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Forum Sociológico

Print version ISSN 0872-8380On-line version ISSN 2182-7427

Forum Sociológico  no.40 Lisboa June 2022  Epub July 29, 2022

https://doi.org/10.4000/sociologico.10535 

Dossiê - Envelhecimento, ciclo de vida e desafios societais

E tudo a viuvez levou? O impacto da morte do cônjuge no papel das mulheres nas famílias

Gone with the widowhood? The impact of the death of the husband on the role of women within the family

1iUniversidade de Coimbra, Faculdade de Economia, Centro de Estudos Sociais, 3000-995 Coimbra, Portugal


Resumo

Apesar do significativo peso da população idosa na sociedade portuguesa, continua a existir pouca produção científica dedicada às experiências dessa população, e ainda menos sobre mulheres idosas viúvas. Com o objetivo de inverter este cenário, este artigo discute o impacto da viuvez no papel das mulheres nas famílias.

A discussão apresentada baseia-se nos contributos de diferentes áreas de conhecimento - como a sociologia da família, os estudos dedicados às mulheres e ao envelhecimento - e nos relatos de quinze mulheres viúvas - recolhidos através da realização de entrevistas em profundidade.

Os relatos das mulheres entrevistadas revelaram uma tendência no modo de viver a viuvez, transversal a todas as dimensões das suas vidas, quase sempre orientadas para os outros e quase nunca para si mesmas. As suas trajetórias caracterizam-se por desigualdades múltiplas e são significativamente moldadas por modelos e representações tradicionais, mostrando que nem tudo a viuvez levou.

Palavras-chave: mulheres; viuvez; velhice; família

Abstract

Despite the significant weight of the elderly population in the Portuguese society, there is still little scientific literature on their experiences, especially on widowed older women. In order to overcome this lack of knowledge, this paper discusses how widowhood impacts the role of women within the family.

This discussion is based on a range of contributions from different fields of studies - such as sociology of the family, women’s and ageing studies - and on the narratives of fifteen widowed women - collected through in-depth interviews.

The narratives of the women interviewed revealed a pattern in the way of living widowhood, which is present in all dimensions of their lives, mostly oriented to others and rarely to themselves. Their trajectories are marked by multiple inequalities and significantly shaped by traditional models and representations, proving that widowhood did not take everything.

Keywords: women; widowhood; aging; family

Introdução

Este artigo resulta da investigação realizada no âmbito da dissertação de mestrado em Sociologia: ‘Quando ele morreu’: O papel das redes relacionais na viuvez feminina, levada a cabo entre 2018 e 2019. Esse trabalho exploratório focou-se nos padrões de relações sociais das mulheres viúvas. Usando contributos das teorias das redes, centrou-se na análise da morfologia das redes sociais das viúvas, como meio para compreender de que modo as pessoas que elas conhecem, que consideram próximas, com quem interagem e a quem recorrem em determinadas situações para serviços e apoios diversos, influenciam as diferentes esferas da sua vida. Este artigo foca-se apenas nos resultados dessa investigação sobre o impacto da viuvez no papel das mulheres nas famílias.

Na análise sociológica, tanto a velhice como a viuvez continuam a estar deficitariamente representadas. De uma forma geral, a sociologia da família, e até os estudos feministas, não se dedicam às mulheres mais velhas (Gibson, 1996; Torralbo & Guizardi, 2020). Este vazio é ainda maior no conhecimento produzido sobre mulheres idosas viúvas. No contexto português, as poucas análises do impacto da perda do cônjuge vêm da área da psicologia (Keong, 2010; Oliveira, 2012; Silva, 2012; Silva & Alves, 2012) e gerontologia (Amorim, 2011; Santos, 2012), com foco nas componentes emocional e psicológica. Contudo, a viuvez feminina constitui-se como uma ‘crise no percurso biográfico’ (Caetano, 2018), que se modela de especificidades que contagiam múltiplas dimensões da vida, não se resumindo aos impactos emocionais ou psicológicos, nem se definindo apenas como uma crise no sistema familiar (Dickinson & Fritz, 1981).

Com o aumento da esperança média de vida, vive-se mais e de forma mais diversa. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS, 2015), as características da população mais velha são cada mais vez mais heterogéneas, tal como a experiência de envelhecer o é, dependendo do lugar que as pessoas ocupam no mundo, geográfica e socialmente. Como defenderemos adiante, a velhice e a viuvez são fenómenos construídos socialmente e vividos de forma subjetiva. São também processos multidimensionais, com alterações ao nível físico e cognitivo, mas também ao nível relacional, económico e social. As particularidades das sociedades onde os indivíduos se inserem, a (in)existência e a (in)eficácia de políticas e equipamentos orientados para o envelhecimento, moldam o impacto que essas alterações têm nas trajetórias de vida1.

Este artigo apresenta os resultados de uma análise situada e circunstancial que permitiu cruzar as especificidades da população idosa com as da viuvez feminina. Esta investigação ancora-se num contexto de existência particular, moldado pelas particularidades da sociedade portuguesa e das trajetórias de vida das mulheres viúvas que participaram neste estudo. Devido ao carácter multidimensional do fenómeno em análise, mas também à lacuna existente na produção científica sobre esta temática, combinam-se os contributos de diferentes saberes, como os estudos sobre as famílias, as redes, as mulheres, o envelhecimento, a divisão sexual do trabalho e providência de bem-estar e segurança social na sociedade portuguesa. Esses contributos são apresentados na primeira parte deste texto.

