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Forum Sociológico

versão impressa ISSN 0872-8380versão On-line ISSN 2182-7427

Forum Sociológico  no.36 Lisboa jun. 2020  Epub 02-Ago-2021

https://doi.org/10.4000/sociologico.8991 

Artigos Originais

Sujeitas públicas, narrativas anônimas: Espacializando o medo e a (im)permanência da mulher no âmbito urbano em Maceió/AL - Brasil

Public women, anonymous narratives: Spacializing the fear and (im)permanence of women in the urban context in Maceió/AL - Brazil

Júlia de Freitas Correia Lyrai 

iiInstituto de Geografia e Ordenamento do Território, Universidade de Lisboa (IGOT/ULisboa), Lisboa, Portugal


Resumo

Historicamente estruturada para (e por) homens, a cidade - compreendida enquanto agente ativo na (re)produção das relações sociais - é ordenada a partir da dicotomia homem-público x mulher-privado. O artigo traz uma leitura da posição social da mulher na cidade e, partindo do pressuposto de que as disparidades de gênero produzem experiências urbanas distintas para homens e mulheres, busca apontar quais (e como) são os espaços de medo que não são vivenciados plenamente pelo público feminino. Para tal, o estudo apoiou-se na coleta de autonarrativas de usuárias do bairro da Jatiúca (Maceió/AL - Brasil) através da aplicação de mecanismos de escuta anônima, produzindo um esboço comparativo das experiências descritas. Os resultados demonstram não somente as especificidades da vivência da mulher, como também a multiplicidade das experiências dessas sujeitas distintas entre si - ilustrando a urgência de repensarmos os espaços públicos para garantir a autonomia das mulheres em estruturas urbanas.

Palavras-chaves: urbanismo feminista; espaços públicos; gênero; insegurança

Abstract

Historically structured for (and by) men, the city - understood as an active agent in the (re)production of social relations - is ordered by the man-public x woman-private dichotomy. The article presents a reading of the social position of women in the city and, based on the assumption that gender disparities produce distinct urban experiences for men and women, seeks to map which (and how) spaces of fear are not fully experienced by the female public. For such purpose, the study was based on the collection of self-narratives from Jatiúca’s neighborhood users (Maceió/AL - Brazil) through the application of anonymous listening mechanisms to collect data, producing a comparative sketch of the described experiences. The results demonstrate not only the specificities of women’s experience, but also the multiplicity of experiences of these distinct subjects - illustrating the urgency of rethinking public spaces to ensure women’s autonomy in urban structures.

Keywords: feminist urbanism; public spaces; gender; insecurity

Mulher pública: (antigo, depreciativo); meretriz, mulher da vida, mulherzinha1

A cidade é o lugar do fazer social e, portanto, gera - e ao mesmo tempo é estruturada pelas - relações de poder presentes na sociedade. Considerar que o espaço urbano funciona ativamente como um elemento de ordenamento das relações humanas implica reconhecer, consequentemente, que sua produção “não se dá de forma imparcial, ou seja, se dá pelos olhos e mãos do patriarcado e do Capital e pode funcionar, portanto, como agente de manutenção das desigualdades frutos destes sistemas” (Peccini, 2016, p. 17). Neste sentido, esse mesmo espaço, “ao reproduzir relações sociais, reproduzirá também inevitavelmente a lógica de dominação. Vai expressar as desigualdades estruturantes do sistema, quais sejam classe, raça e gênero. Estas determinarão o espaço urbano e nele se manifestarão” (Vianna, 2014, p. 16).

Assim como a cidade, nós mesmas/mos somos resultados de construções sociais que estão sempre relacionadas : se produzimos cidades que proporcionam vivências desiguais para homens e mulheres, é porque fomos socialmente construídos para naturalizar estas diferenças e hierarquias e, portanto, naturalizamos também a própria construção destas cidades, pautadas pela lógica patriarcal. (Peccini, 2016, p. 52)

O estudo pressupõe que “a cidade não é cenário - um palco neutro das relações sociais” (Vianna, 2014, p. 8), mas consiste, majoritariamente, em um espaço de dominação masculina. Assim, parte do princípio de que as mulheres vivenciam a cidade de maneira distinta da dos homens, considerando a estrutura das relações sociais de gênero como um fato cultural, construído no processo histórico da humanidade (Gonzaga, 2011, p. 47). Portanto, não pretende-se aqui atestar a ausência total ou parcial da mulher nos espaços públicos, mas acusar a diferenciação de sua experiência em comparação à experiência masculina, posto que sua relação com o espaço parece estar mais próxima do ato de deslocar-se por necessidade do que do ato de ocupar ativa e efetivamente o território.

