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Jornal Português de Gastrenterologia

versão impressa ISSN 0872-8178

J Port Gastrenterol. v.17 n.2 Lisboa mar. 2010

 

Divertículo de Meckel: diagnóstico por enteroscopia de duplo balão

 

Susana Mão de Ferro1, Jaime Midões Correia1, António Dias Pereira1, Paula Chaves2, Rui Casaca3, Carlos Nobre Leitão1

1Serviço de Gastrenterologia, Instituto Português de Oncologia de Lisboa de Francisco Gentil, EPE (IPOLFG,EPE);

2Serviço de Anatomia Patológica, IPOLFG,EPE;

3Serviço de Cirurgia, IPOLFG,EPE

Correspondência

 

Resumo

Homem de 18 anos, com três episódios de hemorragia digestiva nos últimos 5 anos. Foram efectuadas endoscopia digestiva alta, colonoscopia, enteroclise, enteroscopia por cápsula, TAC abdominal, cintigrafia com 99mTc-pertecnetato e enteroscopia de duplo balão por via oral que não identificaram a etiologia da hemorragia. Realizou-se enteroscopia de duplo balão por via retrógrada tendo-se observado, no íleon, formação sugestiva de divertículo de Meckel. Foi submetido a diverticulectomia por laparoscopia. A histologia revelou mucosa gástrica ulcerada. O divertículo de Meckel é um dos diagnósticos diferenciais em jovens com hemorragias digestivas obscuras. A enteroscopia por duplo balão tem-se mostrado útil no diagnóstico desta entidade em indivíduos com um estudo cintigráfico negativo.

Palavras-chave: Enteroscopia de duplo balão, Divertículo de Meckel, Hemorragia digestiva obscura.

 

Meckel´s diverticulum diagnosed by double ballon enteroscopy

Abstract

An 18 year-old man presented with recurrent (three episodes) GI bleeding. Esophagogastroduodenoscopy, colonoscopy, enteroclysis, capsule endoscopy, abdominal CT, 99mTc-pertechnetate scintigraphy and double balloon enteroscopy using the oral route failed to identify the source of the bleeding. Double-balloon enteroscopy using the anal route was performed. We detected in the mid-ileum a diverticular formation compatible with the diagnosis of Meckel’s diverticulum. Laparoscopic diverticulectomy was performed and ulcerated ectopic gastric mucosa was detected at histology. Meckel´s diverticulum should be suspected in young patients with recurrent GI bleeding. Double-balloon enteroscopy has been reported to be useful in the diagnosis of this entity in patients with a negative scintigraphic study.

Keywords: Double-ballon enteroscopy, Meckel´s diverticulum, Obscure GI.

 

 

INTRODUÇÃO

O divertículo de Meckel (DM) é uma entidade descrita pela primeira vez em 18061. É a malformação mais frequente do tubo digestivo e está presente em 2 a 3% da população.

O DM resulta do encerramento e obliteração incompletos do canal onfalomesentérico. É, tipicamente, um divertículo pequeno, de boca larga, que se localiza no bordo anti-mesentérico dos 100 cm distais do íleon. Existe mucosa ectópica (geralmente gástrica ou pancreática) em cerca de 55% dos casos.

O DM é, geralmente, assintomático, sendo um achado incidental durante cirurgias abdominais ou em autópsias. Contudo, em 15 a 20% dos casos, poderá associar-se a dor abdominal ou a complicações, nomeadamente hemorragia e oclusão intestinal2.

Embora as características clínicas, histopatológicas e as complicações do DM sejam bem conhecidas, o seu diagnóstico é muitas vezes problemático.

A cintigrafia com 99mTc-pertecnetato, que se baseia na captação do pertecnetato pela mucosa gástrica ectópica, é o método clássico de diagnóstico. Esta técnica tem uma sensibilidade de 85% e uma acuidade de 90% para o diagnóstico do DM em crianças3. Contudo as suas sensibilidades e acuidades na população adulta são de apenas 63% e 43%4.

A enteroscopia de duplo balão (EDB) é um procedimento endoscópico de desenvolvimento recente que permite, potencialmente, a observação de todo o intestino delgado5. O sistema de duplo balão inclui um enteroscópio e um “overtube” flexíveis, ambos com um balão na sua extremidade distal, os quais, ao serem insuflados de forma alternada, permitem fixar o aparelho à parede intestinal e a progressão do enteroscópio no intestino delgado. A insuflação de ambos os balões possibilita a rectificação do aparelho de forma a evitar a formação de ansas redundantes. Esta técnica tem-se mostrado útil no diagnóstico e tratamento da patologia do intestino delgado, evitando a realização e repetição de múltiplos exames complementares de diagnóstico bem como a realização de enteroscopias intra-operatórias.