Numa segunda secção a metodologia é apresentada. Esta investigação orientou-se pelas recomendações da abordagem biográfica. Assumindo o carácter exploratório do trabalho, foram realizadas entrevistas em profundidade, com carácter de história de vida, a quinze mulheres viúvas residentes na Região Centro (Beira Litoral) do país.

Na terceira, apresentam-se e discutem-se os dados recolhidos e algumas pistas para investigação futura. Os relatos de vida das mulheres entrevistadas permitem identificar uma tendência no modo de viver a viuvez, transversal a todas as dimensões das suas vidas, quase sempre orientadas para os outros e quase nunca para si mesmas.

Por fim, conclui-se que as trajetórias de vida das mulheres entrevistadas se caracterizam por desigualdades múltiplas e ainda significativamente moldadas por modelos e representações tradicionais, que se consolidaram antes da viuvez.

Enquadramento teórico

Apesar da pertinência e da necessidade do seu estudo, em Portugal não existe produção sociológica dedicada à viuvez. Na ausência de estudos sobre a experiência da viuvez, dão-nos pistas outros e diversificados contributos sobre os contextos que a compõem. Estudos dedicados às mulheres, ao envelhecimento, às relações familiares e sociais permitem-nos esboçar um quadro teórico mais próximo da problemática da viuvez feminina e enquadrá-la nas particularidades do contexto português.

Em Portugal, mais de metade dessa população2 é constituída por mulheres, o que se explica pela sua elevada esperança média de vida à nascença, em relação àquela apontada para os homens3. Além da discrepância da longevidade entre os sexos, há uma discrepância entre as idades dos cônjuges no casamento4, sendo que culturalmente os homens casam com mulheres mais novas (Souza et al., 2015, p. 939). Os fatores demográficos e culturais apontados aumentam a probabilidade de os homens, depois de perderem as companheiras, voltarem a casar. Por tudo isto, os homens passam menos pela experiência da viuvez (Mauritti, 2004, p. 344) e por um período de tempo mais curto. Há uma feminização da viuvez5.

A viuvez feminina é uma experiência individual, subjetiva e é também um fenómeno influenciado pela organização social, por fatores sociais e históricos que interferem na forma pessoal e subjetiva como esse processo é vivido. A sua análise deve ser informada no conhecimento das estruturas sociais do contexto em que se insere. Deve também compreender a relação da viuvez com outras experiências, como a conjugalidade e velhice, que moldam e são moldadas pela viuvez.

Segundo Pimentel (2001, pp. 14-15), em Portugal, a situação dos idosos é mais diversificada e complexa do que poderemos pensar, adiantando que, ao contrário do que comummente se reproduz, os idosos ocupam nas famílias e na sociedade uma posição que está longe de ser, em muitos casos, de desvalorização e marginalização (Pimentel, 2001, p. 29). O estudo sobre o lugar do idoso na sociedade portuguesa é necessariamente enquadrado na realidade do país, nas especificidades da assistência social, das relações e solidariedades informais, onde se registam transformações que, acompanhadas de alterações na estrutura demográfica, compõem um cenário de desequilíbrio. No entanto, o envelhecimento por si só não é necessariamente um problema.

Na realidade portuguesa, o topo envelhece em paralelo com a base, gerando um duplo envelhecimento da população (Pimentel, 2001, p. 46)6. A soma destas parcelas resulta no aumento do número de dependentes, que pesa significativamente nos sistemas de proteção e assistência social, formais e informais. Havendo mais pessoas a recorrer a esses sistemas de apoio e existindo menos recursos, humanos e económicos, o envelhecimento demográfico poderá constituir um cenário de desequilíbrio. No entanto, Pimentel defende que definir o problema do envelhecimento ao nível das despesas públicas, não sendo totalmente errado - porque existem, de facto, custos sociais pesados -, é uma ideia redutora, sugerindo recolocar a tónica na questão da integração social dos idosos e nas suas funções na vida social (Pimentel, 2001, p. 47).

A importância do reconhecimento da organização social e posição social dos indivíduos como componentes basilares na conceção social da velhice é apontada por outros há muito7. A perda de capacidades físicas e psicológicas são etapas naturais no processo de envelhecer. Porém, a forma como se olham essas etapas - valorizando-as ou desprezando-as - é idealmente construída e varia em cada sociedade.

Além disso, sabe-se que a viuvez é vivida de forma diferenciada entre homens e mulheres (Bennett et al., 2005; Streeter, 2020). Blieszner (1993, p. 172) mostrou como se dá essa diferenciação, olhando a esfera privada e familiar. No seio doméstico, a especialização do desempenho de papéis e tarefas ocorre desde cedo no casamento e torna-se progressivamente bem-definida ao longo do tempo (op. cit.), prevalecendo ainda entre a população mais velha. Outras autoras comprovam como “continua a destacar-se, prevalentemente, entre as idosas um compromisso com as atividades realizadas em casa” (Baldin & Fortes, 2008, p. 50). No entanto, como Souza et al. (2015, p. 942) indicam, a viuvez feminina parece trazer sempre uma ressignificação das questões de género depois da viuvez: tanto as mulheres como homens viúvos têm de assumir novos papéis ou encontrar alguém que substitua o papel do cônjuge perdido.

No caso das mulheres, é a referida ‘tradição’ (Baldin & Fortes, 2008, p. 50) nas atividades domésticas as faz mais bem preparadas e mais autónomas para viverem sozinhas, em comparação com os homens viúvos. Pelo contrário, a experiência de viver sozinho é “percebida pelos viúvos mais como uma privação, depois de uma vida a serem cuidados por uma mulher em quem concentraram a sua existência emocional” (Davidson, 2002, p. 43).

