsorção de sódio a nível renal e agravamento da hipertensão arterial a contribuir para a hipertrofia e disfunção cardíaca.
FENÓTIPOS
Tendo em conta a já estabelecida relação entre IC e DM, coloca-se a questão se será importante caracterizar os doentes por subgrupos ou fenótipos dentro destas duas grandes patologias. Os estudos de eficácia e segurança cardiovascular dos fármacos mais recentes para o tratamento da DM tipo 2 vieram demonstrar que determinadas intervenções ou fármacos, se aplicadas no grupo correcto de doentes, podem ter a capacidade de reduzir o risco cardiovascular e impacto no prognóstico.
Pensando na IC como uma eventual complicação da DM como proposto por diversos autores e recentemente pela Associação Americana de Diabetes,6 temos actualmente ao dispor ferramentas que permitem detectar precocemente o desenvolvimento desta cardiomiopatia diabética assim como actuar na prevenção do desenvolvimento de IC clinicamente relevante ou atrasar a sua progressão. Assim, torna-se pertinente considerar agrupar e abordar os doentes por fenótipos ou grupos com determinadas características semelhantes, caminhando para os conceitos da medicina de precisão.
FENÓTIPOS DE DM
No grande conjunto de doentes com DM encontramos desde logo a clássica divisão em DM tipo 1 e DM tipo 2. Esta pode ser considerada a primeira divisão por fenótipos a ter em conta dado que a fisiopatologia, a idade e forma de apresentação, a evolução e consequentemente o tratamento são diferentes e característicos de cada um destes tipos de DM. Podem ainda enumerar-se outros tipos de DM como por exemplo a LADA (latent autoimmune diabetes in adults), a MODY (mature onset diabetes of the young), baseando-se esta classificação, mais uma vez, nas características particulares de cada tipo de doentes para que a abordagem possa ser mais individualizada.
Mais recentemente também se tem discutido a caracterização em fenótipos dentro da DM tipo 2 uma vez que este grupo de doentes é muito grande e heterogéneo, apresentando diferentes características e evolução variável para as várias complicações da doença, incluindo a IC. Têm sido propostas várias classificações dos doentes com DM tipo 2 por fenótipos ou clusters,9,10baseando-se a maioria delas na presença ou não de anticorpos, na idade à data do diagnóstico, no perfil de défice ou resistência à insulina e no índice de massa corporal (IMC). Em 2018, Ahlqvist et al,9 propuseram uma divisão em clusters de acordo com estas características, sendo estes grupos semelhantes a outras propostas existentes na literatura.10 De modo geral, estas classificações consideram cinco grupos de doentes: um fenótipo designado de autoimune que apresenta autoimunidade positiva, diagnóstico em idade jovem, baixos IMCs, défice de insulina, difícil controlo metabólico, elevada incidência de cetoacidose e risco de retinopatia, sendo que estes doentes correspondem provavelmente a doentes com LADA que ainda se encontram classificados com DM tipo 2; um segundo fenótipo de insulino-deficiência grave, com características semelhantes ao grupo anterior mas com autoimunidade negativa, estando também mais associado à ocorrência de complicações microvasculares; um terceiro cluster de insulino-resistência marcada, com associação à obesidade, à esteatose hepática e a doença cardiovascular; um quarto grupo de doentes designado de “diabetes associada à obesidade ligeira”, em que há associação a IMCs elevados mas com baixa insulino-resistência, com menor associação com as complicações clássicas da DM, no entanto com risco de desenvolvimento de IC11; um quinto grupo fenotípico associado à idade e com alterações metabólicas ligeiras ou pouco marcadas.
FENÓTIPOS DE IC
Na abordagem da IC é mais comum abordar os doentes de acordo com o seu fenótipo clínico ou ecocardiográfico. As guidelines actuais promovem desde início a classificação em fenótipos baseados na fracção de ejecção do ventrículo esquerdo.12 Apesar das limitações apontadas a este sistema de classificação, este provou ser útil do ponto de vista clínico e epidemiológico, uma vez que a evidência e terapêuticas disponíveis são variáveis de acordo com a fracção de ejecção. Para os doentes com fracção de ejecção reduzida existem grupos farmacológicos e intervenções com capacidade de alteração do prognóstico e mortalidade, incluindo os mais recentes inibidores da SGLT2 inicialmente estudados para a DM, tendo demonstrado redução dos internamentos por IC e mortalidade, estando por isso actualmente recomendados como terapêutica para a IC nos doentes com e sem DM e até independentemente da fracção de ejecção. No fenótipo com fracção de ejecção preservada incluem-se a maioria dos doentes internados em enfermarias de Medicina Interna, tratando-se de um grupo com diagnóstico mais difícil e mais associado à presença de hipertensão arterial, DM e disfunção diastólica. Lejeune et al13 investigaram diferenças fenotípicas entre doentes com IC com fracção de ejecção preservada com e sem DM. Estes doentes com DM apresentavam características particulares, nomeadamente associação a IMCs mais elevados, menor prevalência de fibrilhação auricular, menores valores de hemoglobina e pior função renal.13A presença de DM também se apresentou neste estudo como um factor associado a mais hospitalizações. Assim, estes estudos levam-nos a ponderar que a classificação e abordagem por fenótipos, neste caso avaliando a presença ou não de DM, pode ser clinicamente relevante e apresentar implicações terapêuticas.