A EDB pode ser efectuada por via anterógrada (introdução do aparelho pela boca) ou por via retrógrada (introdução pelo ânus). Estima-se que por cada via de introdução seja possível a observação de metade a dois terços da extensão do intestino delgado ou, em casos excepcionais, a observação da totalidade do intestino delgado6. A enteroscopia total é geralmente conseguida utilizando uma das abordagens, tatuando o limite de progressão com tinta-da-china e completando posteriormente a avaliação utilizando a outra via de introdução. A escolha da via de inserção inicial é dependente do local provável de lesão identificado por outras técnicas. Nos casos em que não existe uma localização provável da lesão optamos por iniciar a nossa exploração por via oral já que a abordagem por via retrógrada é mais complexa e associada a uma taxa de insucesso por falência na intubação do íleon terminal de 20 a 30%7.

CASO CLÍNICO

Apresentamos o caso clínico de um indivíduo do sexo masculino, actualmente com 18 anos de idade, com uma história de anemia ferropénica e hemorragia digestiva de repetição com 5 anos de evolução.

O doente tinha historial médico irrelevante até aos 13 anos de idade, altura em que desenvolveu hematoquezias/melenas com repercussão hemodinâmica e analítica (hemoglobina de 8,5 g/dl). Para investigação etiológica da hemorragia digestiva efectuou endoscopia digestiva alta (EDA) e colonoscopia com ileoscopia terminal que não revelaram alterações.

Três anos mais tarde observou-se novo episódio de hemorragia digestiva com hematoquesias. Efectuou novamente EDA onde não foram observadas lesões e colonoscopia com ileoscopia terminal, tendo-se detectado sangue em todo o cólon e íleon terminal, sem se identificar a origem da hemorragia. Efectuou, em seguida, estudo radiológico do intestino delgado por enteroclise que não mostrou lesões, enteroscopia por cápsula que apenas revelou hiperplasia linfóide do íleon terminal e TAC abdominal que foi normal. A cintigrafia com 99mTc-pertecnetato também não mostrou alterações, nomeadamente fixações anómalas do isótopo. A EDB por via oral, com progressão até ao jejuno distal, não detectou qualquer lesão potencialmente sangante.

Um ano depois, aos 17 anos de idade, observou-se novo episódio de hemorragia digestiva baixa com hematoquezias abundantes. Foram repetidas a EDA e colonoscopia que não revelaram lesões, tendo-se observado novamente abundante sangue no cólon. Foi efectuada nova enteroscopia por cápsula, que não detectou lesões mas que apresentou um atraso na progressão da cápsula no íleon médio que não permitiu a visualização completa do intestino delgado.

O doente foi submetido a EDB por via retrógrada, tendo-se observado, no íleon médio, formação diverticular, com cerca de 5 cm, com mucosa de aspecto atrófico. No fundo do divertículo observou-se anel que se ultrapassou para zona em fundo de saco (Fig. 1 a,b,c). Os achados foram considerados sugestivos de DM.

 

Fig. 1. No íleon médio identifica-se formação diverticular com cerca de 6 cm com mucosa de aspecto atrófico (a e B). No fundo do divertículo observa-se anel (C) que se ultrapassa para zona que termina em fundo de saco.

 

O doente foi submetido a excisão do divertículo por via laparoscópica (Fig. 2). A avaliação histológica confirmou o diagnóstico de DM e a presença de mucosa gástrica ectópica ulcerada (Fig. 3).

 

Fig. 2. Cirurgia com identificação de Divertículo de Meckel

 

 

Fig. 3. Avaliação histológica de divertículo de Meckel A- Mucosa Gástrica (1) e mucosa intestinal (2) com intensa actividade inflamatória; B- Mucosa Gãstrica com inflamação ligeira; C- Fundo de úlcera.

 

O pós-operatório decorreu sem intercorrências e o doente encontra-se assintomático e sem qualquer alteração analítica.

