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Jornal Português de Gastrenterologia

versão impressa ISSN 0872-8178

J Port Gastrenterol. v.16 n.5 Lisboa nov. 2009

 

A Hepatite E existe em Portugal? Claro que sim

 

Rui Tato Marinho*

 

A hepatite E é uma das últimas hepatites E víricas em termos de alfabeto e classicamente uma das mais esquecidas. Tem sido considerada como de pouca relevância clínica e epidemiológica nos países ocidentais.1

Algo votada ao esquecimento nos curricula das Faculdades de Medicina, vindo a seguir às hepatites “mais importantes” (nomeadamente a A, B, C) a informação que lhe diz respeito tem acentado em meia dúzia de ideias feitas: é de transmissão fecal-oral, logo semelhante à hepatite A, era uma das hepatites ditas não-A, não-B a par da hepatite C; o vírus da hepatite E (VHE), também um vírus RNA, tem sido responsável por algumas das grandes epidemias de hepatites víricas, mas bem longe de nós, lá para o continente asiático, África e México.

Era referido também que não evoluiria para a cronicidade, em tudo semelhante à hepatite A. O risco de complicações é, no entanto, mais elevado nas grávidas, com evolução para hepatite fulminante em cerca de 20-25% dos casos. Além do mais, não havia referência à vacina.

Os primeiros testes comercializados, há cerca de 15 anos, revelaram que afinal a hepatite E poderia existir também no Mundo Ocidental. Estes testes tinham alguns problemas de sensibilidade e especificidade.2,3 Os primeiros resultados em Portugal seriam apresentados em 1994 no Congresso Nacional de Gastrenterologia. Nesse estudo foram avaliados 360 soros, incluindo 50 alunos da Faculdade de Medicina. Curiosamente, nos alunos a prevalência foi de 4% (2/50). Os testes de primeira geração, em conjugação com a aparente raridade da doença, não chegaram a entrar de forma clara na marcha diagnóstica, mesmo pela maioria dos que se dedicam à hepatologia.

No entanto, nos últimos anos têm surgido algumas novidades relacionadas com a hepatite E não só no que diz respeito à sero-epidemiologia, forma de transmissão, como também história natural e vacinação.

Com efeito a hepatite E não está confinada aos continentes de maior risco. Estudos recentes descrevem casos esporádicos de hepatite E em indivíduos de países da Europa Ocidental, sem história de viagens a áreas endémicas. O interessante estudo de Sara Folgado e colaboradores4 é exemplo deste facto. Foram seleccionados 237 indivíduos (152 doentes do Departamento de Gastrenterologia e 85 dadores de sangue saudáveis) para doseamento do anti-VHE total: 10 foram positivos para o anti-VHE (7 do grupo de doentes – 4,6% e 3 do grupo de dadores saudáveis – 3,5%). Apenas dois dos sete do primeiro grupo de doentes (20%) tinham história de viagens a países endémicos. O teste empregue foi um teste imunoenzimático, já de terceira geração. Neste estudo, alguns dos doentes que tinham o anti-VHE positivo eram seguidos por cirrose hepática alcoólica. Desconhece-se em

pormenor a sua história epidemiológica, mas é de chamar a atenção para o facto de que a hepatite E pode desencadear formas graves de descompensação neste grupo de doentes. Na discussão, muito actual, do trabalho de Sara Folgado são abordados alguns tópicos da maior pertinência, não só a questão da evolução para a cronicidade,5 inclusivé cirrose hepática bem como a classificação da hepatite E como sendo uma zoonose porcina. Será a hepatite suína, correspondente hepática da gripe suína (H1N1)? Como se sabe, um dos países de elevada prevalência é o México, e para as duas infecções, hepatite E e gripe A (suína). A hepatite E é comprovadamente uma zoonose, sendo transmissível do porco para o Homem, particularmente o genótipo 3. Curiosamente, os criadores de porcos e javalis registam valores de positividade para o anti- VHE superiores à população em geral.6,7 Nos porcos a hepatite E cursa habitualmente de forma assintomática.

Teve lugar recentemente em Antuérpia, em Março de 2009, uma importante reunião, no âmbito dos encontros do grupo Viral Hepatitis Prevention Board “hepatitis A and E. Update  on prevention and epidemiology”. Nela estiveram presentes epidemiologistas, virologistas, biólogos, intensivistas, especialistas em vacinas e clínicos com larga experiência na hepatite E. Os estudos revelam que a seroprevalência na Europa oscila entre 2-3% (Norte da França) e 16% (Sul da França), e na hepatite aguda ronda os 6% de casos. A prevalência é superior naqueles que lidam com porcos (11-55% na Holanda) mais elevado do que na população geral. Nesta reunião foi debatida também a questão da vacina. Existem dois laboratórios, com capacidade de a produzir, ambas por recombinação genética. A vacinação consta de três doses. Algumas das comunicações estão disponíveis no site8.