Em suma, apesar de elas se fazerem presentes na vida urbana, as cidades em geral “não são pensadas para (e nem por) mulheres” (Vianna, 2014, p. 37). Como consequência, o espaço público parece não pertencer ao público feminino, sendo-lhes exigidas uma série de condutas socialmente definidas : como devem se comportar, o que devem vestir, em que horários devem circular e com quem devem estar. E, assim, a moralidade acompanha a liberdade feminina no espaço público : seu corpo é dominado e seu direito à cidade e à livre circulação é restringido, controlado por argumentos estereotipados que reduzem a mulher à sua condição socialmente imposta de sujeita privada.

Uma coisa é constatar a presença das mulheres na cidade, outra completamente distinta é pensar a produção desse espaço tendo como preocupação política e analítica a estrutura e a dinâmica das relações das desigualdades entre mulheres e homens. Falar das desigualdades não é apenas tratar do problema do ponto de vista do acesso desigual aos espaços e processos das cidades, é, acima de tudo, reconhecer que as desigualdades entre mulheres e homens não atravessam a produção e reprodução das cidades, mas são, por princípio, elementos constituintes das mesmas. (Gouveia, s. d., p. 1)

Sendo assim, o artigo empenha-se em compreender e espacializar a lógica de dominação masculina presente no âmbito urbano através da análise do comportamento da mulher nos espaços públicos, buscando perceber como as questões de gênero - especialmente o medo e a violência - se materializam territorialmente. Neste sentido busca relacionar a construção social do papel da(s) mulher(es) com a sua experiência urbana para compreender como as desigualdades de gênero, associadas à interseccionalidade de outras formas de opressão, limitam a experiência feminina e sua relação com os espaços públicos.

Os dados apresentados neste artigo consistem em um recorte do Trabalho Final de Graduação intitulado “(Im)permanências e (in)seguranças da mulher na cidade : Pensando os espaços públicos a partir de uma perspectiva feminista no bairro da Jatiúca - Maceió/AL”2, que pretendeu responder a três perguntas de pesquisa: a) Quais são os espaços de medo que não são vivenciados plenamente pela mulher?; b) Que tipos de espaço inibem a presença ou permanência da mulher?; e c) Quais os conflitos e barreiras que a mulher enfrenta nos espaços públicos?

Insegurança: Substantivo feminino?

Antes de (tentar) responder às perguntas, é preciso esclarecer que, apesar de a segurança não ser (e não dever ser) a única e mais importante pauta no debate de gênero e cidade, ela é ainda a mais urgente e mais presente no discurso feminino do direito à cidade, especialmente nas falas coletadas nesse trabalho - que serão abordadas na sequência. No contexto da cidade de Maceió - Alagoas, estudo de caso desse trabalho, a violência de maneira geral é um tema recorrente para a população e, ainda que de formas diferentes, uma realidade social para homens ou mulheres. Mas por que, então, falar do medo da mulher ?

Dados apresentados no Sistema de Indicadores de Percepção Social (SIPS) referente à segurança pública no Brasil (Siqueira, 2015) apontam que o medo não somente está mais presente na vida da mulher, mas também é distinto dos medos expostos pelos homens : “o medo delas está relacionado à sua integridade física, o assalto à mão armada e o assassinato. Os homens sentem mais medo dos crimes relacionados ao patrimônio, o arrombamento de residência” (Siqueira, 2015, p. 24). O que se pode constatar é que, enquanto os medos mais presentes na realidade da mulher referem-se aos seus corpos, os masculinos estão relacionados a seus bens - observação esta que não implica que as mulheres não temam pelos seus bens ou os homens por seus corpos, mas que o recorte de gênero é determinante na especificação e hierarquização dos medos entre sujeitos e sujeitas.

Ainda que diferenciem-se entre si, todas (ou quase todas) as experiências sustentam um sentimento em comum : o medo pelo simples fato de serem mulheres. Isso porque o cenário social em que se inserem é marcado por inúmeras práticas de violência de gênero, provocando a construção de um imaginário coletivo de medo que não é limitante apenas para as vítimas das violências em si, mas que assolam o cotidiano de um extenso grupo de mulheres e determinam seus modos de comportamento e defesa pessoal. Assim, as mulheres adotam com maior frequência medidas de precaução em face da violação (Gordon & Riger, 1989).