Em Portugal, o papel das mulheres no desempenho do trabalho doméstico e de cuidado não pode ser dissociado da especificidade da assistência e da providência social portuguesa e é, por isso, essencial perceber a relação da esfera privada e familiar com outras esferas de produção de bem-estar. O sistema que fornece assistência e proteção social apoia-se fortemente na existência de mecanismos informais, não contratuais, estabelecidos ao nível das redes de relações sociais dos indivíduos. São estas redes que constituem a chamada Sociedade-Providência (Santos, 1995) e fornecem proteção e segurança social informal. Durante muito tempo, a inexistência de um sistema articulado entre Estado, Mercado e Sociedade foi coberta pelas famílias, que assumiram um papel crucial ao nível da assistência social e criaram “o seu próprio sistema de provisão social” (Portugal, 2014, p. 21). Ainda hoje, a provisão e a assistência estatal, as políticas e os equipamentos sociais e paras as famílias continuam a compor um perfil de fragilidade e deterioração dos serviços, com características iguais àquelas apontadas por Hespanha (1999; Hespanha et al., 2000) no final do século passado. Apresentam um perfil de desinstitucionalização, assente na dependência da sociedade civil e, sobretudo, das famílias, onde os vínculos de apoio continuam a estabelecer-se. As famílias têm assegurado a satisfação das necessidades da população, garantindo a sua proteção social e colmatando as falhas da providência estatal (Portugal, 2014, p. 8). Dentro das famílias, são as mulheres quem particularmente assume esse trabalho de reprodução social. É fundamental perceber os custos dessa realidade estrutural na vida das mulheres, nomeadamente nas suas trajetórias profissionais e no seu papel na reprodução social familiar.

De uma forma geral, os contributos teóricos acima enunciados sugerem que a viuvez levará as mulheres a encontrar novas formas de perceber a sua condição, construir novas orientações normativas sobre a vida privada e familiar - novas representações alimentadas por novas práticas e vice-versa - mais ou menos distantes daquelas da vida em casal. Torna-se clara a relação entre a conjugalidade e a identidade pessoal e social, entre o casamento e a divisão social e sexual do trabalho. Tal como Torres (2002) demonstrou, a relação conjugal produz modelos de normatividade, constrói expectativas e aspirações que moldam o que se pensa, o que se espera e o que se faz. Por isso, para melhor compreender as representações e as práticas das mulheres na viuvez, é necessário conhecer a sua vida antes da perda do cônjuge: a vida conjugal.

É certo que a modernização das famílias trouxe novas formas de funcionamento e vida familiar, mas, tal como Portugal (2014, p. 19) comprovou, essas alterações significaram mais uma diversificação e menos uma rutura com os modelos tradicionais. Apesar das transformações registadas, as configurações familiares portuguesas mantêm amarras à normatividade tradicional, num conflito entre aquilo que as pessoas aspiram e valorizam e aquilo que continuam a praticar. Em Portugal, onde os valores familistas são centrais (Portugal, 2014, p. 579), o processo de individualização da estruturação das famílias não abalou a continuidade da importância do parentesco nas relações sociais dos indivíduos, e as relações familiares continuam a ser regidas pela valorização das obrigações familiares.

Esta investigação procurou entender o impacto destas configurações sociais na trajetória das mulheres viúvas, seja na conjugalidade, seja na viuvez. Em suma, o objetivo deste artigo é o de discutir as consequências da perda do cônjuge na atribuição de responsabilidades e na distribuição do trabalho doméstico e de cuidado no seio doméstico e familiar entre os elementos que o compõem, tendo em conta o papel central que as mulheres desempenham na reprodução social na sociedade portuguesa.

Metodologia

A velhice e a viuvez constituem realidades diversificadas, complexas e de difícil definição que, somando à pouca produção de conhecimento sobre as mesmas, impõem no seu estudo a necessidade de mobilizar diferentes saberes. Esta condição influenciou também a escolha da abordagem metodológica que organizou a pesquisa de terreno: a abordagem biográfica. O conhecimento que aqui se expõe é diretamente ancorado na experiência dos indivíduos, é situado e informado, e a sua validade não assenta na possibilidade de os dados serem generalizáveis a outros contextos. Em vez disso, a produção de conhecimento orienta-se por pressupostos como a profundidade, o rigor e o detalhe.

Estes pressupostos operacionalizaram-se através da realização de entrevistas em profundidade com carácter de histórias de vida (Atkinson, 2002). Tal como Bertaux (2020) defende, as narrativas de vida revelaram-se fontes ricas de sentido, significado e valor interpretativo. A partir delas, tivemos acesso a uma descrição detalhada das trajetórias pessoais e familiares das entrevistadas, que organizaram as suas narrativas cronológica e afetivamente, identificando nos seus próprios termos momentos e pessoas marcantes, continuidades e ruturas nas suas biografias.

A seleção de participantes nesta investigação orientou-se pelo princípio de saturação, que se define como o momento do trabalho de campo em que quem investiga sente que os dados recolhidos se tornaram previsíveis e repetidos (Glaser & Strauss, 1967). Segundo Johnson (2002, p. 113), esse é o momento em que a curva de aprendizagem atinge o seu pico, a partir do qual “se aprende progressivamente menos com as entrevistas”. Mas, para isso, quantas entrevistas é que são precisas? Walker (1985) dir-nos-ia que as suficientes (“enough”), o que nesta investigação se traduziu em 15 entrevistas, o que resultou em cerca de 14h de entrevista.