Em conclusão, o estudo de Sara Folgado, vem demonstrar que:

 • À semelhança do que se tem encontrado nos países Europeus, incluindo os da orla mediterrânica (Espanha,9 França, Itália, Holanda,10 Reino Unido11), existem casos de hepatite E em Portugal. A hepatite E existe de forma evidente nos países da Europa Ocidental.

• Este estudo demonstrou que, em Portugal, país não  endémico, 4,2% da população estudada era seropositivapara o anti-VHE.

• Nem sempre se encontra a presença dos factores epidemiológicos clássicos (i.e. viagem a países endémicos). Os testes correntes, de 3ª geração, têm já uma boa acuidade diagnóstica. Estão disponíveis em Portugal o anti-VHE total, o IGM anti-VHE, o ARN VHE.

Existe vacina para a hepatite E, já testada no Homem, eficaz e segura. A vacina não está ainda comercializada, pensamos que por dificuldades na viabilização económica da sua produção.12 Outra das novidades mais recentes é o facto de que, no contexto de imunossupressão (e.g transplantados), a hepatite E pode evoluir para a cronicidade (hepatite crónica) e mesmo para cirrose hepática.

 

 

Bibliografia

 

1. Dalton HR, Bendall R, Ijaz S, Banks M. Hepatitis E: an emerging infection in developed countries. Lancet Infect Dis 2008;8:698-709.

2. Reyes GR, Purdy MA, Kim JP, Luk KC, Young LM, Fry KE, et al. Isolation of a cDNA from the virus responsible for enterically transmitted non-A,non-B hepatitis. Science 1990;247:1335-9.

3. Marinho R, Raimundo M, Serejo F, Velosa J, Ramalho F, Carneiro de Moura M. Seroepidemiologia da hepatite E: resultados preliminares. XIV Congresso Nacional de Gastrenterologia, Porto, Junho 1994. GE - J Port Gastrenterol 1994;1:35S.        [ Links ]

4. Folgado S, Pires S, Félix J, Figueiredo A, Silva L, Franco M, et al. Prevalência da hepatite E em população não endémica – estudo prospectivo. GE – J Port Gastrenterol 2009;16:191-197.        [ Links ]

5. Kamar N, Selves J, Mansuy JM, Ouezzani L, Péron JM, Guitard J, et al. Hepatitis E virus and chronic hepatitis in organ-transplant recipients. N Engl J Med 2008;358:811-7.

6. Galiana C, Fernández-Barredo S, García A, Gómez MT, Pérez-Garcia MT. Occupational exposure to hepatitis E virus in swine workers. Am J Trop Med Hyg 2008;78:1012-15.

7. Halbur PG, Kasorndorkbua C, Gilbert C, Guenette D, Potters MB, Purcell RH, et al. Comparative pathogenesis of infection of pigs with hepatitis E viruses recovered from a pig and a human. J Clin Microbiol 2001;39:918–23.

8. Viral Hepatitis Prevention Board. www.vhpb.org. Acesso em Outubro de 2009.

9. Pina S, Buti M, Cotrina M, Piella J, Girones R. HEV identified in serum from humans with acute hepatitis and in sewage of animal origin in Spain. J Hepatol 2000;33:826–33.

10. Waar k, Herremans MM, Vennema H, Koopmans MG, Benne CA. Hepatitis E is a cause of unexplained hepatitis in The Netherlands. J Clin Virol 2005;33:145-9.

11. Lewis H, Boisson S, Ijaz S, Hewitt K, Ngui S, Boxall E, et al. Hepatitis E in England and Wales. Emerging Infect Dis 2008;14:165-7.

12. Shrestha MP, Scott RM, Joshi DM, Mammen MP Jr, Thapa GB, Thapa N, et al. Safety and efficacy of a recombinant hepatitis E vaccine. N Engl J Med 2007;356:895–903.

 

*Gastrenterologista e Hepatologista, Hospital Santa Maria, Centro Hospitalar Lisboa Norte Prof. Auxiliar da Faculdade de Medicina de Lisboa

Adviser of the Viral Hepatitis Prevention Board (WHO Collaborating Centre for the Prevention and Control of Viral Hepatitis) www.vhpb.org