Poder-se-á demarcar em linhas gerais que a maioria das mulheres receia, designadamente, meios públicos (rua), sítios isolados, à noite, visibilidade limitada, locais ou situações desconhecidas e pessoas estranhas (Day, 1994). Porém, a tomada de precauções pode, muitas vezes, não proteger (por não se dirigir, na maioria das vezes, às características e contexto em que a violação usualmente ocorre), mas condiciona o acesso ao espaço comunitário e constrange a liberdade das mulheres. Considerando as estratégias de precaução, assim como as suas consequências, as mulheres procuram um equilíbrio, ainda que precário, entre segurança, bem-estar psicológico e independência. (Berta, Ornelas & Maria, 2007, p. 136)

É possível afirmar, então, que :

(…) apenas as mulheres parecem ter um crime adicional a temer - a violação - e que os homens usualmente não temem (Riger et al., 1978). A abordagem dos mitos, como estando na origem do medo da violação, vai no sentido das conclusões de Gordon e Riger (1989), que afirmam estar o medo da violação associado não apenas ao risco percebido e real do abuso sexual, mas também (e de um modo complexo) aos mitos sociais e tabus relacionados com a sexualidade, no geral, e com o crime de violação, em particular. (Berta, Ornelas & Maria, 2007, p. 144)

É imprescindível ponderar que dentro da categoria gênero existem, ainda, distinções e especificidades entre as próprias mulheres, resultando em uma heterogeneidade de vivências que devem ser consideradas, uma vez que somos múltiplas - negras, brancas, ricas, pobres, cis, trans, lésbicas, bissexuais, prostitutas e tantas outras mulheres, no plural. Respeitando tais particularidades, o trabalho reafirma a importância da interseccionalidade3 enquanto categoria analítica das opressões de gênero, classe e raça/etnia - indicando que “não é possível entender e atuar com vistas às mudanças estruturais se não consideramos a complexa trama de interações e determinações mútuas que são produzidas por estas três dimensões” (Gouveia, s. d., p. 1). De tal maneira, delimita um recorte específico da(s) mulher(es) investigada(s)4, que considera a contextualização histórica e social em que se inserem.

(…) A observação da categoria gênero, usada primeiramente para analisar diferenças entre os sexos, foi estendida à questão das diferenças dentro da diferença (gênero feminino) : mulheres de cor [...], mulheres trabalhadoras pobres, mulheres lésbicas, mães solteiras, todas desafiando a hegemonia heterossexual da classe média branca do termo “mulheres” - argumentado que as diferenças fundamentais da experiência tornaram impossível reivindicar uma identidade isolada. (Araújo, 2004, p. 27)

Atentando à necessidade de apreender perspectivas variadas e considerando que os habitantes narram a cidade enquanto a cidade narra seus moradores, o estudo optou por utilizar diferentes ferramentas de escuta, captando o imaginário dessas mulheres variadas. Em síntese, as análises tinham o objetivo de comprovar que a condição de ser mulher interfere diretamente no acesso, na mobilidade e na segurança dentro do contexto urbano, resultando em sua (im)permanência nos espaços públicos.

Abordagens anônimas e não-anônima para discutir violência de gênero

Para apreender a complexidade do tema e destas distinções entre as vivências femininas, foram adotadas em paralelo estratégias empíricas e experimentais de coleta de relatos de medos e violências. A escolha de tais mecanismos de escuta foi embasada na preocupação inicial de respeitar a complexidade de abordar questões relativas à violência de gênero, especialmente considerando que a abertura para um diálogo acerca de experiências tão íntimas e pessoais exige, na maioria das vezes, um prévio sentimento de confiabilidade entre respondentes e pesquisadora(s).

Inicialmente, cabe dizer que o campo empírico desse estudo consiste no bairro da Jatiúca, situado na cidade de Maceió/AL no Brasil, que possui atualmente 2,9 km² de extensão e 38 027 habitantes (Censo Demográfico, 2010). Trata-se de um dos bairros mais valorizados da cidade e, como resultado do processo de elitização sofrido ao longo dos anos, é marcado por uma heterogeneidade social, que abriga desde conjuntos habitacionais e pequenas residências a edifícios de alta renda. Desta forma, sua distribuição e configuração territorial diversificada comporta a convivência de classes distintas, hierarquizadas no espaço. Conta, hoje, com a forte presença de comércios e serviços diurnos e noturnos que servem como elementos de atração de pessoas provenientes de outras regiões da cidade.