Devido ao peso demográfico da viuvez na população com mais de 65 anos, o objetivo era o de realizar entrevistas apenas a mulheres viúvas pertencentes a esta faixa etária. No entanto, participaram neste estudo mulheres com idades compreendidas entre os 60 e os 79 anos8 e viúvas há pelo menos 18 meses9, com e sem filhos, sendo que todas viviam sozinhas. Procurou-se a diversidade em relação aos seus níveis de escolaridade, origem geográfica e classe social10. Do grupo de mulheres entrevistadas, 10 frequentaram ensino básico, 1 frequentou o ensino secundário, 3 frequentaram o ensino superior e 1 detêm um curso técnico. A maioria, 7, concluiu os estudos com a antiga 4º classe (hoje 4º ano do ensino básico). À data das entrevistas, 9 das entrevistadas estavam já aposentadas e 6 mantinham a sua atividade, sendo que dessas, metade desenvolve atividade à margem do mercado formal de trabalho.

Os contactos realizaram-se a partir de redes pessoais e através de uma estratégia de bola de neve. Devido a limitações temporais e financeiras impostas à realização do estudo, só foi possível levar a cabo entrevistas junto de mulheres viúvas a residir num distrito da zona centro do país, tendo sido entrevistadas 5 residentes em zonas com características rurais, 4 em zonas periféricas da cidade e 6 residentes a residir no centro de uma cidade.

As entrevistas realizaram-se em locais e horários escolhidos pelas entrevistadas, sendo que a maior parte teve lugar nas suas casas. As restantes entrevistas realizaram-se nos seus locais de trabalho - a saber, 2 escolas secundárias, 1 restaurante e 1 casa - e outro locais escolhidos pelas entrevistadas - capela, café, pastelaria e centro de atividades culturais e desportivas. As casas das entrevistadas, em comparação com os restantes locais nomeados, mostraram ser espaços privilegiados para a realização de entrevistas, não só pela privacidade, como também pelo ‘à vontade’ verificado nas entrevistadas em estarem em casa, e por permitirem o recurso a elementos da própria casa (fotografias, plantas e outros objetos) para ilustrar os seus discursos. Nas conversas levadas a cabo noutros espaços esteve sempre presente nas entrevistadas uma atitude de quase autodefesa perante a possibilidade de exposição a pessoas desconhecidas - atitude patente quer na limitação dos episódios narrados, quer na moderação do tom de voz, assim como na constante vigilância do que se passava ao redor.

A desvalorização dos discursos foi uma questão presente ao longo do trabalho de campo. Apesar de ser explicado inúmeras vezes o objetivo da entrevista, assegurado o anonimato e referido não haver “respostas certas/erradas”, as entrevistadas desvalorizavam frequentemente as suas narrativas. Uma das entrevistas não foi gravada, pois, na opinião da entrevistada nada do que ela poderia dizer teria relevância que justificasse a gravação. Mesmo comentando situações e experiências próprias, interrompiam frequentemente os seus discursos para pedir que as corrigisse caso necessário ou para desconsiderar as suas falas - “isto provavelmente já não lhe interessa nada”. Com o decorrer da entrevista, estas preocupações diluíam no mergulhar dos quotidianos e no exercício retrospetivo que o relato lhes exigia.

Estes relatos foram submetidos a uma análise temática. A possibilidade de analisar o sentido que as entrevistadas dão às suas ações trouxe uma maior profundidade da informação, e, por isso, maior valor interpretativo de diferentes ordens de realidade do mesmo objeto social: a viuvez feminina. A comparação detalhada e cuidadosa das narrativas recolhidas permitiu sobrepor, consolidar e confirmar os testemunhos (Bertaux, 2020, p. 11). Assim, comparando entre si as experiências subjetivas, resultaram repetições e emergiram padrões acerca da experiência da viuvez das entrevistadas. A análise que se segue nasce dos seus discursos, num registo descritivo que pretende revelar as suas experiências através das suas próprias palavras.

Resultados & discussão

Conjugalidade & viuvez

A revisão bibliográfica sugeria que a viuvez tornaria inviável a manutenção do contrato social assente na desigualdade e verticalidade entre homens e mulheres na relação conjugal (Baldin & Fortes, 2008, p. 50). Os dados recolhidos mostram como a viuvez parece não ter desfeito esse contrato, apenas atenuando o peso do compromisso com o trabalho doméstico e de cuidado - quer na concretização desse trabalho, que passou a ser quase sempre levada a cabo por outras mulheres contratadas para o efeito, quer na responsabilidade, porque as mulheres entrevistadas não se sentem mais na obrigação de as fazer: “Não tenho que dar satisfações a ninguém. Se não me apetece cozinhar ou se não me apetece o que tenho, vou comprar.” (Sílvia Gonçalves11, 79 anos, viúva há 3 anos) As tarefas administrativas, por serem as que mais vezes foram assumidas pelos maridos durante a relação conjugal, são as únicas tarefas domésticas cuja responsabilidade foi transferida para as viúvas depois da morte dos maridos.

