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Jornal Português de Gastrenterologia

Print version ISSN 0872-8178

J Port Gastrenterol. vol.15 no.1 Lisboa Feb. 2008

 

Investigação clínica e epidemiológica: como preparar

 

Vitor Rodrigues *

 

 

A maior parte dos profissionais com conhecimentos em Epidemiologia e em Estatística foram já confrontados, por parte de outros Profissionais de Saúde envolvidos em trabalhos, mais ou menos elaborados e/ou complexos, de investigação, com a clássica pergunta: “já tenho os dados; agora necessito que os tratem”!

No entanto, numa infelizmente apreciável quantidade de vezes, verifica-se que o trabalho já executado, geralmente fruto de um enorme esforço, não permite um retorno correspondente ao investimento feito, pois não foi devidamente preparado e maturado e sem, nomeadamente, uma elaboração adequada da pesquisa bibliográfica, formulação de objectivos e explicita maturação dos métodos e dos materiais usados.

Na verdade, sem uma aparente “perda de tempo” inicial (amplamente justificada aquando da percepção global da investigação), é geralmente difícil, ou mesmo impossível, atingir os resultados inicialmente propostos, bem como a cabal satisfação que o entusiasmo, dedicação e empenho na procura de conhecimento justificariam.

Para além disso, basta reparar nos capítulos que um artigo científico publicado contém (título, autor ou autores, resumo, introdução, material e métodos, resultados, discussão, conclusões, bibliografia, agradecimentos e anexos) para verificar que grande parte deles podem e devem fazer parte do chamado “protocolo de investigação”, anterior ao processo de “recolha de dados” (título, autor ou autores, introdução, material e métodos, bibliografia e anexos).

Iremos, assim, e numa perspectiva rápida e simples, elencar sumariamente os princípios da “perda de tempo” inicial.

 

1. Revisão da Literatura (“Estado da Arte”)

Nesta etapa deve recolher-se a bibliografia directa ou indirectamente existente sobre o tema – de notar que alguma já existe normalmente, pois auxiliou o início do processo mental da investigação.

A bibliografia recolhida deverá enquadrar o que existe sobre o tema e, sobretudo como a investigação foi realizada, pois qualquer assunto pode e é perspectivado e enquadrado de diferentes formas, cada qual com as suas vantagens, desvantagens e características.

Por outro lado, atenção especial deverá ser dada às circunstâncias em que decorreram esses trabalhos, qual a população-alvo, quais os resultados encontrados, quais os erros e desvios encontrados, de modo a que o nosso trabalho os tente evitar, e que se enquadre à nossa população- alvo.

 

2. Definição do Objectivo

Dois dos erros mais frequentemente encontrados consistem, umas vezes, na ausência de explicitação do objectivo, que conduz normalmente a alguma “deriva” no decorrer da recolha de dados consoante o que vamos encontrando, e outras vezes, na prossecução de vários objectivos (mais ou menos claros) que dificultam a concretização da investigação ou que obrigam a concessões na metodologia e nos materiais utilizados.

A regra de ouro parece ser a delimitação dos objectivos a um ou a dois, de modo ao trabalho ser exequível e coerente.

 

3. Planeamento e Desenho do Estudo

Será, porventura, a fase mais importante do processo global de investigação, pois irá definir a construção de todo o edifício, assemelhando ao trabalho de um arquitecto. A definição do tipo de estudo é crucial; teremos de decidir se se trata de um estudo experimental, em que o investigador induz a manobra – ele é que decide a intervenção – como nos ensaios clínicos, ou se de um estudo de observação (em que apenas observa as causas e os efeitos de algo que aconteceu). A decisão tem a ver com os objectivos, a exequibilidade e a ética.

E no caso dos estudos de observação, se um desenho descritivo se um desenho inferencial: nomeadamente de metodologia caso-controlo – em que após a selecção de indivíduos segundo a presença ou ausência da doença em causa se pesquisa a presença ou ausência de factores de risco (exposição) – ou de metodologia de coorte – em que se selecciona presença ou ausência de exposição a algo e se estuda a sua evolução (ou não) para as doenças associadas; para além das características, vantagens e desvantagens associadas aos dois desenhos, há que atender aos indicadores (mais ou menos descriminativos e informativos) que cada um nos pode fornecer. E quais os indicadores a estudar? Indicadores primários e secundários? Indicadores de estrutura, processo e resultados? Que indicadores de risco – números absolutos, taxas, razões, riscos relativos, riscos absolutos, sobrevivências, intervalos livres de doença,….?

O passo seguinte consiste em definir se queremos (ou podemos) estudar toda a população ou apenas um subgrupo (uma amostra). Neste caso há que decidir sobre o tipo de amostragem, probabilística ou de conveniência, a sua metodologia (como consigo os casos) e a sua representatividade e probabilidade de generalização. Além disso, quantos casos queremos para, com um nível de significância de x e umamargem de erro de y, termos a confiança desejada nos resultados, isto é, qual a confiança que podemos ter nos resultados obtidos.

A definição de variáveis é importante. Temos que as seleccionar, definir e elaborarmos a sua mensuração. Por exemplo, a idade pode ser definida em anos, em grupos etários ou em, por exemplo, jovens, adultos e idosos. E essa decisão tem a ver com dois aspectos essenciais: se as descriminarmos mais, temos sempre a possibilidade de os associar, o que não acontece no inverso; por outro lado, as variáveis quantitativas são tratadas por técnicas paramétricas e as qualitativas por técnicas não-paramétricas. Deste modo, se tal definição não for realizada de início, a análise estatística pode ficar imediatamente comprometida.

Como não é possível realizar estudos sem erros e sem desvios, uma atenção especial deverá ser dada a este aspecto. Na verdade, uma boa investigação deve ter em linha de conta a antecipação deles, e o raciocínio sobre aspectos, para além dos anteriormente colocados, como o controlo da “não-resposta” ou “não-participação”, a formação dos entrevistadores, a “ocultação” para evitar ou minimizar a introdução de subjectividade, a padronização de procedimentos, a adequação, validação e estandardização dos instrumentos de medida (mesmo que qualitativa), são factores vitais para a validade interna e externa do nosso estudo.

A consciencialização e a habituação do raciocínio sucintamente descrito serão, deste modo, factores fundamentais para que o processo de investigação permita uma satisfação dos investigadores, quer pela qualidade do trabalho que se faz, quer pela maior confiança que se retira dos resultados obtidos.

 

 

 

* Professor Associado de Medicina Preventiva e Saúde Pública, Faculdade de Medicina, Universidade de Coimbra, Portugal.