As diferenças não se situam somente no âmbito socioeconômico e na distribuição espacial. Elas estão presentes nos usos diversificados dos espaços públicos e privados, nos hábitos e no modo de vida da população, na demarcação de relações e referenciais quanto ao lugar e à forma de enxergar o bairro. Uma dessas relações apresenta-se na contraposição de denominações atribuídas, pelos próprios moradores, às localidades internas do bairro, e aqui extrapolam os seus limites territoriais oficiais, quando a própria população distingue o bairro em duas Jatiúcas, a chamada “Jatiúca Velha” e a “Jatiúca Nova”. A distinção não reflete apenas uma relação de tempo ou de antiguidade entre as comunidades no bairro, mas incorpora à linguagem e ao cotidiano a imagem da segregação social existente no espaço urbano, já que por trás da Jatiúca “velha” é identificada também a Jatiúca pobre, enquanto a “Nova” é a Jatiúca rica. (Normande, 2000, p. 115)

Figura 1:  Fonte:  Localização do bairro da Jatiúca Google Maps, com alterações da autora, 2018, sem escala. 

Dessa maneira, o bairro abriga usuárias distintas entre si : domésticas, trabalhadoras do comércio local, moradoras, estudantes, consumidoras, passantes e tantas outras - mulheres de todas as idades, classes, sexualidades e profissões dividem direta ou indiretamente o mesmo espaço (ou seriam espaços distintos ?).

Além de ser um ponto de convergência diária de pessoas ao local em busca de atividades variadas, como comerciais, de lazer, de ensino e de moradia, sua escolha se deu especialmente por minha relação pessoal com o bairro. Assim, o estudo partiu de uma descrição da minha experiência individual enquanto moradora da Jatiúca, resultante da vivência cotidiana de anos no local somada à realização de percursos em horários, dias e modais distintos, utilizando diferentes vestimentas e acompanhada de diferentes pessoas.

Figura 2:  Fonte:  Ferramentas de coleta de narrativas adotadas no estudo Material elaborado pela autora, 2018. 

Para complementar meu olhar pessoal sobre o local, a recolha de dados da etapa seguinte se deu através de uma aproximação indireta com as usuárias da região, garantida pelo afastamento da figura da pesquisadora com relação às respondentes. As abordagens ocorreram de maneira anônima, onde as sujeitas do espaço puderam exprimir seus sentimentos e experiências sem haver a necessidade de um contato físico.

Nessa perspectiva, foi formulado um questionário online, que possibilitaria atingir um número considerável de respondentes territorialmente dispersas através do anonimato da internet, além de conduzir à construção de um possível perfil das entrevistadas. A observação dos resultados possibilitou o cruzamento de informações relativas às experiências no espaço em estudo - dentre elas, violências de gênero, características do bairro que chamavam atenção nas suas experiências e opiniões em geral sobre a região - com as características individuais de cada entrevistada, levando a conclusões iniciais que respeitavam os seus distintos perfis e realidades.

Para inserir os discursos no contexto urbano e relacionar as ocorrências com o espaço concreto, um mapeamento colaborativo foi vinculado ao questionário através da criação de uma plataforma colaborativa online, que possibilitava o acesso das respondentes a ambas ferramentas. Ao passo que a participante narrava sua perspectiva, tinha a opção de acrescentar pontos fisicamente identificados no mapa do bairro, acompanhados de relatos também anônimos.

Até o dado momento, o formulário tinha registrado 56 respostas que foram cuidadosamente analisadas para a construção do perfil das usuárias do bairro. Em sua esmagadora maioria, tratava-se de mulheres jovens, brancas ou pardas, com renda familiar mensal de mais de três salários mínimos e que moravam ou utilizavam o bairro para fins de lazer, estudo ou trabalho. Assim, seus deslocamentos eram realizados majoritariamente pelo veículo privado individual e percursos pedonais em horário noturno aos finais de semana e diurno nos dias úteis.

Figura 3:  Fonte:  Plataforma colaborativa online elaborada no trabalho Material elaborado pela autora, 2018. 

Figura 4:  Fonte:  Plataforma colaborativa online elaborada no trabalho Material elaborado pela autora, 2018. 

