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Medicina Interna

Print version ISSN 0872-671X

Medicina Interna vol.30 no.4 Lisboa Dec. 2023  Epub Jan 10, 2024

https://doi.org/10.24950/rspmi.2519 

Editorial

Medicina Interna, da Fluidez à Resistência

Internal Medicine, from Fluidity to Resistance

Ana Cláudia Tonelli1  2  3 
http://orcid.org/0000-0003-0903-6774

1Membro do Conselho Editorial, Revista da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna, Lisboa, Portugal

2Universidade do Vale dos Sinos, UNISINOS, São Leopoldo, Brasil

3Serviço de Medicina Interna, Hospital de Clínicas de Porto Alegre, Porto Alegre, Brasil


Nos diferentes setores da sociedade, avançamos a partir de mudanças comportamentais, tecnológicas e sociais. Estes elementos trazem para a pauta diferentes compreensões, processos e possibilidades para a transformação da forma como interagimos, na forma como nos comportamos, e também nas possibilidades de aprofundamento vertical de conceitos. No campo da saúde, não é diferente. A evolução tecnológica aponta para caminhos que muitas vezes isolam as variáveis, em certo sentido limitando nosso olhar, mas permitindo um aprofundamento vertical em busca das soluções para problemas de saúde. Essa lógica de fragmentação leva à super especialização e a compreensão linear do paciente: perde lugar o ser integral e ganha lugar o paciente com problema específico; não é à toa que hoje há mais de 50 especialidades médicas.

Entendemos que, através da ciência, quando conseguimos isolar e tratar problemas pontuais, podemos desenvolver soluções mais robustas, soluções que permitem um aprofundamento do conhecimento e que, através da tecnologia, remetem ao bem-estar daquele que cuidamos. Entretanto, soluções pontuais são contrárias a uma perspetiva sistémica. O paciente é um ser integral, inserido em um contexto social e com necessidades decorrentes de seu espaço de vida.

É por isso que precisamos compreender o adulto a partir de um olhar sistêmico e integrado. Um olhar que está inserido dentro da compreensão da medicina que preconiza a vida, o sistema. A medicina interna navega neste espaço de construção: foge das curvas que desviam nosso olhar para pedaços, para partes, e olha sistemicamente o paciente como um todo. Investiga, questiona, acompanha, trata, concilia, traduz o que é dito e decifra o silêncio; percebe o oculto e o fenómeno ainda não manifesto. Lida com a incerteza, com a incompletude, mas busca o estruturante e atenta aos detalhes, procura o todo.

Esta questão, presente na saúde, está também nos diferentes campos do conhecimento. Um dos autores que preconiza essa compreensão é Edgar Morin,1 quando propõe em seus livros a busca pela religação dos saberes, das conexões, que trazem a novidade.

A perspetiva linear, de busca de solução para problemas pontuais a partir da separação, foi importante em períodos an-teriores, quando não vivíamos em um contexto de grande com-plexidade. Hoje, o cartesiano, o analógico deu lugar ao digital, e neste espaço, as conexões não são lineares, são fluidas. Escorrem entre as possibilidades inauguradas pela fluidez. É através das conexões que o extraordinário comprometimento para cuidar dos pacientes e o incessante esforço para aplicar o conhecimento científico, tão promovidos por William Osler,2 se confirmam como competências atuais e necessárias a todo internista.

Pensar medicina hoje é pensar em retomar essa perspetiva sistémica. A tecnologia, precisa apoiar este olhar, mas não nos afastar da compreensão de um ser integral, um ser que respira e vive a partir de uma unidade: o corpo humano. Um ser que se reconhece no convívio e que não se explica por cada pedaço do corpo ou por parte do sistema.

A medicina interna ou clínica médica é a especialidade generalista que mantém um olhar ampliado para a pessoa com suas necessidades e problemas. Embora seja fácil entender a importância e o impacto que um clínico pode ter na vida de uma pessoa, vários fatores tem contribuído para uma baixa valorização do medico internista ao longo dos anos. Mesmo na perspetiva de diferentes sistemas de saúde, em diversos países, há um senso comum de que o especialista é melhor do que o generalista. David Epstein em seu livro chamado Range - Why generalists triumph in the specialized world - apresenta vários exemplos que provam o contrário. Para Epstein, as pessoas andam com todo o conhecimento da humanidade no seu celular, mas elas não tem ideia de como integrá-lo. As pessoas não estão sendo treinadas a pensar ou a raciocinar. A hiperespecialização pode ser catastrófica para a coletividade, mesmo quando cada indivíduo separadamente toma a decisão mais razoável.

Pensar saúde passa por pensar em um olhar que vai além, que tem profundidade no conhecimento vertical, mas que constrói diálogo horizontal entre as diferentes áreas do conhecimento, entre diferentes pessoas. Ser clínico nos dias de hoje, com a quantidade avassaladora de informações novas a cada dia, com a fragmentação do conhecimento e com tantas superespecialidades, é sobretudo um ato de resistência.

REFERÊNCIAS

1. Morin E. A Religação dos Saberes. São Paulo: Bertrand Brasil; 2001. [ Links ]

2. Prado F, Diehl L. William Osler: O Pai da Medicina Moderna. Londrina: Raciocínio Clínico; 2021. [ Links ]

3. Epstein D. Range - Why Generalists Triumph in a Specialized World. London: McMillan; 2019. [ Links ]

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