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Jornal Português de Gastrenterologia

versão impressa ISSN 0872-8178

J Port Gastrenterol. vol.20 no.5 Lisboa set. 2013

https://doi.org/10.1016/j.jpg.2013.04.001 

ARTIGO DE OPINIÃO

 

Gastrenterologia oncológica - necessária?*

Gastroenterology oncology - required?

 

Marie Isabelle Cremers

Serviço de Gastrenterologia, Centro Hospitalar de Setúbal EPE, Hospital de São Bernardo, Setúbal, Portugal

Correio eletrónico: cremers_tavares@hotmail.com

 

Nos últimos anos temos assistido a um movimento transversal mundial de reflexão sobre gastrenterologia oncológica e sobre a forma de a organizar.

De uma forma geral, os gastrenterologistas estão ligados ao cancro digestivo em muitas vertentes: na prevenção (p. ex. na educação da população no que concerne a hábitos alimentares, tabágicos e prática de exercício físico); no rastreio (nomeadamente do cancro colorrectal); na vigilância (p. ex. do esófago de Barrett, da cirrose hepática, da doença inflamatória intestinal, dos pólipos do cólon); no diagnóstico (clínico, endoscópico); no estadiamento (nalguns casos é indispensável a realização de ecoendoscopia); no apoio ao doente e à família (é muitas vezes o gastrenterologista a dar a notícia do cancro e apoiar o doente e a família); na referenciação e discussão em consulta de decisão terapêutica; na resolução de complicações, quer do cancro quer da sua terapêutica; no apoio nutricional; na paliação, que por vezes é endoscópica (colocação de próteses, p. ex.); no apoio de fim de vida. Este panorama demonstra que a gastroenterologia oncológica não só é necessária, como faz parte da atividade diária dos gastrenterologistas, quer em Portugal quer noutros países. São os gastrenterologistas que realizam em Portugal cerca de 160.000 colonoscopias/ano, cerca de 200.000 polipectomias/ano, que diagnosticam a maioria dos 7.500 cancros colorrectais/ano, para além dos cancros do esófago, estômago, pâncreas, fígado, vias biliares, etc.

Então porquê a pergunta? Porque o gastrenterologista nem sempre coordena o percurso do doente, como seu verdadeiro médico assistente. Na maioria dos casos, interage com o doente no início, a meio ou no final do seu percurso oncológico, tendo o doente que fazer o seu périploentre vários especialistas (gastrenterologista, oncologista médico, cirurgião, radioterapeuta, etc.), com possibilidades de confusão, atrasos, má qualidade de vida, quer para o doente quer para os seus cuidadores. Esta evidência tem levado, nos últimos anos, a procurar uma mudança de atitude perante o doente com cancro digestivo, colocando o gastrenterologista no centro dos cuidados prestados ao doente, orientando-o, assim como aos seus cuidadores, em todo o seu percurso.

O que se passa nos outros países? De uma forma global, admite-se que a incidência dos casos de cancro digestivo seja de 3.000.000 de doentes/ano e mais de 2.000.000 de óbitos/ano em todo o Mundo1. A estes devem adicionar-se os doentes tratados por outros cancros, com manifestações digestivas desses cancros ou do seu tratamento. A título de exemplo refiro a entidade recentemente descrita por Andreyev et al.2, a doença de radiação pélvica. Esta entidade pode ser definida como o aparecimento de problemas transitórios ou de longa duração, desde ligeiros a muito graves, provenientes de tecidos não-cancerosos e resultantes do tratamento por radioterapia de tumores localizados na pélvis2. A atitude de muitos profissionais de saúde em relação a manifestações gastrointestinais de outros cancros ou do seu tratamento é muitas vezes a de as ignorar ou minorar, dando maior importância aos problemas considerados mais relevantes, o cancro em si, ou o seu tratamento e seguimento. Não deve ainda ser esquecido que estes cancros vão ocorrer, cada vez mais, em indivíduos idosos e com comorbilidades, complicando o seu tratamento (curativo ou paliativo).

A Organização Mundial de Gastrenterologia (WGO), consciente do peso crescente que representa esta situação, criou recentemente a Digestive Oncology Task Force, cujo presidente é o professor Chris Mulder, de Amsterdão. O professor Chris Mulder considera que a prioridade é elaborar um curriculum de treino para oncologistas digestivos e criar locais para realizar este treino3. Já existem centros de treino patrocinados pela WGO na área da endoscopia digestiva.

