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Jornal Português de Gastrenterologia

Print version ISSN 0872-8178

J Port Gastrenterol. vol.18 no.3 Lisboa May 2011

 

Hepatoscopia

Hepatoscopy

 

Paula Veiga1

1Mestre em História e Cultura Pré-Clássica por Lisboa, e Ciências Biomédicas e Forenses para Egiptologia por Manchester

 

Fig. 1. Fígado de argila com secções dedicadas aos deuses, onde se colocavam marcas correspondentes às zonas observadas no fígado do animal, notando-se marcas divinatórias de relevância a serem interpretadas. ©The Trusteesof the British Museum.

 

 

Os antigos Egípcios conservavam o fígado, os intestinos, os pulmões e o estômago em vasos, depois de os tratarem com unguentos próprios que se destinavam a conservá-los para a vida no além, acompanhando o defunto mumificado.

Quem fazia a adivinhação? Na Roma Antiga um haruspex, do Latim auspex (auspício), era um homem treinado para a adivinhação, haruspício, hepatoscopia ou hepatomancia. O haruspício 1 seria o acto de inspeccionar as entranhas de animais sacrificados para o efeito: cordeiros, ovelhas, cabras ou carneiros (bois e cabras na Grécia). O animal tinha que ter a melhor aparência possível; só os melhores exemplares serviam para o sacrifício ritual. Os haruspex (adivinho) tinham que estar impecavelmente limpos para proceder à adivinhação, tal como estavam no antigo Egipto os sacerdotes praticantes de rituais. Lavagem, depilação, fumigações com incenso e orações faziam parte do ritual de purificação antes do acto.

Esta consulta teria como objectivo saber quais as intenções dos deuses, as quais seriam reflectidas na alma. Para os Babilónios, o fígado era o ‘assento’ da vida e, portanto, a sede da alma humana2. Os deuses tutelares doharuspício eram Shamash, deus-sol, e Adad, deus do oráculo3. O acto ritual era praticado no exterior para que os deuses pudessem participar activamente, de dia e com sol; se realizado de noite, as oferendas eram feitas a Sin, deus da lua, requisitando a sua assistência, conjuntamente com as estrelas. A prática começou na antiga Babilónia (diferentes autores apontam para 5000 a.C., 3500 a.C. e o reinado de Sargão I da Babilónia – 2280 - 2215 a.C.), mas esta continuou a ser praticada pelos povos da Palestina, Fenícios, Gregos, Etruscos e Romanos. Desde aproximadamente 652 a.C., Assurbanipal, 685 - 627 a.C., último rei do Império Neo-Assírio, ordenava que se registassem estes extispícios, o que nos dá a possibilidade de comparar teoria e prática4. Os reis assírios até levavam adivinhos consigo nas campanhas militares...5. Já os antigos Egípcios também davam extrema importância ao fígado, como reporta o papiroEbers de cerca de 1550 a.C.

A facilidade do exame poderá ter começado ao abrir uma ovelha; o fígado está muito próximo da superfície abdominal, na zona centro-direito, e é de fácil manipulação. A suavidade natural do órgão faz com que qualquer anomalia seja facilmente detectável, e sendo umorgão muito irrigado de sangue, a sua escolha como órgão divinatório era óbvia. Na época dos monoteísmos, as referências ao fígado continuaram, talvez por herança cultural e proximidade das culturas. Nos ensinamentos do profeta Mohammed, o termo fígado húmido refere-se à alma e o Livro dos Salmos, Salmo 30, refere o fígado como sede das emoções; ‘o fígado canta’; nas traduções ocidentais esta palavra foi substituída pela palavra coração.

Modelos em argila e bronze de fígados de carneiros foram encontrados em diversas escavações arqueológicas das antigas Assíria e Babilónia. Mais de 30 espécimes foram também encontrados onde antes se situava a antiga cidade de Mari (exemplares no Louvre). A maior parte das tábuas de argila com textos de adivinhação ainda se encontram por estudar, pois os académicos não têm grande admiração por estas práticas, considerando-as ainda meras superstições.

Existem vários volumes da extensa colecção de publicações sobre a colecção doBritish Museum em Londres que referem os textos de extispicium6, o exame daexta, a víscera, a prática de consultar as entranhas de animais para prever ou adivinhar eventos futuros. Um projecto importante nesta área está a ser desenvolvido pelo Prof. Irving Finkel7.

Os modelos encontrados mostram como os fígados de argila eram divididos em secções com orifícios no centro, mostrando marcações cuneiformes, e em cada uma delas representado o nome de uma divindade. À medida que observavam o fígado do animal, os adivinhos marcavam os quadrantes correspondentes, formando um mapa no modelo de argila. A hepatoscopia analisava os lobos superiores e inferiores do fígado, seus apêndices, a vesícula biliar, os canais cístico e hepático e as veias. Os sinais no lado direito do fígado eram favoráveis, e os da esquerda desfavoráveis. Pedaços de madeira ou marcas eram então colocados nos orifícios do modelo.

O sacerdote qualificado para esta adivinhação era o barû8, o animal escolhido era o amutu, por ser considerado mattalat šame, o "espelho do Céu." O animal e o deus a consultar tornavam-se então num só. O barû não se limitava a observar o fígado e os intestinos, como até há algum tempo se pensava; estudava também os pulmões, os rins e todas as vísceras que lhe pareciam importantes para o diagnóstico.