Apesar do aliviar do compromisso com o trabalho doméstico, a morte do cônjuge não resultou numa alteração do papel das mulheres viúvas na provisão de bem-estar no seio familiar. Depois de cuidarem dos maridos, as mulheres entrevistadas continuam a cuidar da casa, dos filhos, dos netos e de outros familiares. É para eles que orientam a sua vida e as suas trajetórias demonstraram ser perpassadas por obrigações familiares. Todas as entrevistadas avós dizem dedicar grande parte do seu tempo a cuidar dos netos, dando assistência aos filhos. Tal como Portugal (1995) constatou, “as mãos que embalam o berço” são sobretudo femininas e mãos que já o fizeram mais do que uma vez. Mulheres que ajudam mulheres e que estabelecem redes de solidariedades femininas. Estas mulheres, enquanto filhas, ajudaram as mães. Enquanto esposas e mães, cuidaram da casa e dos filhos. Hoje, cuidam dos netos e voltam a ajudar os pais, desta vez, cuidando deles.

O papel que as mulheres entrevistadas assumem na reprodução de bem-estar na viuvez é uma continuidade daquele assumido na conjugalidade, corroborando a ideia de que hoje ainda não assistimos a um modelo de divisão sexual do trabalho mais igualitário e democrático (Ferreira & Monteiro, 2015, p. 65). Afinal, a entrada e a participação das mulheres no mercado de trabalho não mostra ter sido, ainda, acompanhada proporcionalmente pela dos homens na esfera doméstica. Wall et al. (2018) esclarecem como, em Portugal, o quadro de valores e representações sociais evoluiu a uma velocidade que as atitudes e as práticas efetivas não acompanharam. Apesar da igualdade sexual nas oportunidades e na distribuição de tarefas e responsabilidades domésticas ser uma constante discursiva, estando até na origem de novos modelos de conjugalidade, parentalidade e masculinidade (op. cit., p. 461), as trajetórias familiares e profissionais dos cônjuges não se desenham de forma idêntica ou paralela, sendo que o papel que homens e mulheres assumem nessas esferas continua a não ter o mesmo valor no contexto conjugal das mulheres entrevistadas, tal como demonstram outros trabalhos (Ferreira & Monteiro, 2015; Wall et al., 2018), que olharam o contexto nacional. A esfera privada e familiar continua a ser marcada pelos papéis de género, com tarefas e funções associadas ao que é ser homem e ao que é ser mulher.

Durante a conjugalidade, mesmo nos casos excecionais em que as mulheres não eram as responsáveis pelo trabalho doméstico, não se verificava a aplicação de um modelo igualitário, traduzido na participação do cônjuge nas tarefas. Constata-se também a ausência de negociação ou a distribuição explícita de tarefas entre os elementos do casal. À exceção de duas entrevistadas que contavam com a participação do marido no trabalho doméstico, todas as mulheres disseram nunca ter conversado sobre quem fazia o quê dentro do casal. No entanto, a partir da análise dos seus relatos percebe-se que essa divisão está bem definida desde o início da vida partilhada: “Era assim, porque era assim.” (Otília Pinheiro, 75 anos, viúva há 2 anos). A não-negociação/conversação parece estar mais associada ao tipo de modelo de divisão e às representações sociais nele incorporadas. A inexistência de negociação das tarefas domésticas deve-se, também, à presunção da sua natural atribuição, que sustenta a persistência desde modelo mesmo após a morte do cônjuge.

As narrativas recolhidas revelam, ainda, como as obrigações familiares moldam as trajetórias profissionais das mulheres entrevistadas. Nem o despedimento, nem necessariamente a vontade das entrevistadas são razões que levam algumas mulheres a desistir da sua profissão. O abandono da profissão temporária ou (quase sempre) definitiva, para cuidar do marido, nos casos em que este morreu por doença, é uma tendência entre elas, ilustrada de forma expressiva pelo caso de Luísa Lopes. Diz ter “largado tudo” para cuidar do marido, ficando responsável por todos os cuidados e tarefas domésticas relacionadas com a casa e com o marido. Depois da morte dele, tomou conta da mãe e da tia que também adoeceram: “Fui enfermeira a vida toda e prisioneira da vida de cuidadora.” (Luísa Lopes, 75 anos, viúva há 14 anos). Mesmo antes de se casarem, o papel de cuidadoras já marcava as trajetórias destas mulheres - como no caso de Ana Coelho (77 anos, viúva há 11 anos) que estudou apenas até ao irmão nascer, a partir daí teve de começar a trabalhar e a cuidar dele.

Novos relacionamentos amorosos

Barbara J. Todd (1994, p. 429), analisando o discurso de viúvas ainda no século XVII, demonstra que a viuvez era já aí percebida como um período de liberdade - perceção que nem as consequentes dificuldades económicas parecem abalar. O que têm em comum as viúvas do século XVII com as viúvas da contemporaneidade? Referirem-se a permanecerem ‘livres’ quando rejeitam a possibilidade de um novo relacionamento amoroso (Todd, 1994, p. 429). Com certeza, a expressão “estar livre” assume hoje significados diferentes daqueles manifestados no século XVII (op. cit.), no entanto, esse continua a ser um pensamento transversal às mulheres viúvas, de diferentes tempos, contextos e classes.

