Introdução
Os bloqueadores de canais de cálcio (BCC) são fármacos de amplo uso clínico, nomeadamente para tratamento da hipertensão arterial, arritmias e angina. Antagonizam diretamente os canais de cálcio do tipo L que se encontram nas células do músculo liso vascular, nos cardiomiócitos e, ainda, nas células beta do pâncreas, em algumas células do sistema nervoso central e no músculo esquelético.1 Resumidamente, causam dilatação do músculo liso, têm efeito inotrópico negativo nos cardiomiócitos, retardam o pacemaker sinusal e inibem a condução auriculoventricular. Os BCC dividem-se em dihidropiridinas (por exemplo, amlodipina e nifedipina) e não dihidropiridinas (por exemplo, verapamil e diltiazem). Nas doses standard, os primeiros causam vasodilatação, mas têm pouco efeito inotrópico ou cronotrópico. Os segundos bloqueiam os canais de cálcio do tipo L do miocárdio, resultando em redução da condução e contração cardíaca, mas com pouco efeito vasodilatador.
A toxicidade dos BCC é, geralmente, subestimada. Em 2019, a American Association of Poison Control Centers re-portou 6020 intoxicações voluntárias e involuntárias por BCC com uma taxa de mortalidade de 0,5%.2 No mesmo ano, a taxa de mortalidade da intoxicação por paracetamol foi de 0,3%,2 um valor bastante inferior. A intoxicação por BCC do tipo dihidropiridinas causa, habitualmente, vasodilatação arterial com taquicardia reflexa, enquanto os BCC do tipo não dihidropiridinas causam vasodilatação periférica, diminuição do inotropismo cardíaco e bradicardia. No entanto, com o aumento da dose, a seletividade dos BCC do tipo dihidropiridinas é perdida, causando bradicardia e choque cardiogénico. Para além disso, a intoxicação por BCC causa hipoinsulinemia e aumenta a resistência à insulina, contribuindo para hiperglicemia e cetoacidose.1 Dependendo da idade, comorbilidades, co-ingestão de outros medicamentos e da magnitude da ingestão tóxica, a apresentação pode variar desde assintomática até choque.
A intoxicação por BCC é, então, uma condição potencialmente life-threatening pelos efeitos hemodinâmicos graves, sendo importante conhecer a melhor abordagem destes doentes. Apesar da inexistência de estudos randomizados, altas doses de insulina (HDI) parecem ser uma opção terapêutica eficaz após falência das medidas convencionais de suporte, nomeadamente a reposição volémica e suplementação de cálcio.
Assim, este artigo relata uma série de casos de intoxicação voluntária por BCC e a sua resposta à introdução de HDI.
CASOS CLÍNICOS
Foi realizada uma pesquisa incluindo todos os doentes admitidos no Serviço de Medicina Intensiva Polivalente (SMIP) do nosso centro hospitalar entre 1 de janeiro de 2015 e 30 de junho de 2022 com o diagnóstico de intoxicação medicamentosa. Foram incluídos doentes com idade superior ou igual a 18 anos e foram excluídos os casos de intoxicação medicamentosa por fármacos que não BCC.
Todos os dados relativos aos casos apresentados foram baseados nos registos clínicos. Foram, ainda, recolhidos os consentimentos informados por escrito.
Para o período estipulado, foram identificados 102 casos de intoxicações medicamentosas, sendo que em 3 casos foram utilizados BCC. A descrição dos mesmos encontram-se de seguida.
Caso 1
Sexo masculino, 30 anos, com consumo regular de cana-binóides foi admitido na sala de emergência (SE) por alteração do estado de consciência 3 horas após intoxicação voluntária com amlodipina (70 mg). Foi admitido no SMIP, tendo iniciado suporte vasopressor com noradrenalina (máximo 4 µg/kg/min) e ainda insulina endovenosa (máximo 20 U/h, correspondendo a 0,3 U/kg/h). Concomitantemente, iniciou perfusão de glucose a 30% e suplementação com gluconato de cálcio. Verificou-se uma redução de cerca de 50% na dose de nora-drenalina após 11 horas de insulinoterapia (Fig. 1). Durante o internamento, não surgiram complicações pela insulinoterapia. O doente evoluiu com estabilidade hemodinâmica e autonomia progressiva, tendo tido alta após 48 horas.
