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Jornal Português de Gastrenterologia

Print version ISSN 0872-8178

J Port Gastrenterol. vol.17 no.4 Lisboa Aug. 2010

 

Diarreia de causa particular num indivíduo imunocompetente?

 

Cátia Quintela1, Cláudia Meireles2, Maria João Bettencourt1, Teresa Bentes1

1Serviço de Gastrenterologia do Centro Hospitalar de Lisboa Central – Hospital Santo António dos Capuchos,

2Serviço de Anatomia Patológica do Centro Hospitalar de Lisboa Central – Hospital São José

Correspondência

 

Resumo

A colite a citomegalovírus em imunocompetentes é rara. Existe evidência que causa morbilidade e mortalidade nos imunocomprometidos. Os autores descrevem o caso de uma doente de 75 anos, admitida por diarreia com sangue, com 4 semanas de evolução com antecedentes de Diabetes Mellitus, Insuficiência cardíaca e renal crónica. Ao exame objectivo apresentava-se descorada, desidratada, hipotensa, com insuficiência cardíaca descompensada, abdómen indolor. Laboratorialmente verificou-se anemia, insuficiência renal crónica agudizada com acidose metabólica e aumento da proteína C reactiva. Após estabilização procedeu-se a investigação tendo realizado vários exames dos quais colonoscopia total que mostrou: mucosa de aspecto edemaciado e hiperemiado com úlceras de diferentes tamanhos, com distribuição segmentar, atingindo todo o cólon. O exame anatomo-patológico revelou: colite a citomegalovírus. A doente realizou terapêutica com ganciclovir com melhoria clínica, endoscópica e histológica.

 

Diarrhea with specific cause in a immunosuppressed patient?

Abstract

Cytomegalovirus colitis in the immunocompetent host is rare but there is a higher morbidity and mortality in this group of patients. The authors describe a case of a 75-year-old woman patient admitted for bloody diarrhea over four weeks with a past history of diabetes, cardiac and chronic renal failure. Physical exam revealed dehydration, skin pallor, hypotension with signs of cardiac failure. Laboratory tests revealed anemia; chronic renal failure with acidosis and increased reactive C-protein. After stabilization Colonoscopy was performed which showed: swollen mucosa and ulcers of different sizes, with distribution target, in the entire colon. Histopathology was compatible with cytomegalovirus colitis. The patient was treated with ganciclovir with clinical, endoscopic and histological improvement.

 

INTRODUÇÃO

A prevalência do citomegalovírus (CMV) é bastante elevada (40-100%) na população, mas a infecção é, assintomática, ou nalguns casos semelhantes a uma síndrome mononucleósica1. Os casos graves de infecção pelo CMV atingem os imunodeprimidos, em particular os com síndrome da imunodeficiência adquirida (SIDA), transplantados, sob terapêutica imunossupressora (corticosteróides, imunomoduladores) entre outros1. A colite a CMV no imunocompetente é uma entidade rara em Portugal surgindo com maior frequência na gastrenterologia nos doentes com doença inflamatória intestinal sob imunossupressores. Nos doentes com mais de 55 anos a mortalidade é de 31,8%1.

 

CASO CLÍNICO

Doente do sexo feminino com 75 anos de idade, eurocaucasiana, admitida no Serviço de Urgência por diarreia de 5-6 dejecções diárias, líquidas, diurnas e nocturnas, com sangue escuro, sem pus ou muco, durante 4 semanas. A esta associa-se dor abdominal, tipo cólica, em todos os quadrantes, sem irradiação, que alivia parcialmente com paracetamol, não associada a tenesmo ou falsas vontades, febre, náuseas, vómitos, anorexia ou emagrecimento; sem aftas, artralgias, alterações cutâneas ou da visão. Negava viagens recentes a países tropicais, toma de antibióticos, cirurgias anteriores, transfusões de sangue.

Antecedentes pessoais de: Diabetes Mellitus tipo 2 (DM2); insuficiência cardíaca (IC); insuficiência renal (IR) crónica; fibrilhação auricular (FA); hipertensão arterial (HTA); medicada com insulina, metformina, furosemido, amiodarona, cilazapril; sem etilismo ou toxicofilia.

 

Fig. 1 Colonoscopia: úlceras múltiplas segmentares.

 

Fig. 2. Intestino distal com inflamação crónica e alterações regenerativas (HE 40x)

 

Exame objectivo à entrada: obesa, descorada, desidratada, temperatura axilar (Tax)=36,4ºC, TA: 85/45mmHg, FC+/- 56 bpm; ingurgitamento jugular de 3 cm a 45º; auscultação cardiopulmonar (ACP) - S1 e S2 arrítmicos, tons puros, sem sopros e murmúrio vesicular diminuído no terço inferior do hemitórax esquerdo com fervores crepitantes dispersos; observação abdominal: indolor, sem tumor abdominal palpável ou organomegálias, ruídos hidroaéreos presentes e puros. Edema dos 2/3 inferiores dos membros inferiores. Exame neurológico sumário: doente sonolenta mas reactiva à estimulação verbal, sem défices motores ou sensitivos.