Alguma bibliografia sugere haver “grandes benefícios para aquelas que voltam a casar” (Zick & Smith, 1988, p. 241). No entanto, uma tese contrária é apresentada por Barbara J. Todd (1994), na sua perspetiva história acerca da agência feminina na viuvez. A autora foca-se na agência das viúvas na decisão de não se voltarem a casar, recusando a ideia de que esta resulta de um “determinismo demográfico” ou de outros fatores, como a situação económica das viúvas. Quanto a esta última, a autora questiona o seguinte: “Embora a opção de não se casar possa ter sido atrativa para as viúvas ricas, a situação era diferente para as mulheres mais pobres. Então, porque é que até mesmo as viúvas pobres às vezes escolhiam não se casar novamente?” (Todd, 1994, p. 426). A autora explica que mesmo para as viúvas pobres um novo casamento significaria mais trabalho. Mas o que significará voltar a casar para as mulheres entrevistadas? Se uma nova relação amorosa não faz parte dos seus projetos de vida, o que é que as faz recusar essa possibilidade? A decisão é resultado dos constrangimentos demográficos e culturais? Que representações sociais influenciam as suas opiniões, comportamentos e decisões? O que significa para elas uma relação amorosa?

Na análise da situação conjugal das mulheres entrevistadas, concluiu-se que a ausência de novos relacionamentos amorosos nos seus projetos de vida é uma tendência marcante. Exceção feita a duas delas, todas as entrevistadas dizem nem ter tido relações amorosas após a morte dos maridos, nem o desejarem. Indicadores demográficos e tendências culturais já enunciados poderiam levar-nos a pensar que a ausência de projetos amorosos na vida das mulheres viúvas assenta no número reduzido de oportunidades de encontrar um novo cônjuge. No entanto, o não desejo de uma nova relação parece não estar tanto relacionado com a falta de potenciais companheiros, mas mais com outras justificações. Nos seus discursos, sobressaem duas.

A primeira tem a ver com a ‘santificação’ dos maridos, que apesar de falecidos continuam a assumir uma importância simbólica na vida destas mulheres, mesmo a nível afetivo. Perderam os maridos, mas de certa forma com eles continuam casadas: “Eu digo que estou sempre acompanhada pelo amor do meu marido (...) O amor ultrapassou a morte.” (Rosa Margarida, 63 anos, viúva há 3 anos). A ‘santificação’ dos maridos está também associada a princípios religiosos que influem nesta dimensão da vida das mulheres entrevistadas. A figura de Deus surge em alguns discursos, que consideram a viuvez uma experiência decidida por Deus, atribuindo-lhe uma dimensão de fatalidade. Consideram a viuvez um destino que lhes foi atribuído, sobre o qual não podem interferir e que aceitam com resignação: “Porque se eu tivesse direito a algum homem, Deus não mo levava.” (Lurdes Rocha, 72 anos, viúva há 18 anos).

A segunda razão está relacionada com a ideia de que uma nova relação abalaria a liberdade e autonomia adquirida na viuvez, condições que as entrevistadas não querem ver comprometidas: “Não trocava esta minha liberdade por nada.” (Sílvia Gonçalves, 79 anos, viúva há 3 anos). Veem na possibilidade de um novo relacionamento um retrocesso em termos de autonomia e sociabilidade. À vida partilhada associam cuidados assistenciais e domésticos, que acreditam vir a remetê-las para o espaço privado e doméstico. Reconhecem na experiência da viuvez uma dimensão libertadora: “Eu tenho uma liberdade... E agora ia-me prender? Não! Não! (...) Assim não tenho que lavar roupa a ninguém, nem tenho que me preocupar com ninguém.” (Adília Ferreira, 67 anos, viúva há 16 anos).

As viúvas tendem a associar um novo relacionamento a um retrocesso em termos de autonomia e sociabilidade, relacionado com os cuidados assistenciais e domésticos, que acreditam vir a remetê-las para o espaço privado. A divisão sexual do trabalho e a indissociável ligação da relação amorosa ao casamento faz com que um novo relacionamento romântico lhes pareça acarretar compromissos demasiados onerosos, nomeadamente a renúncia à presença no espaço público e participação em atividades.

Em quase todas as narrativas acerca da dimensão afetiva, verifica-se o peso do casamento enquanto instituição enquanto instituição, que continua a ser encarado como um procedimento ‘natural’ no estabelecimento de uma relação amorosa (Torres, 2000). Ideia de que Deolinda Barros (65 anos, viúva há 6 anos) confirma ao afirmar que uma segunda razão, além da busca pela paz e sossego, a faz não querer voltar a estar com alguém: “É que eu nunca ia estar com um homem que não fosse meu marido, que não fosse casada, e não é fácil se arranjar, não é?”

O casamento continua a criar e organizar a realidade conjugal dos indivíduos. Tal como Anália Torres explica (op. cit.), ainda que se identifiquem grandes mudanças no plano valorativo que regula as relações conjugais, “a forma de conjugalidade institucional e os valores tradicionais que lhe são associados ainda estão presentes na dinâmica conjugal dos casais portugueses. É a coexistência destas práticas antigas com valores mais progressistas que faz com que pessoas que pensam que o casamento é uma instituição antiquada continuem a casar (Almeida, 2003, pp. 54-55). Assim como o casamento enquanto instituição se fragilizou, mas não desapareceu, também a visão mítica do amor, que foi dando lugar à visão prosaico-realista, não deixou de existir.

