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Forum Sociológico

versão impressa ISSN 0872-8380versão On-line ISSN 2182-7427

Forum Sociológico  no.40 Lisboa jun. 2022  Epub 29-Jul-2022

https://doi.org/10.4000/sociologico.10645 

Recensão crítica

Fernandes, L. (2021). As lentas lições do corpo - Ensaios rápidos sobre as relações entre o corpo e a mente. Contraponto, 239 pp. ISBN 978-989-666-248-6, por João Queirós

1i Instituto Politécnico do Porto, Escola Superior de Educação, 4200-465 Porto, Portugal

2iiUniversidade do Porto, Instituto de Sociologia, 4200-465 Porto, Portugal


Especialista reconhecido em assuntos relacionados com marginalidade urbana e comportamentos desviantes, “periferias desqualificadas” e sentimento de insegurança, e autor de trabalhos incontornáveis para quem estuda o fenómeno droga no nosso país, Luís Fernandes confere expressão no seu mais recente livro ao interesse crescente que nos últimos anos tem dedicado aos tópicos da corporalidade e das relações corpo-mente.

Trata-se, de acordo com este psicólogo, docente e investigador da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto, de uma “descoberta tardia”, a da importância do estudo do corpo no “aprofundamento dos objetos de que trata a psicologia” (p. 9). Tardia para o próprio, que só mais recentemente se dedicou à objetivação e problematização deste seu interesse de pesquisa, e tardia para a psicologia mainstream, que desconsiderou durante décadas o estudo da dimensão corpórea na construção da pessoa e da sua “consciência” (p. 25). De resto, como em diversos momentos acentua a leitura deste livro, não é certo que a desatenção da psicologia (talvez devesse dizer-se: das ciências sociais e humanas) relativamente a este domínio de observação e análise tenha sido superada: apesar de ser um lugar-comum notar-se que “corpo e mente estão ligados”, revela-se arreigado e, por isso, persistente, nas trocas quotidianas como nos corredores das universidades, o “dualismo cartesiano” que separa e hierarquiza as duas entidades, fazendo prevalecer a “crença elementar” segundo a qual “o corpo obedece mecanicamente ao comando da mente” (p. 10).

Em quatro “ensaios rápidos”, escritos em registo escorreito e despretensioso, Fernandes desenvolve a sua crítica ao dualismo cartesiano prevalecente e às visões mecanicistas e superficiais a que o estudo do corpo tem sido sujeito, procurando ressituar o corpo no campo psicológico, através da reafirmação do princípio da “unidade corpo-mente”.

Luís Fernandes e “Lopes Massagista” entram num gabinete de psicologia

Depois de uma Introdução que enquadra o problema e apresenta o propósito geral do livro - com o auxílio das imagens da “marquesa”, da “passerelle” e do “podium”, que representam, respetivamente, o poder da medicina, da sociedade da aparência e da competição interindividual na conformação de um “corpo-para-fora” que menoriza o “corpo concreto”, o “corpo vivido”, e que estabelecem um “corpo central” ou “modal”, normativo e valorizado, por oposição ao “corpo periférico”, secundarizado, patologizado ou invisibilizado -, Fernandes abre o conjunto de quatro ensaios que compõe este seu livro com um esforço de autoanálise, que é também uma crítica dirigida ao campo da psicologia, quanto às causas do seu interesse tardio pelo assunto: “Sou o meu corpo desde que me conheço, como demorei tanto a interrogar-me sobre ele?”, pergunta-se o autor (p. 31).

A tentativa de resposta a esta questão apoiar-se-á em elementos recuperados ora da experiência de Fernandes enquanto estudante de psicologia e futuro especialista na área, ora das memórias - inevitavelmente inscritas no corpo - do antigo praticante de atletismo e fundista amador, ora ainda da recém-adquirida prática enquanto massagista “encartado”. Será, aliás, o “Lopes Massagista”, alter ego de Luís Fernandes (que também se desdobra na persona literária conhecida como João Habitualmente), que há de sugerir ao psicólogo muitas das interrogações e das propostas analíticas que pontuam os três primeiros ensaios do livro. Com efeito, é o “Lopes Massagista” que, trabalhando sobre a marquesa, se surpreende com as múltiplas revelações de desconhecimento do “eu corporal”, ou então com as manifestações de um “corpo em fuga”, que caracterizam muitas das pessoas que procuram os seus serviços (pp. 157 e seguintes). Consequência de um indesmentível predomínio da expressão oral sobre a expressão corporal, de um triunfo da “verborreia” sobre a experiência sensorial, este desconhecimento e esta “fuga” são também sintomas de uma anatomopolítica, denunciada aqui enquanto processo de enquadramento e normalização que torna o corpo disciplinado, contido, dócil e útil (“a contenção corporal é a técnica de normalização mais básica - e portanto a que primeiro se utiliza na educação de um novo ser”; p. 117).

Inspirada nos trabalhos de Michel Foucault, esta é uma reflexão que, a propósito da experiência de “Lopes Massagista”, Luís Fernandes explorará em diversas passagens dos três primeiros ensaios deste livro. No segundo desses ensaios - de todos, o texto que mais direta e sustentadamente se dirige ao campo da psicologia, e onde surge explicitada a noção, central na economia geral do argumento, de “corpomente” (correspondendo os “fenómenos corpomente”, ou “bodymind”, às manifestações do “funcionamento integrado” do “organismo global”, organização da matéria viva que os humanos são em que psíquico e orgânico nunca operam separadamente; pp. 99-100) -, a reflexão acerca da normalização, docilização e secundarização dos corpos expressa-se numa crítica da sua intelectualização, bem como do “verbocentrismo” e das terapias psi convencionais, invariavelmente assentes no resgate e interpretação de discursos e na logoterapia (pp. 123 e seguintes).

