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Jornal Português de Gastrenterologia

versão impressa ISSN 0872-8178

J Port Gastrenterol. vol.19 no.6 Lisboa nov. 2012

https://doi.org/10.1016/j.jpg.2012.09.003 

Aumento alarmante da incidência da diarreia associada ao clostridium difficile em Portugal

 

Alarming increasing rates of clostridium difficile associated diarrhea in Portugal

 

Miguel Bispo

Serviço de Gastrenterologia, Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental - Hospital de Egas Moniz, Lisboa, Portugal

Correio eletrónico: gastrohem@chlo.min-saude.pt

 

Artigo relacionado com: http://dx.doi.org/10.1016/j.jpg.2012.07.011

Na última década, vários estudos epidemiológicos documentaram um aumento preocupante da incidência, da gravidade e das taxas de recorrência da diarreia associada ao Clostridium difficile (DACD), em várias áreas do globo1-3. Mais recentemente, tem vindo a aumentar a atenção sobre a proporção significativa de infeções por C. difficile adquiridas na comunidade, salientando-se que a análise da DACD em doentes hospitalizados subestima o espectro de manifestações e a verdadeira incidência da doença4,5.

Este aumento da incidência da DACD tem sido explicado não apenas pela melhoria significativa dos métodos de deteção do C. difficile (nomeadamente, pela disponibilização de ensaios imunoenzimáticos simples de executar, mais sensíveis e específicos), mas também por fatores atribuíveis ao agente (salientando-se a emergência da estirpe virulenta BI/NAP1/027) e pelo aumento de outros fatores de risco associados à infeção (em particular, a crescente utilização de antibióticos, de inibidores da bomba de protões e de imunossupressores)1-3,6.

Em Portugal, os dados epidemiológicos relativos à infeção por C. difficile são limitados. Vieira AM et al.7, na análise dos casos de DACD internados num hospital central entre janeiro de 2000 e dezembro de 2007 (n = 93), documentaram uma incidência anual média de 3,71/10 000 internamentos. Nesse estudo português, salienta-se o aumento exponencial da incidência de DACD no ano 2007: incidência anual de 15,4/10 000 internamentos em 2007, um aumento superior a 7 vezes comparativamente ao ano 2000. Resultados epidemiológicos semelhantes relativos à incidência anual da DACD em doentes hospitalizados foram apresentados em Espanha, com um aumento da incidência anual de 3,9 para 12,2 casos por 10 000 internamentos, entre 1999 e 20078. Neste último estudo, o aumento da incidência anual da DACD correlacionou-se com o aumento da proporção de doentes internados a quem foram prescritos antibióticos8.

No presente número do GE, no artigo intitulado «Diarreia associada ao Clostridium difficile - casuística de 9 anos», Dinis Silva J et al. apresentam uma análise retrospetiva de 37 casos de DACD num hospital distrital, diagnosticados entre 2000 e 2008. Este estudo obriga a refletir sobre as potenciais causas subjacentes ao aumento da incidência desta infeção documentada nos últimos anos. Salienta-se a grande variabilidade da incidência anual da DACD no período estudado: 2/10 000 internamentos em 2000 versus 16/10 000 internamentos em 2008. Este aumento exponencial da incidência no último ano incluído no estudo é equiparável ao aumento da incidência apresentado por Vieira AM et al. num hospital central português7. Na análise dos fatores de risco conhecidos de DACD entre diferentes períodos do estudo, os autores salientam 2 dados interessantes: 1 - os antibióticos carbapenemes estiveram mais vezes implicados nos casos de DACD no ano 2008 comparativamente a 2000-2007 (6/16 versus 1/21, respetivamente, p = 0,01); e 2 - a utilização de inibidores da bomba de protões foi proporcionalmente superior nos casos de DACD no ano 2008, comparativamente a 2000-2007 (11/16 versus 6/21, respetivamente, p = 0,02). Estes dados levam a refletir sobre a potencial influência dos padrões de prescrição de antibióticos e de inibidores da bomba de protões no aumento da incidência da DACD. Ao mesmo tempo que assistimos a uma crescente e preocupante utilização de carbapenemes na rotina hospitalar, em particular nas instituições com elevadas taxas de resistência entre as bactérias Gram negativas9, surgem relatos de que os carbapenemes poderão associar-se a um maior risco de DACD comparativamente aos antibióticos que mais se têm associado à infeção por C. difficile nos estudos prévios (penicilinas, cefalosporinas, clindamicina e fluoroquinolonas)10,11. Num estudo retrospetivo recente de grande dimensão, que procurou identificar fatores de risco de DACD após terapêutica antibiótica de infeções pós-operatórias, apenas a utilização de carbapenemes teve influência na incidência de DACD, correspondendo a um aumento do risco de 1,7-vezes comparativamente ao uso de outros antibióticos10. Relativamente aos inibidores da bomba de protões, cuja associação com a DACD tem sido objeto de controvérsia, uma metaanálise recente indica um aumento de 65% da incidência de DACD nos doentes medicados com inibidores da bomba de protões, recomendando-se a sua utilização criteriosa na profilaxia da doença ulcerosa em doentes internados12.

No estudo de Dinis Silva et al., relativamente à análise dos potenciais fatores de risco de DACD entre coortes temporais (período de maior incidência - 2008, versus o restante período - 2000 a 2007), deve-se considerar o seguinte: 1- O aumento da incidência pode dever-se, em grande parte, ao aumento de casos diagnosticados, pela maior utilização de ensaios imunoenzimáticos (que detetam as toxinas A e B nas fezes) no ano 2008, conforme referido pelos autores; 2 - Não foram analisadas as estirpes de C. difficile implicadas, sabendo-se que a ocorrência de surtos da doença está frequentemente associada à emergência de estirpes particularmente virulentas1-3; 3 - Não foram avaliados os índices de gravidade dos doentes internados, que são determinantes na suscetibilidade à DACD, e a maior proporção de casos graves («casos complicados») de DACD verificada no ano 2008 permaneceu não esclarecida. Por último, sendo um estudo retrospetivo não controlado, não é possível definir uma relação de causalidade entre as variáveis analisadas e a ocorrência de ACD nos diferentes períodos do estudo.

Resumindo, o estudo de Dinis Silva et al. aborda um tema de grande relevância na atualidade, cujos dados epidemiológicos em Portugal são limitados. Os resultados apresentados são consistentes com outro estudo português, metodologicamente semelhante, realizado num hospital central7. É reforçada a necessidade do uso criterioso de antibióticos de largo espectro (em particular, de carbapenemes) e de inibidores da bomba de protões em meio hospitalar, que estiveram implicados numa maior proporção de casos de DACD no ano de maior incidência da doença. Importa realizar estudos prospetivos controlados, utilizando testes padronizados, de forma a definir o real aumento da incidência da DACD em Portugal (na comunidade e no meio hospitalar) e os potenciais fatores com maior repercussão na epidemiologia da doença, com especial atenção para a emergência de estirpes virulentas.

 

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