RISCO DE IC NOS DOENTES COM DM
De acordo com a recente revisão da definição universal e classificação da IC,14 esta pode ser classificada em quatro estadios:
Estadio A - em risco de IC; trata-se de doentes sem sinais nem sintomas de IC, sem alterações cardíacas estruturais e sem elevação de biomarcadores, mas que apresentam, pelas comorbilidades e factores de risco, elevado risco de vir a desenvolver IC; neste grupo incluem-se doentes com hipertensão arterial, diabetes mellitus, obesidade, história familiar, entre outros.
Estadio B - pré-IC; doentes sem sinais ou sintomas de IC mas com alteração estrutural cardíaca, alteração da função cardíaca ou elevação dos péptidos natriuréticos ou troponina.
Estadio C - doentes com IF; sinais e sintomas de IC causados por alterações estruturais cardíacas ou alteração da função.
Estadio D - IC avançada; sinais e sintomas em repouso, internamentos recorrentes por IC e que podem necessitar de terapêuticas avançadas como transplante cardíaco, suporte mecânico ou referenciação para cuidados paliativos.
Este sistema de classificação já existia previamente à revisão da classificação e definição universal de IC, no entanto os chamados estadios “pré-clínicos” eram abordados do ponto de vista do tratamento de cada uma das patologias presentes (hipertensão arterial ou diabetes por exemplo), tendo a percepção que tratar esses factores de risco reduziria indirectamente o risco de IC. No entanto, actualmente existe cada vez mais evidência de que tratar de forma individualizada de acordo com as características e fenótipos de cada doente poderá ser benéfico. Com os estudos de risco cardiovascular, percebemos que determinadas estratégias terapêuticas, por exemplo no âmbito da hipertensão arterial e da diabetes, são mais eficazes a reduzir o risco de desenvolver IC e os internamentos por esta patologia.14
Esta classificação por estadios torna-se por isso mais pertinente, especialmente do ponto de vista da detecção precoce da transição do estadio A para o estadio B através da elevação dos biomarcadores cardíacos. Esta teoria é suportada na literatura por alguns estudos que demonstraram benefícios na quantificação dos biomarcadores em doentes com factores de risco como a diabetes mellitus. Pandey et al15 avaliaram a aplicabilidade de um score baseado no doseamento dos biomarcadores cardíacos para classificar doentes com diabetes e pré-diabetes em diferentes categorias de risco de desenvolvimento de IC, tendo concluído que esta estratificação de risco permitia alocar os doentes de risco a determinadas terapêuticas. O estudo STOP-HF16demonstrou que rastrear os doentes com factores de risco cardiovasculares como é o caso da DM através do doseamento de biomarcadores levou a intervenções precoces e mais adequadas ao fenótipo do doente, tendo levado neste ensaio a redução das disfunções sistólica e diastólica, assim como redução da ocorrência de IC.
Com base na evidência e tendo em conta a actual disponibilidade de terapêuticas modificadoras do curso da história natural da IC assim como redutoras das complicações associadas à DM, a Associação Americana de Diabetes publicou em 2022 um documento de consenso sobre a abordagem da IC em pessoas com DM6 em que é recomendado que se faça o rastreio da IC nestes doentes através do doseamento de biomarcadores cardíacos, tal como se de outra complicação clássica da DM se tratasse. Não obstante, é necessário ter em conta que doentes com DM apresentam frequentemente outras patologias que podem influenciar o doseamento dos biomarcadores e como tal, a sua interpretação deve ser realizada caso a caso. Outra das limitações a ter em conta neste contexto é a ainda pouco definida intervenção posterior à detecção de biomarcadores alterados, a fim de evitar sujeitar os doentes a intervenções desnecessárias.
CONCLUSÃO
Caminhamos cada vez mais para a prática de acordo com a medicina de precisão e a individualização terapêutica de acordo com as características de cada doente. Neste cenário de múltiplas opções terapêuticas disponíveis em que é sabido que cada uma delas tem impacto em diferentes doentes, a definição de fenótipos poderá ser útil. A DM e a IC são dois grandes exemplos disso. Contudo, ainda existem muitas questões sem resposta,6 como por exemplo qual o impacto da IC nos diferentes tipos de DM, quais os mecanismos a contribuir para o risco de IC na DM tipo 1, qual a melhor abordagem para detecção da cardiomiopatia diabética e como podemos intervir, quais os resultados da utilização das novas terapêuticas para a DM na prevenção de IC e se têm igual impacto nas diferentes fracções de ejecção, entre outras. São necessários mais estudos nestas áreas, incluindo estudos com outras variáveis como as características genéticas, agora que temos ao dispor ferramentas que nos permitem mudar o curso destas duas importantes patologias que acarretam grande mortalidade e morbilidade.