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Jornal Português de Gastrenterologia

versão impressa ISSN 0872-8178

J Port Gastrenterol. v.14 n.3 Lisboa maio 2007

 

Notas (Notes?) do Vento que Passa

 

Guilherme Macedo

 

 

The times, they are a - changin…

(Bob Dylan, 1964)

 

A ontogenia da Endoscopia Digestiva é uma história de conquistas, de desafios irreverentes sobre as fronteiras convencionais e indiscutivelmente, um espelho da importância da indústria tecnológica na moderna Medicina.

Ir mais longe e mais fundo, ver mais de perto e mais para dentro, foram paradigmas que progressivamente se tomaram intuitivos em quem pratica endoscopia. Ao longo dos anos foram-se discutindo os limites cognitivos da Gastroenterologia e do seu braço armado, a Endoscopia, pelo que cresceu a necessidade de se ir recriando uma nova realidade assistencial e académica em que a Gastroenterologia e a Endoscopia Digestiva passaram a ocupar um papel de chameira num volume importantíssimo de situações clínicas intra e extra hospitalares.

A aproximação dos saberes médicos e cirúrgicos a que esta nova realidade conduziu e simultaneamente pela sua progressiva autonomia tecnológica propositiva e gestual, tem obrigado muito expressivamente a um esforço significativo das estruturas hospitalares para compreenderem e sobretudo reajustarem-se para o novo cenário das decisões medico-cirúrgicas simbióticas, de que a Gastroenterologia e Endoscopia passaram a protagonizar. Todos conhecemos as extremas dificuldades que os gestores e as administrações têm em reformular e redimensionar os espaços hospitalares em função da Interactividade da nossa Especialidade, seja com a Urgência, com os Departamentos de Imagiologia, ou com a própria convivência nem sempre pacifica com os Departamentos de Medicina e Cirurgia.

Tomou-se claro que a nossa eficácia transcende largamente a capacidade diagn6stica, passando a ser avaliada pela nossa competência interventiva. Paulatinamente, fomos profanando os sagrados territórios da Cirurgia, pelas polipectomias, hemostase, dilatações esofágicas, extracção de corpos estranhos, tratamento da litíase, a paliação oncológica. Também o entusiasmo e arrojo dos jovens Médicos que durante anos e anos foram seleccionando a Gastroenterologia como forma de vida, optando os melhores candidatos em ondas sucessivas, por ocuparem os serviços hospitalares sob os quais haviam criado expectativas e projectos, trouxeram um sangue novo e uma ambição saudável e competitiva. Estes factos originaram uma sensível necessidade de alargar as malhas, que fomos sentindo como progressivamente mais apertadas, sensibilidade essa que torna muito penosa e quase insuportável a existência de quem consegue criar movimentos e quer crescer à cadência e pulsar da própria vitalidade.

A mescla dessa maturidade com esse desejo quase iconoclasta da interrogação ilimitada permanente, associado a um natural vigor expansionista da indústria tecnológica, foi o cadinho desta nova realidade, que devemos preparar-nos para enfrentar: A convergência e osmose progressiva dos conhecimentos e práticas gastroenterológicas com a Cirurgia.

Lançado o desafio, crispam-se os deuses, derretem-se as calotes polares, irrompem os magmas, agitam-se os mares e os céus: daqui surgirá um novo caminho de integração e algumas Unidades interdisciplinares, mais do que multidisciplinares, verdadeiros Centros ou Departamentos de Doenças Digestivas. Ficção?

Creio já tratar-se de uma realidade tangível: Uma das mais carismáticas conferências (David Sunn Lecture) da Reunião Anual do American College of Gastroenterology realizado em 2006 em Las Vegas teve como protagonista Anthony Kalloo, Director da Divisão de Gastroenterologia e Hepatologia da Universidade de John Hopkins, designando o NOTES como "o dealbar de uma nova era"; NOTES descreve a “Natural Orifice Transluminal Endoscopic Surgery”. Ficará o epónimo americano não traduzido, tal como para o TIPS ficou consagrado. Discutiu e exemplificou (como também o fez posteriormente no Curso de Endoscopia de Nova lorque em Dezembro) o actual fluxo de estudos laboratoriais, e foi revelando o que antevê como potencial das intervenções cirúrgicas transgástricas, os novos desafios colocados em termos de esterilização, a pressão tecnológica para o desenvolvimento, bem como as possíveis coordenadas futuras de expansão.

Entretanto, também a 1ª Conferência Internacional sobre NOTES já decorreu, em Março de 2006; A primeira revista Gastroenterology de 2006 sob o Consulado do novo editor, numa nova secção designada Imaging and Advanced Techonology, ataca o assunto, "take NOTES"; Formou-se o NOSCAR, Natural Orifice Surgery Consortium for Assessment and Research. E o que mais virá, e o que mais se seguirá…

Na Europa, estes trabalhos pioneiros vão-se desenvolvendo em algumas unidades hospitalares e académicas, lenta mas inexoravelmente: nos países nórdicos, na Alemanha, em Portugal. A intervenção na área digestiva já não tem a mucosa, nem a serosa, como limite, considere-se a visão por via intra-luminal ou por via extra-luminal. E como vamos então preparar os futuros actores neste admirável mundo novo?

Se conseguirmos romper com alguns dogmas de recentes gurus, que tão fundamentais foram para o nosso crescimento, não conseguiremos criar espaço para uma formação temporalmente integrada e sequencial de Gastroenterologistas e Cirurgiões?

Teremos de conseguir readaptar, uma vez mais, os curricula com os novos desafios, com novos parâmetros de formação e de certificação.

Resistências? Haverá muitas por certo, umas espontâneas e intuitivas, outras organizadas e redutoras. Lembro a este propósito, o comentário incisivo e jocoso do grande mestre Benhamou quando perante um caso clínico que discutíamos, interrogou a esse propósito um outro "attaché", francês de riso fácil perante a provocação à endoscopia "clássica" - perguntou a certa altura o Professor acerca dum doente," qual tinha sido a opinião dos homens ciclópicos?" Era uma clara alusão ácida aqueles que raciocinam mediante a visão afunilada que transportam na ponta proximal do endoscópio! Era essa a imagem que tinham de nós, mesmo os grandes protagonistas do passado que aprendemos a respeitar e considerar.

Duas dezenas de anos, que se tomaram anos rápidos, em que se assistiu a necessárias convulsões na própria natureza e aplicabilidade dos nossos gestos. Fomos coabitando intelectualmente ao longo dos anos com a sombra permanente de dois temores: um chamado Incerteza (com que nós médicos tantas dificuldades temos em encarar), outro chamado Cirurgiões!… Estes obviamente, porque foram corporizando os Anjos da Dúvida das Complicações Endoscópicas. E agora, subitamente, é com eles que nos vemos a conviver e a reformular o resto das nossas vidas... mas o advento está ai e agora: há que preparar mentalidades e morais estabelecidas, para os novos contornos do futuro.

Temos mais uma vez, de mostrar liberdade e disponibilidade. Estar preparados para aceitar e liderar um processo de aculturação.

Estar preparados para o desapontamento e para o júbilo. Para crescer, portanto.

 

 

Serviço de Gastrenterologia, Hospital de São Marcos, Universidade do Minho, Braga, Portugal.

 

 

Recebido para publicação: 30/04/2007

Aceite para publicação: 16/05/2007