Segundo Ann Swidler, a visão prosaica do amor é uma visão mais próxima da realidade, descritiva dos relacionamentos já estabelecidos, que ajuda a compreender as suas dificuldades e como ultrapassá-las na prática (Swidler, 2003, p. 118). Por outro lado, a visão mística ajuda a responder a questões específicas e decisivas, por exemplo, “a escolha de se casar ou não ou de permanecer casado/a” (op. cit.). O que a autora nos explica é que ambas as visões são culturais e, embora mais ou menos distantes daquilo que as pessoas pensam realmente ou daquilo que é a sua experiência, continuam a organizar as suas linhas de ação (Swidler, 2003, p. 129). A vida é organizada mais em função dos contextos culturais (o que os outros esperam e o que esperam dos outros) e “menos por aquilo que vai na cabeça das pessoas quando analisam a sua experiência” (Swidler, 2003, p. 111). Assim se explica que a visão mítica do amor, apesar de distante da vida conjugal real e concreta, continue a moldar a ação, e assim de percebe que as mulheres entrevistadas não concebam a possibilidade de um relacionamento amoroso com as características de uma “relação pura” (Giddens, 2001). Para elas, “uma relação pela relação e só pela relação” (op. cit.) não é uma opção. A ideia de uma relação que não conduz necessariamente ao casamento, que dura apenas enquanto for considerada por ambas as partes uma fonte de satisfação, mas, ainda assim, uma relação centrada no compromisso, na entrega, na história partilhada e na confiança, é uma ideia muito distante dos seus pensamentos. Aqui, é feita exceção às entrevistadas mais qualificadas: Célia Cardoso (68 anos, viúva há 24 anos), Filomena Couto (60 anos, viúva há 8 anos) e Luísa Lopes (75 anos, viúva há pelo menos 14 anos).

É a visão mítica do amor que faz a maior parte das mulheres entrevistadas ‘santificar’ os maridos: eles foram/são o verdadeiro amor, que é único e transcende a morte. Mas mesmo entre as mulheres que não ‘santificam’ os maridos é possível identificar representações tradicionais acerca das relações amorosas. Quase todas as entrevistadas parecem não conceber a possibilidade de um relacionamento amoroso que não conduza necessariamente ao casamento e que não tenha uma durabilidade.

Uma vida tranquila, de ‘paz e sossego’, de ‘liberdade’ e ‘autonomia’, é assim que a maior parte das entrevistadas caracteriza esta fase das suas vidas no momento de justificar o porquê de não quererem uma nova relação, ressaltando a ideia de que um novo compromisso amoroso abalaria a sua independência. As mulheres viúvas entrevistadas narram a experiência da morte do cônjuge entrecruzando elementos de fatalidade e liberdade, mostrando a complexidade da experiência da viuvez.

Nem as viúvas desejam uma nova relação amorosa, nem a sua situação económica parece ser um fator de peso na hora de tomar decisões quando à sua vida afetiva. No entanto, isto não significa que a viuvez não lhes tenha trazido consequências significativas em termos económicos. Os discursos das entrevistadas em relação à sua situação económica após a morte do marido revelam estratégias de gestão financeira orientadas por princípios de contenção e sacrifício. A diversificação de rendimentos - através de prestações sociais ou de trabalho informal -, a poupança permanente, a acumulação de diferentes empregos, a venda de propriedades e bens materiais são algumas das ações levadas a cabo no sentido de menorizar as dificuldades económicas que a viuvez trouxe. Não há espaço para aquilo que algumas delas chamam de “esbanjamentos”, “excentricidades” ou “fartura”: “Não se pode dar um passo maior que a perna. (...) Não se pode esbanjar dinheiro, mas também não esbanjava antes.” (Otília Pinheiro, 75 anos, viúva há 2 anos). No entanto, estas práticas também já não existiam antes da morte do marido: “Aquilo que eu fazia antes, agora faço, mas, se calhar, agora com mais restrição ou ponderação.” (Rosa Margarida, 63 anos, viúva há 3 anos).

Apesar de relatarem cenários de vulnerabilidade económica, todas elas continuam a adaptar a gestão dos seus rendimentos às necessidades/obrigações familiares, nomeadamente dos filhos, a quem continuam a ajudar financeiramente: “Ajudo os meus filhos. Dou-lhes qualquer coisa... Ainda consigo ajudar. (...) Poucochinho de cada vez, mas ainda dou.” (Lurdes Rocha, 72 anos, viúva há 18 anos). Todas as entrevistadas referem a importância dos apoios sociais para a (re)organização e manutenção familiar, na maior parte dos casos fundamentais para que não passem maiores dificuldades económicas - o que demonstra como a morte do cônjuge é, em algum momento após essa perda, associada por todas as entrevistadas, independentemente da sua classe social ou nível de escolaridade, a um contexto de vulnerabilidade económica. Tal como Anália Torres (2000) explica, a conjugalidade produz uma nova realidade. No casamento se partilham recursos e cria-se uma nova situação em termos materiais (op. cit.). A viuvez altera essa realidade material e económica.

Conclusões

Sendo exploratório, este trabalho apresenta claras limitações, sobretudo, de ordem empírica. Desde logo, na diversidade das mulheres entrevistadas e na capacidade de recolher e cruzar as suas características sociodemográficas com as suas práticas e representações. Diversificar a análise em termos de classe social, escolaridade, ocupação profissional e local de residência das mulheres entrevistadas; complementar a informação discursiva recolhida com os dados de indicadores de práticas; e cruzar o conhecimento da experiência da viuvez com o de outras experiências (como o divórcio), são atos que nos parecem necessários para uma metodologia mais abrangente e uma análise mais aprofundada Apesar das suas limitações, não deixam de ser interessantes as pistas empíricas que este estudo revela, que permitem testar algumas hipóteses apontadas pelos contributos teóricos mobilizados.