Nos EUA, onde a prática clinica dos gastrenterologistas é semelhante à acima descrita, prevê-se um crescimento dos casos de cancro digestivo muito superior às capacidades de tratamento dos oncologistas americanos1. Em 2008, Terdiman, num artigo de reflexão que se pode considerar como uma pedra basilar deste movimento internacional, propõe que o gastrenterologista ocupe um lugar central no percurso do doente com cancro digestivo e termina com a formação de um grupo de trabalho que inclui gastrenterologistas e oncologistas médicos, no sentido de elaborar um curriculum de formação do oncologista digestivo, que possa ser acreditado pelas sociedades científicas americanas4. Três anos depois, Winaver et al. propõem um curriculum para a formação de oncologistas digestivos, acrescentando um ano de endoscopia oncológica avançada após o internato complementar de gastrenterologia ou, para além disso, acrescentar mais um ano de ensino em terapêutica direta do cancro1. Os EUA já têm antecedentes de formação especializada dentro da gastrenterologia, como é o caso da formação em endoscopia avançada, recentemente proposta pela American Society for Gastrointestinal Endoscopy (ASGE)5. Neste programa, os candidatos (gastroenterologistas ou internos de gastrenterologia) devem candidatar-se a uma ou várias áreas de endoscopia avançada e os serviços com capacidade formativa devem anunciar a sua disponibilidade. Um grupo da ASGE coloca, então, os candidatos nos serviços com vagas disponíveis, as quais são, presentemente, muito inferiores à procura, daí a necessidade de serem corretamente atribuídas.

Na Ásia a situação é semelhante, sendo que em 4 países (India, Japão, China e Coreia do Sul) alguns gastrenterologistas administram a quimioterapia --- que é, na realidade, a barreira a ultrapassar. A constatação do aumento crescente dos casos de cancro digestivo, aliado à complexidade crescente do seu tratamento, levou à proposta de um curriculum de formação de oncologistas digestivos nesses países. O curriculum incluiria 2 anos de medicina interna, 2 anos de gastrenterologia e oncologia básica e 2 anos de oncologia digestiva avançada, incluindo a endoscopia avançada e a quimioterapia6. Está assim em formação, na Ásia, uma nova especialidade de oncologia digestiva. Neste espírito foi criada a secção da International Digestive Cancer Alliance (IDCA) da Ásia/Pacífico, em setembro de 2010. Esta Sociedade tem como objetivos juntar gastrenterologistas, hepatologistas, oncologistas médicos, cirurgiões e radioterapeutas na criação desta nova sub-especialidade; discutir e criar novas «guidelines» para a prevenção e tratamento do cancro digestivo; trabalhar com faculdades locais a fim de criar oportunidades de treino em oncologia digestiva; realizar investigação nesta área6.

Em África, a situação ainda não está tão organizada, particularmente na África subsaariana, onde há grandes contrastes no acesso aos cuidados de saúde. Contudo, a preocupação com o tratamento dos doentes com carcinoma hepatocelular levou à criação da African Middle East Society for Digestive Oncology, em fevereiro 20121.

No Médio Oriente, onde se regista uma elevada incidência de cancro gástrico e esofágico, os gastrenterologistas estão muito envolvidos na investigação, rastreio e terapêutica do cancro digestivo7. A título de exemplo de colaboração científica internacional nesta área destaca-se o Golestan Cohort, estudo prospetivo sobre cancro do trato gastrointestinal alto, conduzido pelo centro de investigação da Universidade de Teerão, em conjunto com a Organização Mundial de Saúde, os EUA e o Reino Unido8. Encontra-se em formação a secção do IDCA do Médio Oriente.

Na Europa, a Sociedade Europeia de Cancro Digestivo (ESDO), secção europeia da ICDA, foi criada em 2008 - http://www.esdo.org - tendo várias sociedades nacionais afiliadas, como a Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia, assim como sócios individuais, com interesse particular na área do cancro digestivo9. Tem como objetivos: divulgar e qualificar a terapêutica médica de tumores do tubo digestivo por equipas multidisciplinares; melhorar e promover o rastreio, o diagnóstico precoce, a prevenção primária e o tratamento de lesões pré-malignas e/ou malignas do tubo digestivo; promover investigação em oncologia digestiva; organizar a formação e o intercâmbio académico; desenvolver normas de orientação clínica.

Existem centros académicos europeus a oferecer «fellowships» em oncologia digestiva. Na França e na Bélgica já existem programas de formação em oncologia digestiva bem estruturados e a prática dos gastrenterologistas tratarem doentes com cancro digestivo é corrente nestes países. Na Alemanha, apesar de não existir um curriculum aprovado, também há muitos gastrenterologistas a administrar quimioterapia10.

O European Board of Gastroenterology and Hepatology (EBGH) publicou em 2012 a atualização do seu Blue Book, que contém a proposta de curriculum europeu da especialidade e as características às quais devem obedecer os centros de treino para acreditação, assim como as formas de candidatura para Fellow e para Centro de Treino Europeu (http://www.ebgh.org)11. No Blue Book também foram apresentados, pela primeira vez, os programas de formação para 4 sub-especialidades: hepatologia, nutrição, endoscopia avançada e oncologia digestiva.