Laboratorialmente destacou-se: hemoglobina (Hb) = 6,0 g/dl (12 – 16), hematócrito (Htc) = 18,6% (37 – 47), VGM = 82,3fl (85 – 100), HGM = 26,5pg (27 – 34), CHGM = 32,2g/dl (32 – 36), Leucocitos = 4800/μL (4000 – 10800) com 77,2% (45 – 72%) de neutrófilos, plaquetas = 194000/μL (150000 – 500000), ferro = 23 mg/dl (50 – 150), transferrina = 140g/L (200 – 400), ferritina = 238,3 (15 – 300) ng/mL; doseamentos-vitamina B 12 = 505pg/mL (200 – 900); ácido fólico = 4,3 ng/mL (6 – 20); PCR = 16,3 (<0,5); ureia(U) = 181 mg/dl (17 – 55); creatinina(Cr) = 4,63 mg/dL (0,7 – 1,3); sódio = 136 mEq/l (135 – 152); potássio(K+) = 6,6 mEq/l (3,5 – 5,2); cloro = 108 mEq/l (95 – 109); cálcio = 6,1 mg/dl (8,5 – 10,5); fósforo = 4,7 mg/dl (2,2 – 4,4); magnésio = 1,43 mg/dl (1,5 – 2,0); gasimetria de sangue arterial – pH = 7,13 (7,35 – 7,45); pCO2 = 44,8 mmHg (35 – 45); HCO3 = 14,3 mmol/L (24 – 34); pO2 = 30,2 mmHg (90 – 110); SaO2 = 54,8% (95 – 99); urina II – ρ = 1014, leucocitúria = 25/uL; glicose = 200mg/dL (60 – 110); albumina = 2,4g/dl (3,0 – 5,0); parâmetros de coagulação e transaminases, gamaglutamil transpeptidase (gGT) e fosfatase alcalina normais. Telerradiografia de tórax: hipotransparência do terço inferior do hemitórax esquerdo; ECG: FA com resposta ventricular +/– 55 bpm; Ecografia renal: sem alterações. Fez transfusão com 2U CE com recuperação do valor de Hb (Hb = 8,1g/dL). Pela IR e acidose metabólica refractárias à terapêutica efectuou hemodiálise, com melhoria (pH = 7,39; HCO3 = 22,2 mmol/L; U = 111 mg/dl; Cr = 2,74 U/L; K+ = 5,4). Função tiroideia: normal.

A tomografia computorizada (TC) toraco-abdomino-pélvica mostrou: nódulo de 2 cm, no segmento basal do lobo inferior esquerdo pulmonar com características sequelares, restante exame sem alterações (sem massas nem adenopatias).

O teste de Mantoux foi negativo. As hemoculturas e urocultura negativas; coproculturas e pesquisa de ovos, quistos e parasitas – negativas; serologias para – Yersinia enterocolica e Campylobacter jejunii, negativas; serologia CMV – (IgM = 1,15 negativa; IgG = 110 positiva); pesquisa da toxina de Clostridium difficile nas fezes – negativa. A serologia HIV 1/2 foi negativa e os doseamentos de imunoglobulinas e caracterização das subpopulações linfocitárias foram normais.

 

Fig. 3. Citomegalia com corpos de inclusão nucleares (HE 100x)

 

Fig. 4. Corpos de inclusão com imunomarcação positiva com anti-CMV (100x).

 

A colonoscopia mostrou: mucosa edemaciada e hiperemiada com úlceras de diferentes tamanhos com distribuição segmentar, atingindo sobretudo o cólon direito e válvula ileo-cecal, ileon terminal com aspecto erosionado. Efectuaram-se biópsias seriadas em todos os segmentos com friabilidade.

O exame histopatológico revelou: mucosa intestinal distal com inflamação crónica moderada, células com corpos de inclusão com imunomarcação positiva para CMV compatível com colite a citomegalovírus.

A doente realizou terapêutica para a IC, IR, FA, HTA, DM2 tendo evoluído favoravelmente sem, no entanto, ter ocorrido melhoria. Realizou ganciclovir 400 mg 12/12 horas endovenoso durante 21 dias tendo-se verificado, ao 5º dia remissão da diarreia e melhoria da Hb (9,8g/dl). Manteve-se assintomática (3 meses); com serologia CMV (IgM negativa/ IgG positiva com título >250) e colonoscopia de controlo sem evidência de lesões. Foi realizada a posteriori a entero-TC que não demonstrou lesões no delgado.