 

DISCUSSÃO

O desenvolvimento da EDB melhorou de forma significativa a avaliação do intestino delgado5, permitindo a observação endoscópica completa deste segmento do tubo digestivo, a colheita de material para histologia e a realização de vários procedimentos terapêuticos, nomeadamente hemostase, polipectomia e dilatação com balão.

No presente caso, e apesar da extensa avaliação efectuada ao longo dos anos com a realização e repetição de inúmeros exames complementares de diagnóstico, a EDB foi o único exame que permitiu estabelecer o diagnóstico de DM, evitando a realização de enteroscopia intra-operatória.

Estão descritos na literatura vários casos de diagnóstico de DM por EDB8-13. Na maioria dos doentes este diagnóstico foi estabelecido após terem sido efectuados inúmeros exames complementares de diagnóstico, incluindo, tal como no caso agora descrito, a realização de exames endoscópicos (endoscopia digestiva alta, colonoscopia com ileoscopia, e cápsula endoscópica) e imagiológicos (tomografia computorizada abdominal, cintigrafia com 99mTc-pertecnetato e, em alguns casos, angiografia), com referência à sua repetição após os vários episódios de hemorragia.

Assim, tendo em conta a baixa sensibilidade da cintigrafia com 99 Tm-pertecnetato na população adulta, a EDB deve ser equacionada em todos os indivíduos com suspeita clínica de DM, nomeadamente em adultos jovens com episódios de hemorragia digestiva recidivante.

 

 

Referências

1. Meckel J. Über die divertikel am Darmkanal. Arch Physiol 1809;9:421-453.        [ Links ]

2. Park J, Wolff B, Tollefson M, Walsh E, Larson D. Meckel diverticulum: the Mayo Clinic experience with 1476 patients (1990-2002). Ann Surg 2005;241:529-533.

3. Sfakianakis G, Conway JJ. Detection of gastric mucosa in Meckel´s diverticulum and in other aberrations by scintigraphy:I. Pathophysiology and 10-year clinical experience. J Nucl Med 1981;22:647-654.

4. Schwartz M, Lewis J. Meckel´s diverticulum: pitfalls in scintigraphic detection in the adult. Am J Gastroenterol 1984;79:611-618.

5. Yamamoto H, Kita H, Sunada K, et al. Clinical outcomes of double-balloon endoscopy for the diagnosis and treatment of small-intestinal diseases. Clin Gastroenterol Hepatol 2004;2:1010-1016.

6. Tanaka S, Mitsui K, Tasuguchi A, et al. Current status of double balloon endoscopy – indications, insertion route, sedation, complications, technical matters. Gastrointest Endosc 2007;66:S30-S33.

7. Simon K. Technical matters in double ballon enteroscopy. Gastrointest Endosc 2007;66:S15-S18.

8. Gasbarini A, Di Caro S, Mutignani M, et al. Double-balloon enteroscopy for diagnosis of a Meckel´s diverticulum in a patient with GI bleeding of obscure origin. Gastrointest Endosc 2005;61:779-781.

9. Manner H, May A, Nachbar L, et al. Push and pull enteroscopy using the double balloon technique (double-balloon enteroscopy) for the diagnosis of Meckel´s diverticulum in adult patients with GI bleeding of obscure origin. Am J Gastroenterol 2006;101:1152-1154.

10. Chen CM, Chao CC, Chiu HH. Meckel´s diverticulum with recurrent bleeding diagnosed by double-balloon enteroscopy. Clin Gastroenterol Hepatol 2007;5:e40-41.

11. Nakashima Y, Nakamura I, Miyatani H, et al. Double-balloon enteroscopy for the diagnosis of Meckel´s diverticulum in a patient with gastrointestinal bleeding. Endoscopy 2007; Suppl 1:140-141.

12. Honda K, Mizutani T, Higuchi N, et al. A Meckel´s diverticulum with an ileal ulcer detected with double-balloon enteroscopy. Endoscopy 2007; Suppl 1:e160.

13. Pasha S, Leighton J, Decker A. Meckel´s diverticulum with recurrent bleeding diagnosed by double-balloon enteroscopy. Clin Gastroenterol Hepato 2007;5:A32.

 

Correspondência: Susana Mão de Ferro; Serviço de Gastrenterologia, IPOLFG.EPE; R. Prof. Lima Basto; 1500 Lisboa; E-mail: smaodeferro@gmail.com.

 

Recebido para publicação: 11/02/2008 e Aceite para publicação: 30/09/2008