Figura 5:  Fonte:  Perfil das respondentes Material elaborado pela autora, 2018. 

Figura 6:  Fonte:  Cartazes de interação anônima para espaços de deslocamento e permanência, respectivamente Material elaborado pela autora, 2018. 

Figura 7:  Fonte:  Cartazes de interação anônima para espaços de deslocamento e permanência, respectivamente Material elaborado pela autora, 2018. 

Entretanto, apesar de eficaz em traçar representações dessas mulheres e coletar um número significativo de relatos, quando adotada isoladamente, a estratégia de abordagem online torna-se insuficiente na medida em que exclui mulheres que não possuem acesso à internet e não compõem o ciclo social onde foi divulgada a pesquisa. Assim, para complementar e dialogar com as sujeitas inseridas no próprio espaço de estudo, optou-se pela realização de intervenções urbanas interativas em pontos previamente determinados no bairro. Foram elaborados cartazes de diálogo rápido para espaços de passagem e cartazes de diálogo mais elaborado para espaços de maior permanência.

A partir dessas narrativas, considerou-se cada relato em sua particularidade e foram identificados também os “não-relatos” - ou a ausência de sujeitas e/ou temáticas na discussão -, que traziam apontamentos para discutirmos, por exemplo, a nossa capacidade de enxergar nossas próprias opressões, a nossa abertura para dialogar sobre tais situações de opressão, a possível ausência de determinadas sujeitas naqueles espaços ou a baixa eficiência das metodologias em abarcar relatos de um conjunto de usuárias.

Autonarrativas de sujeitas ocultas : A cidade exposta por elas

Considerando as particularidades apontadas pelos gráficos e cartazes, poderiam-se descrever e elencar inúmeros panoramas presentes nos relatos e seria demasiado irreal generalizá-los enquanto verdade absoluta. Não seria cabível discorrer aqui sobre todas as constatações resultantes da análise das narrativas coletadas no estudo, portanto o ponto seguinte limitou-se a trazer alguns apontamentos considerados fundamentais diante do que foi observado.

Primeiramente, ficou evidenciada, dentro do recorte de estudo, a diferenciação da experiência de mulheres distintas : a realização das atividades varia de acordo com fatores como classe social, faixa etária e raça/etnia, resultando na forma como essas sujeitas ocupam (ou não) os espaços. São múltiplas as suas ações : há mulheres cuja atividade restringe-se aos deslocamentos do ponto de ônibus para o trabalho/faculdade, outras que utilizam apenas as calçadas enquanto extensão do próprio espaço privado de suas casas ou espaços comerciais em que se encontram, mulheres que deslocam-se para a realização de atividades físicas, mulheres que passeiam com crianças e cachorros - seus ou de suas patroas - ou mulheres que apenas circulam nos espaços privados de suas casas no bairro e seus veículos particulares. O termo usuária da Jatiúca carrega, portanto, uma diversidade de facetas.

Além de se constatar a presença majoritária de um recorte específico de mulheres - jovens de pele clara e média/alta renda - nas narrativas, as falas demonstram que há um grupo de mulheres cuja narrativa descreve de maneira natural, indissociável e interseccional suas experiências enquanto mulheres negras, lésbicas/bissexuais, periféricas, gordas, dentre outras. Diferentes corpos públicos geram diferentes reações e experiências.

Enquanto mulher (somente) me sinto insegura e limitada. Sinto que tudo o que eu sou (mulher, negra, gorda, de esquerda, homossexual) não me permite viver o bairro do jeito que as pessoas consideradas padrão vivem. (Participante 51, negra, 18-29 anos) Há alguns anos, estava com uma amiga que ficava com outra menina na praça Vera Arruda. Alguns meninos passaram de bicicleta e ficaram incentivando-as a se beijar, de forma desrespeitosa e até agressiva. Um amigo, também homossexual, tentou colocar limite nos meninos verbalmente. Foi ameaçado de ser agredido. Não chegou a ocorrer agressão física, mas foi uma situação de exposição gritante e temo o que teria ocorrido se não tivéssemos a presença de um homem que nos ajudou no momento. (Participante 47, parda, 18-29 anos)

Por outro lado, há elementos que são comuns nessas múltiplas experiências : em geral, grande parte das atividades realizadas por mulheres envolvem o cuidado com outros indivíduos (filhos, idosos e animais de estimação, por exemplo), enquanto os homens dominam outras funções, como a prática de esportes de skate e futebol, realizadas em espaços especificamente pensados para tal.