 

DISCUSSÃO

O CMV tem uma prevalência de 40 a 100% e pode causar doença grave por reactivação de infecção latente, primo-infecção em indivíduos imunodeprimidos ou superinfecção1-2. Nos imunocompetentes pode manifestar-se como síndrome mononucleósica e a infecção severa é rara1-2. Quando afecta o tubo digestivo afecta sobretudo o cólon (55%) ou o estômago (40%)2-3. No cólon manifesta-se com diarreia, hematoquézia, tenesmo, urgência defecatória e dor abdominal1-2. Atinge sobretudo o cólon esquerdo e a pancolite é rara3. O aspecto endoscópico pode variar desde eritema ligeiro, erosões mucosas, ulceração profunda e tumor submucoso com úlcera ou até perfuração3. O diagnóstico baseia-se na serologia, isolamento viral, detecção do antigénio pp65 no sangue ou detecção viral em cultura, biópsia, imunohistoquímica ou PCR (polymerase chain reaction)2. Do ponto de vista histológico, as células gigantes com inclusões basofílicas intranucleares (owl’s eye = olho de coruja) e por vezes, citoplasmáticas no endotélio e células da lâmina própria e submucosa são típicas1-2.

Perante o caso clínico apresentado de mulher de 75 anos, eurocaucasiana, com diarreia crónica com sangue, com características de organicidade, com DM2, IC, insuficiência renal crónica, anemia ferropénica, imagem sequela pulmonar na TC, colocamos várias hipóteses diagnósticas.

A colite infecciosa (bacteriana / parasitária) é uma das hipóteses, contudo, as coproculturas e pesquisa de ovos, quistos e parasitas foram negativas, tal como as serologias para Yersínia enterocólica e Campylobacter jejunii. A colite pseudomembranosa foi excluída dada a pesquisa da toxina A nas fezes para o Clostridium difficile ser negativa.

A tuberculose disseminada (nódulo pulmonar sequelar) poderia ser uma hipótese, pois esta bactéria atinge sobretudo a região ileo-cecal (devido a ser uma zona de estase fisiológica, com elevada absorção de água e electrólitos e escassa actividade bacteriana)4, mas também a sigmoideia, cólon ascendente e transverso, até pancolite4 e em 20% dos casos atinge o cólon de forma descontínua5. O teste de Mantoux e as hemoculturas para Mycobacterium foram negativas, e a histologia também excluí esta hipótese4-5.

A colite isquémica poderia apresentar-se desta forma, incluindo a distribuição segmentar, no entanto, os locais mais afectados são o ângulo esplénico e hepático, cólon descendente e sigmóide. Não estão descritos casos de pancolite por isquémia, nem de atingimento ileal e a histologia excluiu esta hipótese.

A clínica, associada ao aspecto endoscópico pode, apesar da idade da doente levar-nos a pensar em doença inflamatória intestinal. A distribuição segmentar é típica de doença de Crohn (DC), tendo sido uma hipótese colocada. A posteriori com o resultado histológico das biópsias, com a presença de células com corpos de inclusão e a imunomarcação positiva para CMV excluiu esta hipótese.

A colite a CMV num indivíduo imunocompetente (dada termos excluído imunodeficiência primária e secundária, humoral e celular) é rara. Sabemos que a Diabetes Mellitus tipo 2 condiciona algum grau de imunossupressão, no entanto, após estabilização dos valores da glicemia, a doente manteve a diarreia com as mesmas características.

Não existem recomendações actuais para o uso de ganciclovir na colite a CMV nos imunocompetentes6, mas também não existem contra-indicações ao seu uso pois o benefício é desconhecido. Nestes doentes, a estabilização da função cardíaca, renal e da diabetes leva à remissão6. No entanto, foi descrito que em doentes com mais de 55 anos ou com comorbilidades (Diabetes Mellitus, insuficiência renal, por exemplo), a terapêutica com ganciclovir é mandatória1 e a mesma foi realizada nalguns casos descritos na literatura com eficácia. Assim, por não se verificar melhoria, medicou-se com ganciclovir com remissão da diarreia e das alterações endoscópicas.

 

REFERÊNCIAS

1. Carter D, Olchovsky D, Pokroy R, et al. Cytomegalovirus-associated colitis causing diarrhea in an immunocompetent patient. World J Gastroenterology 2006;12:6898-6899.

2. Rafailidis P, Mourtzoukou E, Varbobitis I, et al. Severe cytomegalovirus infection in apparently immunocompetent patients: a systematic review. Virology Journal 2008;5:47-53.

3. Lin W, Su M, Hsu C, et al. Clinical and endoscopic features for alimentary tract cytomegalovirus disease: report of 20 cases with gastrointestinal cytomegalovirus disease. Chang Gung Med J 2005;28:476-483.

4. Shah S, Thomas V, Mathan M, et al. Colonoscopic study of 50 patients with colonic tuberculosis. Gut 1992;33:347-351.        [ Links ]

5. Alvares J, Devarbhavi H, Makhija P, et al. Clinical, colonoscopic and histological profile of colonic tuberculosis in a tertiary hospital. Endoscopy 2005;37:351-356.

6. Klauber E, Briski L, Khatib R. Cytomegalovirus colitis in the immunocompetent host. Scand J Infect Dis 1998;30:559-564.

 

Correspondência:

Cátia Quintela

Alameda Santo António dos Capuchos – 1150 Lisboa;

E-mail: catia.quintela63@gmail.com

 

Recebido para publicação: 16/07/2008 e Aceite para publicação: 17/05/2010.