Em primeiro lugar, identifica a manutenção do compromisso destas mulheres viúvas com o trabalho de cuidado, o que demonstra como as tendências apontadas pela OMS (2015) operam em velocidades e configurações diferentes, às quais as suas recomendações se devem adaptar. Ainda que não se tenham dedicado a tempo inteiro ao trabalho doméstico, que apresentem trajetórias profissionais diversas e integradas no mercado formal de trabalho e que a sua identidade não dependa exclusivamente do contexto conjugal e doméstico, as mulheres entrevistadas têm hoje mais de 65 anos e o cuidado de dependentes, mais velhos e mais novos, continua a caracterizar as suas trajetórias e as funções que desempenham nos seus mundos de existência. A provisão desses cuidados continua a depender delas, a perda do cônjuge e o avançar na idade não alteraram esse papel. Remeter para o passado o papel das mulheres enquanto cuidadoras (op. cit., p. 10) ignora a existência de mulheres cuja identidade persiste dependente desse paradigma de cuidado.

As histórias da vida das mulheres entrevistadas identificam-se trajetórias profissionais moldadas por obrigações familiares e trajetórias de desigualdade: no espaço público e no espaço privado, entre homens e mulheres e entre mulheres - com as mulheres mais qualificadas a diferenciarem-se quase sempre entre as entrevistadas. O conhecimento dessas trajetórias de vida destas mulheres revela como, à semelhança da vida antes da perda do cônjuge, as suas rotinas são orientadas para o cuidado da casa e dos familiares e a gestão das suas economias é caracterizada por estratégias de contenção e transferência para familiares. As suas histórias permitiram identificar uma tendência no modo de viver a viuvez orientada para os outros e quase nunca para si. Apesar da manutenção dos padrões mantidos durante a vida conjugal, as mulheres entrevistadas caracterizam a viuvez como um período de maior autonomia e liberdade.

A aparente dissonância entre o que fazem na viuvez e o que dizem da viuvez demonstra como esta é uma experiência complexa, que transforma e conserva simultaneamente. Apesar de ser uma experiência com perdas e consequências significativas na vida das mulheres entrevistadas, os modelos, as práticas e as representações sobre a dimensão familiar e afetiva veiculados antes da perda do cônjuge, parecem continuar a organizar a vida destas mulheres no contexto atual.

Estes resultados alertam, ainda, para a necessidade atual de discutir os desafios de uma vida cada vez mais longa tendo em conta o efeito da persistência de padrões tradicionais e desiguais, que podem travar a implementação de um quadro de envelhecimento mais saudável e igualitário, sobretudo para as mulheres.

Agradecimentos

A autora desenvolve atualmente o projeto de doutoramento “Morte do cônjuge e redes relacionais: Um estudo sobre a viuvez feminina”, financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia e pelo Fundo Social Europeu (2020.05032.BD), no âmbito do doutoramento em Sociologia na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, com acolhimento no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.

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1Ideia que surgia já no trabalho de autoras como Antónia Pedroso de Lima e Susana Matos Viegas (1998) e é defendida noutros mais recentes como os de Luísa Pimentel (2001), Maria João Valente Rosa (2016) e Rosário Mauritti (2004).

2Instituto Nacional de Estatística (INE) (2021, junho 3). População residente por local de residência, sexo e grupo etário. https://www.ine.pt/xportal/xmain?xpid=INE&xpgid=ine_indicadores&indOcorrCod=0011166&xlang=pt

3PORDATA. (2021, junho 3). Esperança de vida à nascença: Total e por sexo. https://www.pordata.pt/Portugal/Esperan%C3%A7a+de+vida+%C3%A0+nascen%C3%A7a+total+e+por+sexo+(base+tri%C3%A9nio+a+partir+de+2001)-418

4PORDATA. (2021, junho 3). Casamentos entre pessoas do sexo oposto: Total e por estado civil anterior do cônjuge do sexo masculino. https://www.pordata.pt/Portugal/Casamentos+entre+pessoas+do+sexo+oposto+total+e+por+estado+civil+anterior+do+c%c3%b4njuge+do+sexo+masculino-3394

5Em Portugal, os Censos 2021 (INE, 2021) revelam que 81 % do total de pessoas viúvas a residir em Portugal são mulheres. Dados consultados a 3 de Junho de 2022 em : https://www.ine.pt/xportal/xmain?xpid=INE&xpgid=ine_indicadores&indOcorrCod=0011167&xlang=pt

6Maria João Valente Rosa (2016, p. 16) explica como o duplo envelhecimento se deve ao aumento da população idosa e à redução da população jovem, um cenário acentuado no caso português pelo regresso, já como velhos, dos indivíduos que alimentaram, enquanto jovens, as tendências migratórias das décadas de 60 e 70.

7Consultar os trabalhos de Antónia Pedroso de Lima e Susana Matos Viegas (1988) e de Maria João Valente Rosa (2016).

8Duas das entrevistadas têm menos de 65 anos devido a equívocos nos contactos estabelecidos.

9Este é o período de tempo entendido como mínimo para a compreensão e interpretação de mudanças, continuidades e ruturas desencadeadas pela viuvez em comparação com o período de viuvez das mulheres participantes de outros estudos (Bankoff, 1983, p. 829; Ha, 2008, p. 306; Lopata, 1978, p. 356; Morgan et al., 1997, p. 748; Stedile et al., 2017, p. 331).

10No final do artigo encontra-se o quadro com uma síntese da informação sociodemográfica das mulheres entrevistadas.

11Os nomes apresentados são fictícios.

Nota

12A autora escreve segundo o Novo Acordo Ortográfico.

Recebido: 15 de Fevereiro de 2022; Aceito: 22 de Junho de 2022

Ana Rita Brás. Email: ritabras@ces.uc.pt

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