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Jornal Português de Gastrenterologia

versão impressa ISSN 0872-8178

J Port Gastrenterol. vol.18 no.6 Lisboa nov. 2011

 

Enteroscopia Intra-Operatória e Hemorragia Enteral – A Indicação Mantém-se

 

Pedro Figueiredo1, Alexandre Duarte2, Patrícia Duarte1, André Oliva2, Carlos Gregório1, Hermano Gouveia1, Maximino Leitão1

1Serviço de Gastrenterologia - Hospitais da Universidade de Coimbra, Avenida Bissaya Barreto - 3000-075 Coimbra, Portugal; 2Serviço de Cirurgia 1 - Hospitais da Universidade de Coimbra, Avenida Bissaya Barreto - 3000-075 Coimbra, Portugal

Correspondência

 

RESUMO

Relatamos o caso de um doente de 63 anos com hemorragia originária no intestino delgado. Dada a presença de insta­bilidade hemodinâmica, que obrigou à suspensão da enteroscopia com duplo balão, foi submetido a enteroscopia intra-operatória com abordagem por via oral. As lesões encontradas incluem três angiodisplasias, tratadas com árgon-plasma, e duas úlceras, que foram ressecadas. A enteroscopia intra-operatória poderá ser uma opção terapêutica em pacientes com sangramento com origem no intestino delgado, designadamente quando evidenciem instabilidade hemodinâmica.

PALAVRAS-CHAVE: Enteroscopia intra-operatória; hemorragia digestiva.

 

Intraoperative Enteroscopy In Small Bowel Bleeding – The Indication Stands

 

ABSTRACT

We report the case of a 63-year-old with small intestinal bleeding. Due to the fact that he was hemodynami­cally unstable, double-balloon enteroscopy had to be suspended. Urgent laparotomy with intraoperative enteroscopy by an orally passed endoscope was done. Three angiodysplasic lesions were treated with argon-plasma coagulation and two bleeding ulcers were accurately identified and resected. Intraoperative enteroscopy may be a therapeutic option, namely in unstable patients with small intestinal bleeding.

KEYWORDS: Intraoperative enteroscopy; digestive bleeding .

 

 

INTRODUÇÃO

A enteroscopia intra-operatória (EIO) mantém a sua utilidade nesta era da cápsula e da enteroscopia assistida por balão. De facto, a sua aplicação está bem documentada, fazendo parte dos algoritmos diagnósticos e terapêuticos da hemorragia digestiva média1. A sua limitação advém da necessidade de realização de laparotomia, bem como de enterotomias2. Descreve-se o caso de um paciente com hemorragia activa e instabilidade hemodinâmica submetido a uma EIO sem necessidade de enterotomia.

 

CASOCLÍNICO

Um indivíduo do sexo masculino, com 63 anos, foi admitido por melenas e hematoquezias. Apresentava estabilidade hemodinâmica, um teor de hemoglobina de 8,4 gr% e um hematócrito de 24,8%. Não relatava toma de anti-inflamatórios não esteróides e nos seus antecedentes pessoais havia uma história de linfoma não Hodgkin diagnosticado em 1989, em remissão.

Tratava-se de um paciente com quatro internamentos por hemorragia digestiva nos nove meses precedentes, tendo sido transfundido com um total de 24 unidades de glóbulos vermelhos. Tinha sido previamente submetido a vários exames complementares de diagnóstico, incluindo uma endoscopia digestiva alta, que mostrou estenose péptica franqueável pelo endoscópio, e uma colonoscopia total com ileoscopia terminal que não evidenciou a presença de lesões. O estudo cintigráfico para a detecção do divertículo de Meckel tinha sido negativo, tendo a enteroscopia com cápsula mostrado a presença de várias angiodisplasias não sangrantes no delgado médio (fig. 1) e uma pequena úlcera no intestino delgado distal (fig. 2), 4 horas após o piloro. A enteroscopia com duplo balão, realizada por via retrógrada em internamento anterior, não tinha permitido alcançar, apesar da progressão profunda no íleon, as lesões referenciadas pela cápsula, não se tendo evidenciado, na altura, a presença de sangue.

 

Fig. 1. Angiodisplasia ileal (seta)

 

Fig. 2. Úlcera no íleon

 

Dada a admissão por novo quadro de sangramento, foi submetido a uma segunda avaliação por enteroscopia com duplo balão que mostrou a presença de grande quantidade de sangue vivo no cólon, tendo o procedimento sido suspenso por o doente ter desenvolvido um quadro de hipotensão. Optou-se, então, pela realização de angiografia selectiva do tronco celíaco, artéria hepática, mesentéricas superior e inferior que não mostrou hemorragia activa. Dado que o doente mantinha sangramento e instabilidade hemodinâmica foi submetido a EIO, tendo-se constatado, por observação externa logo após a laparotomia, que existia sangue em algumas ansas ileais e do cólon. Procedeu-se à introdução do enteroscópio FN 450-P5/20 (Fujinon Inc., Japan), sem o sistema de balões, por via oral, tendo sido possível progredir, com o auxílio do cirurgião, e sem que houvesse necessidade de realização de enterotomia, até ao cego. Ao longo do trajecto detectaram-se três lesões angiodisplásicas que foram fulguradas com argon-plasma e duas úlceras superficiais localizadas a 60 e 280 cm a montante da válvula íleo-cecal que foram ressecadas. O procedimento decorreu sem complicações imediatas, tendo o doente tido alta sem recidiva hemorrágica sete dias após a intervenção cirúrgica com um teor de hemoglobina de 12 gr% e um hematócrito de 35%. O estudo histológico das lesões revelou apenas alterações inespecíficas.