Como eram interpretadas então as vísceras? O exame começava pelo fígado e vesícula biliar, na direcção contrária aos ponteiros do relógio, depois inspeccionavam-se os pulmões, e os outros órgãos eram vistos genericamente; os anéis do cólon eram contados e qualquer tipo de marca em forma geométrica era analisada. As zonas do fígado que chamavam primeiro a atenção seriam os lobos inferiores esquerdo e direito, o lobo superior com os seus dois apêndices, o processus pyramidalis e o processus papillaris, a vesícula biliar, o canal cístico, o canal hepático, o canal biliar comum, a veia hepática e a veia porta9. O número de marcas ou tiranu eram depois analisadas10. Alguns exemplos de resultados desta adivinhação: uma inversão da proporção habitual do lobo significava uma inversão da ordem natural das coisas, portanto, um escravo podia dominar o seu senhor ou um filho revoltar-se contra o seu pai. Uma veia hepática defeituosa à esquerda podia significar a derrota em breve dos seus inimigos. Uma vesícula biliar inchada era interpretada como um possível aumento de poder. Um canal cístico longo seria equivalente a um reinado longo, uma depressão na porta do fígado, uma perda de sucessos...11.

Não se registando alterações na forma ou cor, não havia nada de preocupante a assinalar. Uma vez que não existem dois fígados exactamente iguais do ponto de vista anatómico, a variedade de previsões que o barû podia fazer era imensa. No caso de persistirem os sinais desfavoráveis, um segundo animal era sacrificado para nova consulta, e um terceiro... O ritual era relatado por escrito, e, como tal, um escriba fazia o papel de secretário, apontando notas no barûtu, o manual de apontamentos12. Não se sabe o que faziam depois, se aproveitavam o animal para consumo, quais os procedimentos de limpeza empregues, uma vez que o local deveria ficar semelhante a uma mesa de autópsias...

Diagnósticos e prognósticos clínicos, assim como tratamentos, eram confirmados por rotina com o extispício, conforme relata o médico-chefe Urad-Nanaya, ao serviço do rei Esarhaddon ou Esar-Hadom (681 - 669 a.C.), pai de Assurbanípal. Autores contemporâneos que estudam esta prática comparam as descrições feitas em textos gregos com as práticas contemporâneas de hepatoscopia e análise de outras vísceras em África, para tentar perceber como estas seriam feitas na antiguidade13.

Existem espécimes de argila de origem babilónica e assíria no Museum of Science de Londres, no British Museum de Londres e no Louvre em Paris 32 , bem como no museu de Chiusi e no de Piacenza, sendo estes italianos de origem etrusca. Existem também exemplares, algunshititas, em museus na Síria, Turquia e outros em Israel.

 

 

REFERÊNCIAS

1. L. S. King, M. C. Meehan. A history of the autopsy. A review. American Journal of Pathology 1973;73:514-544.        [ Links ]

2. Reuben, A. The body has a liver.Hepatology 2004;39:1179-1181.        [ Links ]

3. Nougayrol Jean. Les rapports des haruspicinesétrusque et assyrobabylonienne et le foie d'argile deFalerii Veteres (Villa Giulia 3786), in Comptes-rendus des séances del'année, Académie des inscriptions et belles-lettres, 1955;99eannée, N. 4, pp. 509-519.        [ Links ]

4. Koch-Westenholz, Ulla. Babylonian liver omens: the chaptersManzazu, Padanu and Pantakalti of the Babylonianextispicy series mainly from Aššurbanipal's library, Volume 25 of Carsten Niebuhr Institute Publications, Museum Tusculanum Press, 2000.        [ Links ]

5. Kuntz, 2006, Hepatology: principles and practice: history, morphology, biochemistry, diagnostics, clinic, therapy, Birkhäuser.        [ Links ]

6. Derek Collins. Mapping the Entrails: The Practice of Greek Hepatoscopy. American Journal of Philology 2008;129:319-345.        [ Links ]

7. www.britishmuseum.org/the_museum/departments/staff/middle_east/irving_finkel.aspx (Acesso em Abril 2011)        [ Links ]

8. Reading Livers Through Reading Literature: HEPATOSCOPY and HARUSPICY in Iliad 20:469 ff & 24:212 ff,Aeneid 4:60 ff & 10.175 ff, Cicero and Pliny on Divination, among others, http://traumwerk.stanford.edu/archaeolog/2007/09/reading_livers_through_reading_1.html (Acesso em Abril 2011)        [ Links ]

9. Jastrow, Morris. Hepatoscopy and Astrology in Babilonia and Assyria – Proceedings. American Philosophical Society 1908;47.        [ Links ]

10. Lutz, H. F. ACassite Liver-Omen Text. Journal of the American Oriental Society 1918;38:77-96.        [ Links ]

11. Osler, W. Hepatoscopy among the Babylonians. JAMA 1988;259:1949.        [ Links ]

12. Robson, Eleanor. Sacrificial divination: confirmation by extispicy, Knowledge and Power. Higher Education Academy 2010.        [ Links ]

13. Derek Collins. Mapping the Entrails: The Practice of Greek Hepatoscopy. American Journal of Philology 2008;129:319-345.        [ Links ]