As formas de se deslocar, a postura adotada e os caminhos escolhidos também são essencialmente distintos dos dos homens5. De maneira geral, elas andam em grupos e a velocidade de seus passos é maior, em especial no período da noite. Tais sujeitas tendem a nunca (ou quase nunca) ocupar o espaço de forma espontânea e optativa, mas limitam-se a realizar deslocamentos que as encaminhem de um ponto a outro da maneira mais rápida e segura possível. Para de fato permanecer nesses espaços públicos, como praças e mobiliários urbanos, o fazem sobretudo junto de outras mulheres ou homens.

(…) os diversos deslocamentos que as mulheres fazem no espaço urbano e a sua relação com a divisão sexual do trabalho. Ter uma dupla jornada de trabalho significa se deslocar para o emprego formal e remunerado e ainda levar filhos à escola, acompanhar doentes ao hospital, pessoas dependentes em suas necessidades, o que requer múltiplos deslocamentos pela cidade. Nesse sentido, a divisão entre áreas residenciais e o centro, que normalmente concentra os serviços e atividades produtivas, marca das cidades modernistas, honera o cotidiano das mulheres. Tal modelo de cidade reflete um padrão dicotômico entre espaço público (produtivo) e o privado (reprodutivo), bem como desconsidera que os papéis sociais diferenciados entre homens e mulheres determinam diferentes experiências na cidade. (Silva, Faria & Pimenta, 2017, p. 13)

Figura 8:  Fonte:  Esquema de percursos diferenciados para mulheres e homens Material elaborado pela autora, 2018. 

Outra distinção dessas vivências inseridas no território refere-se a como as formas de ocupações variam de acordo com os tipos de espaço, que foram definidos no trabalho em três categorias distintas : a) os espaços de deslocamento (ruas, calçadas e espaços de passagem), que são caracterizados pelo passo apressado e a realização de caminhos longos e seletivos, optando por desvios ; b) os espaços de espera (pontos de ônibus, por exemplo), onde as mulheres buscam aproximação com outras mulheres e, grosso modo, só permanecem o tempo necessário à realização da atividade vinculada ; e c) os espaços de permanência (pontos de lazer ou mobiliário urbano), utilizados majoritariamente no período diurno e destinado às funções de lazer e cuidados com terceiros - atividades que muitas vezes mesclam-se entre si, posto que nos espaços públicos são poucas as ocupações de lazer feminino sem vínculos com os cuidados com crianças, maridos, idosos ou animais de estimação.

Quando analisamos os medos, constatamos que eles não restringem-se às perdas materiais, pois se fazem presentes também em percursos realizados sem quaisquer itens de valor, mas há a predominância do medo da violação. A maior parte das mulheres se sente insegura nos espaços públicos e muitas daquelas que afirmam-se confortáveis contradizem-se, por vezes, em seus relatos. Tais contradições refletem a complexidade da realidade e marcam os discursos de mulheres distintas ou, inclusive, de uma mesma mulher.

Ao mesmo tempo que se afirmam confortáveis no espaço, as sujeitas descrevem situações de desconforto e estratégias para assegurar sua proteção, como a seletividade de percursos, vestimentas e posturas. Ao referirem-se a situações de violência, negavam ter presenciado ou vivenciado alguma ocorrência, mas descreviam cenários com violências e agressões - físicas ou verbais. Por outro lado, enquanto uma mulher afirmava ter medo da polícia, outra dizia que policiamento era a solução.

Eu me sinto bem, até porque muitas vezes nem dou atenção e nem percebo se houver olhares sobre mim. Para eu perceber precisa ser algo escancarado, digo isso sobre o dia-a-dia na rua. Porque nos bares, em determinados bares, há às vezes algum desconforto na maneira de ser tratada. (Participante 37, parda, 30-39 anos)

Figura 9:  Fonte:  Categorias de espaços de acordo com seus tipos de ocupação Material elaborado pela autora, 2018. 

Figura 10:  Fonte:  Quais os medos e como se sentem as mulheres nos espaços públicos Material elaborado pela autora, 2018. 

