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Jornal Português de Gastrenterologia

Print version ISSN 0872-8178

J Port Gastrenterol. vol.20 no.5 Lisboa Sept. 2013

https://doi.org/10.1016/j.jpg.2013.03.002 

EDITORIAL

 

Hepatite autoimune em idade pediátrica

Auto immune hepatitis in pediatrics

 

Adélia Simão

Serviço de Medicina Interna, Hospitais da Universidade de Coimbra, Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, Coimbra, Portugal

Correio eletrónico: adeliasimao@gmail.com

 

A hepatite autoimune (HAI) é uma doença necroinflamatória hepática de etiologia desconhecida, que surge em crianças e adultos de todas as idades, sendo mais frequente no sexo feminino. Caracteriza-se por evolução flutuante, pela presença de hiperglobulinemia (IgG), de alguns autoanticorpos circulantes e pela resposta à terapêutica imunossupressora. Se não for tratada, geralmente progride rapidamente para cirrose e insuficiência hepática1-3.

Distinguem-se dois tipos de HAI, consoante o perfil de autoanticorpos: tipo I com anticorpos antinucleares (ANA) e/ou antimúsculo liso (SMA) e tipo II com anticorpos antimicrosomas do fígado e rim tipo I (anti-LKM1)1-3.

Na idade pediátrica, a HAI é mais frequente no sexo feminino (75%) e o pico de incidência acontece antes da puberdade; a epidemiologia é desconhecida, mas o tipo I é responsável por 2/3 dos casos e apresenta-se habitualmente na adolescência, enquanto o tipo II ocorre em idades mais jovens. Os níveis de IgG estão geralmente elevados em ambos os tipos (mas com valores normais em 15% das crianças com HAI tipo I e em 25% com HAI tipo II, aquando do diagnóstico)2. A deficiência de IgA é frequente na HAI tipo II, tendo estes doentes maior tendência para se apresentarem com falência hepática aguda. É comum a associação de ambos os tipos a outras doenças autoimunes (cerca de 20%) e a história familiar de doença autoimune (40%). A HAI tipo II pode fazer parte da síndrome de distrofia ectodérmica com poliendocrinopatia e candidíase autoimune (APECED), uma doença autossómica recessiva com envolvimento hepático acontece em 20% dos casos3.

A incidência da HAI estimada para a população branca da Europa e da América do Norte varia entre 0,1-1,9/100.000/ano. O conhecimento da doença hepática autoimune infantil provém de publicações baseadas em crianças caucasianas, como, por exemplo, um estudo dinamarquês, que confirma a sua raridade, ao encontrar apenas 33 crianças tratadas num centro de referência para uma população de cerca de 2,5 milhões de habitantes, num período de 17 anos4.

Neste número do Jornal Português de Gastrenterologia (GE) é publicada uma casuística de HAI em idade pediátrica com um número significativo de doentes (n = 33), com um período de seguimento prolongado (20 anos), dando-nos a conhecer a realidade desta patologia num centro português, ainda que não acrescente conhecimento científico sobre a HAI na criança.

São poucas as casuísticas de HAI em idade pediátrica publicadas na literatura internacional e até há pouco tempo não havia dados portugueses publicados relativos a esta faixa etária. Curiosamente, num número recente do GE foi publicada uma casuística de doença hepática autoimune na criança e no adolescente, de um outro centro português, incluindo 20 doentes (10 com HAI, 7 com colangite esclerosante primária e 3 com síndrome de sobreposição), num período de 19 anos5. Comparando os casos de HAI de ambas as casuísticas portuguesas, verifica-se que existem semelhanças relativamente ao predomínio do sexo feminino, mediana de idades de aparecimento da sintomatologia idêntica, forma de apresentação aguda num número significativo de casos (pelo menos 50%) e boa resposta à terapêutica imunossupressora.