Trata-se de uma crítica que acompanha e prolonga um tópico tratado com mais detalhe no primeiro dos quatro ensaios, a saber, o que se refere à denúncia do reducionismo imposto ao estudo e tratamento do corpo pela afirmação das neurociências e da “medicalização de massas” aportada pelo desenvolvimento da psicofarmacologia: “a primeira restringe [o corpo] ao seu tecido nervoso, a segunda olha-o como a sede de avarias que poderão ser prevenidas e/ou reparadas quimicamente”. De acordo com Fernandes, é um “corpo diminuído” e um “corpo-objeto” aquilo que propõem estas duas abordagens (p. 51).

Uma interpelação (também) à sociologia

No quarto ensaio deste livro, a presença e a intervenção de “Lopes Massagista” dissipam-se, para dar lugar ao diálogo de Fernandes com João Habitualmente, seu alter ego literário. O texto afasta-se dos tópicos tratados nos ensaios anteriores e suscita uma reflexão de tipo diferente sobre escrita científica e escrita poética, e sobre os modos diferenciados como ciência e poesia olham e tratam o corpo. Todavia, ao explorar o caráter transgressivo da poesia, no seio da qual o corpo tantas vezes “fala” e se liberta das convenções e disciplinas que se lhe são impostas, Fernandes regressa a um dos temas centrais deste livro, o da constrição e normalização dos corpos. Ao fazê-lo, chamando à colação, em fim de percurso analítico, Pierre Bourdieu e as noções de incorporação e de habitus, (p. 228), o autor oferece a oportunidade de estender à sociologia a interpelação antes feita à ciência psicológica.

Com efeito, sendo este o livro de um psicólogo que explicitamente se dirige ao campo disciplinar em que está integrado, ele deve também ser encarado como um convite às demais ciências sociais e humanas para que retomem e renovem o estudo do corpo e da corporeidade. Como notava em 2013 Vítor Sérgio Ferreira, numa interessante resenha sobre o lugar do corpo na teoria e pesquisa sociológicas, este tem vindo a adquirir relevância na sociedade contemporânea e a constituir-se como “objeto analítico fértil nas ciências sociais, no âmbito de diferentes tradições disciplinares e teóricas” (Ferreira, 2013, p. 495). O mesmo texto não deixa, contudo, de apontar as insuficiências da investigação sociológica neste domínio (não raras vezes, simples enunciação retórica de uma relevância) e de sugerir pistas analíticas a prosseguir. Ora, o que o mais recente livro de Luís Fernandes oferece é exatamente um estímulo adicional à exploração - também sociológica - de tais pistas, como quando faz a denúncia de uma anatomopolítica instituída em ortopedia e ortopraxia sensual e moral, quando sugere (se não explícita, pelo menos implicitamente) a construção de uma crítica mais geral ao triunfo da biopolítica enquanto sistema incontestado de governo (tão evidente em tempos pandémicos e pós-pandémicos), ou quando suscita a indagação sobre os efeitos da medicalização (e, já agora, da psicologização) dos problemas sociais e das suas inscrições nos corpos.

Um convite, portanto, ao estudo sociológico do corpo e da corporeidade, dos processos de incorporação e dos corpos socializados, mas também das dinâmicas de “excorporação”, como chama Ferreira (2013, pp. e seguintes) às “práticas de exibição e ostentação social do corpo, materializadas em manifestações expressivas que decorrem de opções e decisões do sujeito”; mas um estudo que seja capaz de ir para além do simples resgate de discursos e da análise semiológica, que inevitavelmente reconduzem a abordagem aos vieses do dualismo cartesiano. Desafio, enfim, à concretização de uma “sociologia carnal”, de uma “etnografia em ação” (enactive ethnography), como a que propõe Loïc Wacquant (2004, 2005, 2015), ou experimentou entre nós Monteiro (2014, 2016), assente no difícil, porém seguramente revelador, exercício de juntar o corpo de quem investiga, aceitando o seu investimento, instrumentalização, transformação e eventual usura, aos corpos dos que são investigados.

Referências bibliográfica

Ferreira, V. S. (2013). Resgates sociológicos do corpo: Esboço de um percurso conceptual. Análise Social, XLVIII(208), 494-528. [ Links ]

Monteiro, B. (2014). Frágil como o mundo. Etnografia do quotidiano operário. Edições Afrontamento. [ Links ]

Monteiro, B. (2016). O trabalho em carne viva. Observação participante do trabalho operário. Mana, 22(1), 211-232. [ Links ]

Wacquant, L. (2004). Body & soul. Notebooks of an apprentice boxer. Oxford University Press. [ Links ]

Wacquant, L. (2005). Carnal connections: On embodiment, apprenticeship, and membership. Qualitative Sociology, 28(4), 445-474. [ Links ]

Wacquant, L. (2015). For a sociology of flesh and blood. Qualitative Sociology, 38(1), 1-11. [ Links ]

Recebido: 24 de Fevereiro de 2022; Aceito: 11 de Maio de 2022

João Queirós. Email: jqueiros@letras.up.pt

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