Caso 2
Sexo feminino, 42 anos, com história de obesidade, dis-lipidemia e patologia osteoarticular degenerativa foi admitida na SE 4 horas após intoxicação voluntária com amlodipina (140 mg), losartan (1,4 g), carvedilol (250 mg), etodolac (3 g), acemetacina (900 mg), amoxicilina (8 g) e ácido clavulânico (1,6 mg). Foi admitida no SMIP, tendo iniciado suporte vaso-pressor com noradrenalina (máximo 4,7 µg/kg/min) e adrenalina (máximo 0,2 µg/kg/min). Concomitantemente, iniciou insulina endovenosa (máximo 75 U/h, correspondente a 0,88 U/kg/h), perfusão de glucose a 30% e suplementação de cálcio e potássio. Verificou-se uma redução de cerca de 50% na dose de noradrenalina após 5 horas de insulinoterapia e pos-sibilidade de desmame da adrenalina após 3 horas (Fig. 2). Durante o internamento, a destacar hipocaliemia moderada (mínimo 2,4 mmol/L) e hipoglicemias (mínimo 40 mg/dL) que foram corrigidas após suspensão transitória da HDI. Posteriormente teve boa evolução, tendo tido alta após 5 dias.
Caso 3
Sexo feminino, 50 anos, com história de hipertensão arterial e perturbação depressiva com um episódio de intoxicação medicamentosa voluntária no passado. Foi admitida na SE por alteração do estado de consciência 6 horas após intoxicação voluntária com amlodipina (140 mg), imidapril (140 mg), atorvastatina (400 mg), loflazepato de etilo (56 mg), sertralina (1 g) e trazodona (2 g). Foi admitida no SMIP, tendo iniciado suporte vasopressor com noradrenalina (máximo 4,4 µg/kg/min). Concomitantemente, iniciou insulina endovenosa (máximo 50 U/h, correspondente a 0,83 U/kg/h), perfusão de glucose a 30% e suplementação com cloreto de potássio e cloreto de cálcio. Verificou-se uma redução de cerca de 50% na dose de noradrenalina após 10 horas de insulinoterapia (Fig. 3). Durante o internamento, a destacar hipocaliemia moderada (mínimo 2,6 mmol/L) e hipoglicemias (mínimo 43 mg/dL) que foram corrigidas após incremento da velocidade de perfusão de glucose a 30%, sem necessidade de suspender a HDI. Evolução com redução progressiva da dose de noradrenalina e melhoria do quadro clínico, tendo tido alta após 8 dias.
Discussão
Existe pouca evidência atualmente disponível relativamente ao tratamento da intoxicação por BCC. Mesmo assim, e segundo os artigos mais recentes,3,4a terapêutica nos doentes sintomáticos por intoxicação por BCC consiste em:
Reposição volémica (cristaloides 20 mL/kg);
Suplementação de cálcio (cloreto de cálcio 10% 1-2 g a cada 10-20 minutos ou gluconato de cálcio 10% 3-6 g a cada 10-20 minutos) para aumentar a concentração extra-celular e promover o influxo de cálcio através dos canais de cálcio do tipo L desbloqueados;
Em caso de choque, recomenda-se associar suporte vasopressor, preferencialmente com noradrenalina;
HDI (bólus 1 U/kg seguido de perfusão 0,5-1 U/kg/h) que parece contribuir para um aumento da sobrevida nestes casos, uma vez que compensam os mecanismos inibidos pelos BCC, nomeadamente a libertação de insulina pelo pâncreas e a captação de glicose pelo miocárdio. Este efeito leva a uma maior disponibilidade de glicose intracelular miocárdica, melhorando a produção de adenosina trifosfato e, ainda, atua como um vasodilatador através da estimulação da produção endotelial de óxido nítrico, o que contribui para melhorar a disfunção microvascular associada ao choque cardiogénico. Consequentemente, nestes casos, atua como inotrópico, aumentando o débito cardíaco e a contratilidade miocárdica, possivelmente maximizando a eficácia dos vasopressores concomitantes. Por último, melhora a disfunção metabólica pela hiperglicemia associada a este tipo de intoxicação. A administração de HDI requer uma monitorização intensiva dado o risco de hipoglicemia, hipocaliemia e sobrecarga volémica. No entanto, a sua ocorrência não é indicação para interromper a HDI caso a estabilidade hemo-dinâmica ainda não tenha sido alcançada.1 É aconselhada uma perfusão de glucose durante a sua administração. Adicionalmente, pode ser necessário a suplementação com po-tássio para evitar a hipocaliemia grave.