O doente foi observado seis meses após a cirurgia, não tendo ocorrido recidiva hemorrágica até essa data, apresentando um teor de hemoglobina de 12,6 gr%.

 

DISCUSSÃO

A EIO era considerada como a forma mais comum de realização de enteroscopia total antes do aparecimento da cápsula endoscópica3. A sua indicação no estudo dos pacientes com hemorragia digestiva de causa obscura, no entanto, mantém-se. De facto, de acordo com a “American Gastroenterological Association” (AGA), este procedimento deverá ser considerado como a última opção nos casos de hemorragia digestiva de causa obscura ou quando a enteroscopia com duplo balão não pode ser realizada devido à presença de aderências ou a outros factores técnicos1. Perante uma hemorragia maciça, a recomendação da AGA é de que o doente seja submetido a uma angiografia, seguida de enteroscopia com cápsula caso o estudo imagiológico seja negativo, ou de uma enteroscopia com duplo balão ou EIO caso seja positivo1.

No nosso paciente, a ocorrência de um quadro de instabilidade hemodinâmica com persistência do sangramento obrigou à suspensão do procedimento endoscópico, no caso, a enteroscopia com duplo-balão. A ineficácia da angiografia selectiva fica, possivelmente, a dever-se ao fraco débito do sangramento na altura em que foi realizada. Optou-se então, em último recurso, pela execução de EIO, o que permitiu, através de um procedimento que combinou hemostase endoscópica com ressecção cirúrgica, um tratamento eficaz da hemorragia. Justifica-se uma nota relativa à etiologia indeterminada das úlceras ileais ressecadas, achado já bem documentado na literatura, quer tendo por base achados endoscópicos4, quer tendo por base estudos histológicos5. Caso semelhante, mas sem que houvesse estudo endoscópico prévio do intestino delgado, foi relatado por Hsu e col6.

A eficácia da EIO no tratamento dos doentes com hemorragia digestiva de causa obscura está bem comprovada, designadamente no trabalho de Douard e col.7 onde se relata que 70% dos pacientes tratados com recurso a este procedimento não apresentaram recidiva do sangramento após um período médio de seguimento de 19 meses. De acordo com a técnica recomendada, a observação endoscópica é feita com a ajuda do cirurgião, que fixa a ponta do endoscópio ao mesmo tempo que assegura que um segmento do intestino delgado está rectificado, permitindo a sua observação8. A realização de enteroscopia com duplo balão assistida por laparoscopia está já descrita na literatura, tendo sido relatado o caso de três doentes com Síndroma de Peutz-Jeghers9.

A possibilidade de realização de enteroscopia total no contexto da EIO é, naturalmente, um objectivo a atingir. A utilização de enteroscopia por sonda10 ou a dupla abordagem, oral e anal11, poderão ser técnicas utilizáveis. No entanto, o abandono da enteroscopia por sonda1,12 e a necessidade de limpeza intestinal prévia no caso da dupla abordagem limitam a sua utilização. As opções restantes incluem a realização de enterotomia ou a abordagem por via oral. O comprimento do aparelho no caso da opção pela via oral é determinante, dado que a realização de EIO por via oral com recurso a colonoscópio apenas permite alcançar o íleon médio13. A consulta das séries publicadas mostra que a preferência dos autores vai para a realização de enterotomia2,14-17, mesmo quando ambas as abordagens são utilizadas7,18.

A realização de EIO com abordagem oral, ao evitar o recurso a enterotomias, poderá contribuir para a redução da morbilidade e mortalidade que se associam a esta técnica1. O aumento do número de sistemas de enteroscopia assistida por balão disponíveis no nosso país poderá vir facilitar a realização de EIO, dado que a utilização dos longos enteroscópios que esses mesmos sistemas integram, poderá permitir dispensar a realização de enterotomias.

Com a apresentação deste caso clínico pretende-se salientar o lugar que a EIO continua a ocupar no processamento terapêutico dos doentes com hemorragia digestiva com origem no intestino delgado, designadamente nos casos em que existe instabilidade hemodinâmica. A utilização de um longo enteroscópio, ao permitir uma enteroscopia total sem a necessidade de enterotomia, poderá facilitar a abordagem destes pacientes.

 

 

REFERÊNCIAS

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Correspondência: Pedro Figueiredo; Serviço de Gastrenterologia, Hospitais da Universidade de Coimbra; Avenida Bissaya Barreto - 3000-075 Coimbra, Portugal; E-mail: pnf11@sapo.pt;