Me sinto privilegiada. Na maioria das vezes que ando a pé tenho que ouvir cantadas e piadas relacionadas à roupa que visto. Cheguei a ouvir gracinhas mesmo estando gestante com barriga de 9 meses. Na maioria das vezes estava sozinha. Quando estou acompanhada não escuto nenhum tipo de intervenção. (Participante 49, parda, 30-39 anos) Não me recordo de ter sofrido, mas já presenciei cenas de assédio em bares localizados no bairro. (…) Me sinto muito restrita. Antes de sair de casa preciso conferir o tamanho da minha roupa, pra não me sentir desconfortável com os olhares ou comentários de assédio. (Participante 23, branca, 18-29 anos)

Apesar de contraditórias entre si, as situações de maior desconforto pareciam coincidir em alguns pontos principais : a) onde haviam uma proporção de homens consideravelmente maior do que de mulheres ; b) onde haviam trechos não-comerciais ou com comércios fechados ; ou c) onde existiam barreiras de visibilidade que ocultavam a situação dos olhares externos. Destaca-se, também, a presença (ou não) de pessoas, policiamento e iluminação no local, como afirmou a frequentadora do bairro no cartaz :

Não tinha (medo) até ser assaltada aqui e o policial me culpar : “E o que foi fazer andando a essa hora ? (Anônima)

O mapeamento, por sua vez, apontou espacialmente onde ocorreram as ocorrências, destacando-se entre os relatos : a) a quantidade de abordagem com crianças, entre 8 e 12 anos, enquanto ambas se encontravam dentro de suas casas ; b) os casos de perseguição onde as vítimas, por sorte, conseguiram desviar-se para estabelecimentos comerciais próximos ; c) a quantidade numerosa de assédios provocados por homens em seus veículos ; e d) os casos de masturbação pública e agressão física, especialmente próximos à praia.

Figura 11:  Fonte:  Cartazes distribuídos no bairro da Jatiúca Material elaborado pela autora, 2018. 

Figura 12:  Fonte:  Cartazes distribuídos no bairro da Jatiúca Material elaborado pela autora, 2018. 

Figura 13:  Fonte:  Características positivas e negativas do espaço presentes nos relatos anônimos Material elaborado pela autora, 2018. 

Para além disso, quando inseridas no contexto urbano, as ocorrências de violências semelhantes apresentavam algumas características em comum : a) todos os casos de perseguição descritos se davam ao longo das grandes avenidas do bairro, nas proximidades de colégios ou de paradas de ônibus. Os horários correspondiam com o final do expediente escolar ; b) os assaltos concentravam-se nas ruas adjacentes, estreitas, predominantemente residenciais e com pouca movimentação de pessoas ; c) as ruas mais movimentadas eram também os locais onde mais ocorriam os assédios verbais, procedentes dos veículos em movimento ; d) em grande parte dos relatos, a vítima estava apenas atravessando a rua ; e) as abordagens com crianças ocorriam, majoritariamente, enquanto as mesmas se encontravam dentro dos próprios prédios, localizados nas vias de menor movimento ; e f) todos os casos de masturbação relatados ocorreram durante o dia num raio próximo à orla ou mesmo na praia.

Os relatos descrevem de maneira espontânea um conjunto de estratégias de sobrevivência, especialmente relativas à forma de se portar e aos tipos de percursos realizados, demonstrando que, além dos códigos de comportamento socialmente exigidos da mulher, há uma série de movimentações e adaptações cotidianas para autoproteção - ainda que efetivamente tais atos não representem uma proteção ou impeçam uma prática de violência. A observação atenta de tais indicativos também apontam algumas características espaciais que fornecem uma maior sensação de segurança - como locais de maior movimentação de pessoas -, além de assinalar horários de utilização, padrões de deslocamento e padrões de vestimenta.

É interessante pontuar que tais padrões vão ao encontro das propostas de melhorias narradas pelas mulheres, enfatizando a) a presença de mulheres para ocupar a rua coletivamente ; b) o policiamento preparado especialmente para lidar com a violência de gênero ; c) a necessidade de melhoria da mobilidade local, encurtando percursos através do incentivo à diversidade e da adequação dos pontos de ônibus ; d) a adoção de fachadas ativas e aumento das relações público x privado ; e e) a urgente melhoria da iluminação e incentivo à novas atividades noturnas.

Figura 14:  Fonte:  Mapeamento de ocorrências de violências de gênero Material elaborado pela autora, 2018. 

Figura 15:  Fonte:  Mapeamento de ocorrências de violências de gênero Material elaborado pela autora, 2018. 

Figura 16:  Fonte:  Estratégias de sobrevivência presentes nos relatos Material elaborado pela autora, 2018. 