A raridade da doença hepática autoimune, patente nestas casuísticas, pode, em parte, ser devida a insuficiência de diagnóstico, que se baseia na exclusão de outras causas de doença hepática mais frequentes e num padrão clínico, bioquímico, imunológico e histológico sugestivo. No entanto, não existem achados patognomónicos, pelo que se deve pensar em HAI em todos os doentes com hepatite aguda ou crónica de causa indeterminada, incluindo casos de hepatite aguda grave. Nesses casos, devem pesquisar-se os anticorpos antinucleares (ANA), antimúsculo liso (SMA), antiLKM1 (e, eventualmente, antiLC1) e se nenhum for positivo podemos estar perante uma HAI seronegativa, então devemos questionar o diagnóstico e determinar outros autoanticorpos (antiASGPR, antiSLA/LP, PANCA, pANNA). A biopsia inicial está recomendada para apoiar o diagnóstico e ajudar na decisão terapêutica1-4. Nos casos mais difíceis deve recorrer-se aos critérios e sistemas de pontuação de diagnóstico e ter em conta a possibilidade de síndromes de sobreposição.

Na idade pediátrica, à semelhança do que acontece nos adultos, a HAI pode apresentar-se de 3 formas: crónica; aguda, semelhante a hepatite aguda viral ou tóxica, podendo ser fulminante; assintomática, provavelmente subdiagnosticada ao não avaliar corretamente alterações das enzimas hepáticas. A HAI parece ser mais grave na criança do que no adulto, pois aquando da apresentação mais de 50% têm cirrose e as formas mais ligeiras da doença são muito menos observadas. Dos 33 casos de HAI agora apresentados, em 63,6% (n = 21) a forma de apresentação foi hepatite colestática aguda. Destes, 2 crianças tinham critérios de insuficiência hepática aguda, com necessidade de internamento em cuidados intensivos. Cinco doentes eram assintomáticos, tendo sido detetadas alterações analíticas em exames de rotina. O curso mais agressivo da doença e relatos de que o atraso no diagnóstico e tratamento afetam negativamente a evolução levam a que se considere deverem ser tratadas com imunossupressores todas as crianças com HAI, de forma diferente ao que acontece no adulto1. Não existem estudos randomizados e controlados sobre tratamento de HAI pediátrica, mas vários estudos com 17 ou mais crianças documentaram a eficácia de esquemas semelhantes aos utilizados em adultos6-8. Apesar da gravidade inicial da doença, a resposta ao tratamento com corticoides, com ou sem azatioprina, é habitualmente excelente na criança, havendo normalização das provas hepáticas após 6-9 meses de tratamento, em 75-90% dos casos1.

Na casuística apresentada nesta revista, todas as 33 crianças com HAI iniciaram tratamento com prednisolona, tendo sido acrescentada azatioprina em apenas 8. Houve muito boa resposta à terapêutica, sendo de salientar que tratando-se de um centro de referência com transplantação hepática, existirá provavelmente um viés, com casos de maior gravidade. Ainda assim, e tal como é mencionado no estudo, houve melhoria com terapêutica médica em 6 crianças que tinham sido referenciadas para transplante.

A prednisona é o pilar em praticamente todos os regimes terapêuticos para crianças, sendo habitualmente administrada inicialmente, na dose de 1-2 mg/kg dia (até 60 mg). Os esquemas de regressão são muito variáveis. Em alguns centros tem sido advogado um rápido switch para regime em dias alternados, enquanto noutros a manutenção de uma dose baixa diária de corticoide é considerada essencial. Devido ao efeito deletério sobre o crescimento, desenvolvimento ósseo e aspeto físico de doses intermédias ou elevadas de corticoide, é habitualmente recomendada a associação precoce de azatioprina (1-2 mg/kg dia) ou 6-mercaptopurina (1,5 mg/kg dia) desde que não haja contraindicações. Não existe muita experiência com azatioprina isoladamente como terapêutica de manutenção, mas parece ser uma boa opção nos casos em que não se consegue suspender completamente o tratamento. Regimes com ciclosporina A como terapêutica inicial nas crianças com HAI não parecem ser superiores às opções mais tradicionais e devem ser consideradas de investigação1,9.

 

Bibliografia

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