Ainda não existe consenso sobre qual terapia iniciar primeiro após os cuidados básicos de suporte, mas atrasar o início da HDI parece aumentar a mortalidade.1,4Em várias séries de casos foi demonstrado que quando a HDI é iniciada no choque, é possível reduzir as altas doses de vasopressores. Por esta razão, a HDI tem sido recomendada até estabilização hemodinâmica e mesmo na ausência de necessidade de suporte vasopressor.1
Nos doentes refratários à terapêutica de primeira linha, pode-se titular a dose de HDI até 10 U/kg/h se disfunção miocárdica comprovada. Pode ainda ser administrada uma infusão de emulsão lipídica, uma vez que se liga aos fármacos o ipofílicos, como verapamil e diltiazem, reduzindo o seu volume de distribuição.5
Relativamente aos casos apresentados, trata-se de doentes jovens (idade média de 40 anos) e sem comorbilidades importantes. A amlodipina, um BCC do tipo dihidropiridínico, foi utilizada nos 3 casos. É um fármaco com elevada ligação às proteínas e um tempo de semivida longo (30-50 horas). O tempo para pico de ação é de 6-12 horas, o que pode justificar a necessidade de suporte vasopressor inicial e a possibilidade de redução da sua dose cerca de 12 horas após.
Em dois casos houve co-ingestão de outros fármacos, destacando-se os betabloqueadores (βB), os inibidores da enzima de conversão da angiotensina e os antagonistas do recetor da angiotensina. No Caso 2, até seria expectável uma maior disfunção cardiovascular dado que associou dois fármacos depressores. De referir que o tratamento da intoxicação por βB parece ser semelhante ao previamente descrito.4
À admissão todos se apresentavam hipotensos e sem resposta à reposição volémica com consequente necessidade de introdução de suporte vasopressor. Relativamente à insulinoterapia, foi utilizada uma perfusão média de 0,67 U/kg/h (0,3-0,88). Essa dose foi mais elevada no Caso 2, precisamente devido à intoxicação simultânea de BCC e βB. O número médio de dias sob HDI foi de 2 dias (44 horas), o que se compreende dado o tempo de semivida da amlodipina.
A hipocaliemia e a hipoglicemia foram frequentes, em especial no Caso 2 dada a associação com βB. No entanto, foram situações sem gravidade. Não foram descritas outras complicações decorrentes da HDI ou intercorrências durante internamento. A taxa de mortalidade intra-hospitalar foi nula.
Conclusão
Os casos de intoxicação por BCC são cada vez são mais frequentes atendendo à ampla utilização destes fármacos. Por isso, é fundamental que os profissionais de saúde saibam reconhecer e gerir estas situações clínicas dado o seu elevado risco de mortalidade. A monitorização hemodinâmica e as medidas gerais de ressuscitação devem ser imediatamente instituídas, embora sejam muitas vezes ineficientes com necessidade de instituir suporte vasopressor em doses elevadas. A HDI parece ser uma terapêutica possível e segura nestes doentes, melhorando o metabolismo e, consequentemente, a disfunção cardíaca severa associada a estes fármacos. No entanto, ainda são necessários mais estudos em humanos para esclarecer o papel da HDI no tratamento das intoxicações por BCC.