Figura 17:  Fonte:  Propostas de melhorias presentes nos relatos Material elaborado pela autora, 2018. 

Considerações finais (ou por uma cidade pensada por elas)

Por si só, a supervalorização do debate sobre o medo nas discussões sobre gênero na cidade reflete o abismo entre a realidade da mulher na cidade e sua autonomia e liberdade no espaço. Através dos relatos coletados, fica evidente que, se ainda há um longo caminho a ser percorrido para que sejam garantidos seus direitos básicos de ir e vir, as demandas de espaços designados para o público feminino parecem menos importantes e permanecem esquecidas, inclusive pelas próprias mulheres.

Reconhecendo que a discussão da posição social da mulher no contexto urbano - de forma indissociável das outras opressões - é uma pauta urgente, é preciso ainda ter cautela para que as estratégias relacionadas ao planejamento urbano a partir de uma perspectiva de gênero não acabem por reforçar ainda mais os estereótipos de gênero. Deve-se evitar, portanto, políticas públicas que enfatizem apenas a responsabilidade da mulher no tocante à reprodução social, atividades domésticas ou cuidados com a família. Não se trata de reforçar ou naturalizar papéis socialmente construídos, mas de reconhecê-los para reivindicar a realidade posta e, somente assim, garantir a autonomia das mulheres na ocupação do espaço, respeitando seus desejos e necessidades pessoais.

Obviamente que conquistar a liberdade nunca se dará unicamente pelo âmbito espacial, posto que a verdadeira mudança deverá ser uma mudança social, ideológica e estrutural exigida de mulheres para mulheres. Enquanto isso, é necessário defender pautas e demandas femininas, tornando visíveis não apenas os desejos de uma maior segurança, mas de acesso livre ao lazer, aos espaços públicos, à circulação e à permanência em todos os espaços da cidade.

Finalmente, construiu-se aqui uma breve visão do que significa ser mulher na cidade, reafirmando a urgência de incluir abordagens focadas na questão de gênero. A Jatiúca é apenas um recorte, mas as falas anônimas presentes nesse estudo são individuais e ao mesmo tempo coletivas : estão em (quase) todo lugar. Talvez o maior desafio na sequência desse estudo seja ampliar o olhar de gênero e espaço público, agora voltado a um território periférico, não para traçar comparativos, mas para apresentar realidades distintas em um mesmo contexto temporal e espacial. Reconhecer as distinções entre as mulheres e os territórios é talvez o primeiro passo para garantirmos a autonomia feminina no âmbito urbano e reproduzirmos cidades sob uma perspectiva feminista.

Referências bibliográficas

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1Até o ano de 2018, a palavra mulher era também associada aos termos acima designados. Disponível em https://www.tsf.pt/sociedade/interior/foxlife-e-priberam-alteram-a-palavra-mulher-no-dicionario-9365004.html Acesso em : 06 de setembro de 2019.

2Orientado pela Prof. Dr. Juliana Michaello Macêdo Dias e defendido em 2018 na Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal de Alagoas. Disponível em https://issuu.com/julialyra0/docs/tfg_-_imperman_ncias_e_inseguran_as Acesso em : 07 de setembro de 2019.

3O conceito de interseccionalidade foi definido por Kimberlé Crenshaw no ano de 1991 em seu artigo “Mapping the Margins : Intersectionality, Identity Politics and Violence Against Women of Color” (ou, em português, “Mapeando as margens : interseccionalidade, política de identidade e violência contra mulheres não-brancas”).

4Será abordada a experiência especifica da mulher ocidental contemporânea, alagoana, maceioense e frequentadora do bairro da Jatiúca - objeto de estudo.

5A conclusão de que as experiências divergem entre si veio não apenas da observação individual em campo dos comportamentos distintos, mas especialmente de falas das próprias mulheres que referiam posturas dessemelhantes com relação a homens (maridos, filhos, amigos ou anônimos).

Recebido: 01 de Outubro de 2019; Aceito: 22 de Janeiro de 2020

Júlia de Freitas Correia Lyra. Bolseira da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (PTDC/ART-DAQ/28984/2017 - FCSH/IHC), Mestranda do Instituto de Geografia e Ordenamento do Território da Universidade de Lisboa (IGOT/ULisboa). R. Branca Edmée Marques, 1600-276 Lisboa, Portugal. Email : julialyra@campus.ul.pt

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