O programa de formação em oncologia digestiva tem a duração de 2 anos, podendo uma parte ser realizada durante o internato complementar de gastrenterologia (mesmo durante parte dos 2 anos dedicados à medicina interna), sendo um ano realizado após o término do internato complementar de gastrenterologia. Divide-se em 12 secções, da seguinte forma11:

1. Conhecimentos gerais

2. Administração de quimioterapia e agentes biológicos

3. Prescrição e administração de agentes biológicos

4. Radioterapia

5. Cirurgia

6. Endoscopia avançada

7. Cancro esofágico

8. Cancro gástrico

9. Cancro pancreático

10. Carcinoma hepato-celular e tumores biliares

11. Cancro colorrectal

12. Tumores raros (linfomas, neuroendócrinos, GIT, etc.)

Os locais de treino devem ser centros de gastrenterologia com interesse especial em oncologia digestiva, com massa crítica de doentes, quer em regime de internamento quer ambulatórios. Deve ter um mínimo de 2 gastrenterologistas com interesse em oncologia, realizar reuniões multidisciplinares semanais, ter experiência em endoscopia terapêutica oncológica avançada, fazer investigação nesta área e estar localizado num hospital com oncologistas médicos, cirurgiões oncológicos, radioterapia e consultadoria em genética clínica.

E em Portugal? Os gastrenterologistas portugueses têm uma atividade semelhante aos gastrenterologistas dos outros países, com muito contacto com doentes com cancro digestivo, sem contudo assumir todo o seu tratamento. Já há bastante experiência no manuseamento de terapêuticas complexas noutras áreas da gastrenterologia, como na doença inflamatória do intestino e nas hepatites víricas. O programa do internato complementar de gastrenterologia foi recentemente revisto (DR Port 317/2012)12 e contempla, nos estágios opcionais, a possibilidade de estágio, até 6 meses, em oncologia digestiva, o que poderá ser complementado com a formação adquirida noutros períodos, sem, contudo, levar a uma sub-especialização em oncologia digestiva. Esta deveria ser adquirida com um programa adequado, que poderia ser inspirado no programa de formação proposto pelo EBGH. Esta sub-especialização em oncologia digestiva deveria ser acreditada pelas sociedades científicas e pela Ordem dos Médicos.

Penso que há lugar, em Portugal, para a oncologia digestiva, como secção especializada ou grupo de reflexão da SPG. Há lugar para gastrenterologistas dedicados a esta área, pelo menos em alguns serviços de maior dimensão, onde já existem secções dedicadas à hepatologia, à doença inflamatória intestinal, à endoscopia avançada. Numa altura em que se verifica um aumento significativo do número de vagas atribuídas ao internato complementar de gastrenterologia (26 em 2012 versus 4-8 vagas há 30 anos), a oncologia digestiva poderá constituir uma opção de carreira para os futuros gastrenterologistas.

 

Bibliografia

1. Winawer SJ, Pasricha PJ, Schmiegel W, Sincrope FA, Sung J, Seufferlein T, et al. The future role of the gastroenterologist in digestive oncology: An international perspective. Gastroenterology. 2011;141:e13-21.         [ Links ]

2. Andreyev HJN, Wotherspoon A, Denham J, Hauer-Jensen M. Defining pelvic-radiation disease for the survivorship era. Lancet. 2010;11:310-1.         [ Links ]

3. Mulder CJJ. WGO digestive oncology task force. World J Gastroenterol. 2012;17:14-5.         [ Links ]

4. Terdiman JP. Oncology training for the gastroenterologist: A test-case for subspecialization in gastroenterology? Gastroenterology. 2008;135:1028-31.         [ Links ]

5. Kim S. The advanced endoscopy fellowship match: An update and perspectives. Gastrointest Endosc. 2012;76:1211-3.         [ Links ]

6. Sung J. Future role of gastroenterologists in digestive oncology in the Asia Pacific region: Panir Chelvam Memorial Lecture, Asian Pacific Digestive Week 2010. J Gastroenterol Hepatol. 2011;26:432-6.         [ Links ]

7. Islami F, Kamangar F, Nasrollahzedeh D, Møller H, Boffetta P, Malekzadeh R. Oesophageal cancer in Golestan Porvince, a high-incidence area in northern Iran - a review. Eur J Cancer. 2009;45:3156-65.         [ Links ]

8. Pourshams A, Khademi H, Malekshah AF, Islami F, Nouraei M, Sadjadi AR, et al. Cohort profile: The Golestan Cohort Study - a prospective study of oesophageal cancer in norther Iran. Int J Epidemiol. 2010;39:52-9.         [ Links ]

9. Disponível em: http://www.esdo.org (consultado 9 Nov 2013).         [ Links ]

10. Mulder CJJ, Peeters M, Cats A, Dahele A, Terhaar sive Droste J. Digestive oncologist in the gastroenterology training curriculum. World J Gastroenterol. 2011;17:1109-15.         [ Links ]

11. Disponível em: http://www.eubog.org (consultado 9 Nov 2013).         [ Links ]

12. Diário da República, 2.a série, n.◦ 197, Portaria 317/2012, p. 5649-54.         [ Links ]

 

Conflito de interesses

Os autores declaram não haver conflito de interesses.

 

Nota

*Artigo baseado na conferência proferida na Reunião Monotemática da Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia, sob o tema «Oncologia e aparelho digestivo - Como prevenir, como tratar», em Lisboa, em 26/1/2013.