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Forum Sociológico

Print version ISSN 0872-8380On-line version ISSN 2182-7427

Forum Sociológico  no.41 Lisboa Dec. 2022  Epub Dec 30, 2022

https://doi.org/10.4000/sociologico.10846 

Dossiê "Pierre Bourdieu: Memória e actualidade" (Baptista, L., & Nunes, J. S. (Coords.) (2003). Forum Sociológico, (9/10).)

Comunicação apresentada na conferência Memória e Actualidade - Diálogos com a obra científica de Pierre Bourdieu1 (publicação secundária)2

Louis Pinto1 

1Centre National de la Recherche Scientifique, 75016 Paris, França. E-mail: louis.pinto@cnrs.fr


Na altura em que fui convidado a participar neste colóquio3, propus falar, porventura de forma um pouco temerária, da revolução simbólica de Pierre Bourdieu. O que é uma revolução simbólica? Atendendo a que não pretendemos conferir a esta expressão uma significação puramente enfática (qualquer coisa grande), uma revolução simbólica é, segundo os próprios termos de Bourdieu, uma transformação fundamental do espaço de possíveis. Ao abordar nos seus cursos no Collège de France a pintura de Manet e o que Manet havia representado, Pierre Bourdieu, muito distante dos comentários eruditos dos especialistas que insistem ad nausea em pôr a questão de saber se Manet conhecia e em que momento conheceu Vélasquez (as “influências”), mostrava que, para lá desses problemas que os especialistas teimam em pôr, permanece a questão de saber qual era, no fundo, o espaço de possíveis. Para o indivíduo Manet, o que se lhe propunha e impunha era o sistema académico da pintura, o conhecimento de uma certa tradição de pintura europeia e francesa, e em seguida a crise que estalou nesse sistema muito fechado. Com efeito, na França do século XIX, havia um corpo homogéneo formado pelos pintores académicos, e todavia tal corpo não se pôde perpetuar indefinidamente. O momento em que Manet se tornou possível correspondeu justamente à circunstância em que as contradições internas que afectavam esse corpo foram acentuadas pelo fenómeno de excesso (superprodução) de pintores, sujeitos que não encontrando lugar no sistema da época foram compelidos a oferecer as suas obras fora desse sistema.

O que, segundo Pierre Bourdieu, trouxe (e representou) uma revolução simbólica a este espaço foi a transformação da própria definição da prática ou da própria definição do olhar que se lança na prática em questão, sobre o que é isso de fazer pintura, sobre os objectos de pintura. Basta contemplar as pinturas expostas nos salões oficiais da época, que tinham a chancela oficial das autoridades, para compreender tudo aquilo que Manet tornou impossível, impensável, ridículo, ultrapassado; para, inversamente, compreender que ele tornou possível coisas que antes eram inconcebíveis (o ar livre, o esboço, a representação da vida urbana, etc.). Mas Manet não tinha o “projecto” de fazer qualquer coisa de novo, nem tampouco procurava desenvolver um programa com conteúdos explicitamente articulados. O que fez, fê-lo radicando-se na sua competência de pintor, a qual, por princípio, está inscrita no corpo, na mão, no olhar; soma singular de saberes-fazer profissionais e experiências que, a dado passo, não mais se pode contentar, sem mágoa, com os modelos dominantes.

Se agora hesito, se me sinto algo embaraçado para continuar a falar da revolução simbólica de Pierre Bourdieu, isso deve-se ao facto de, nesta ocasião (Conferência), muitas coisas terem já sido ditas e, como intervenho no final, estar numa posição um pouco incómoda. Sendo assim, contentar-me-ei com algumas abordagens laterais para vos poupar uma exposição académica sobre a sua obra (na sua intervenção Christophe Charle com toda a propriedade chamou a atenção para que devemos desconfiar bastante das apresentações fechadas, definitivas, acabadas). Bourdieu merece mais e melhor: era um sociólogo rigoroso e aberto, ambicioso e modesto, não um herói de acordo com o padrão francês. Aliás, ele está longe de ser um profeta no seu país (tanto quanto posso testemu- nhar, hoje dificilmente é concebível que um colóquio como este possa ocorrer numa Universidade francesa ou, pelo menos, em um departamento de sociologia).

Pierre Bourdieu não é um profeta entre os sociólogos mas também não é no seio de outras especialidades. Nem todos os historiadores lhe são hostis. Bourdieu mantinha boas relações não apenas com Christophe Charle, que foi seu aluno, mas também com George Duby, Roger Chartier, Robert Darnton, Eric Hobsbawm, Daniel Roche, Carl Schorske e outros. O caso dos etnólogos é interessante. Bourdieu apoiava-se muito no seu trabalho de etnólogo, nas pesquisas que publicou nomeadamente sobre a Argélia e a Cabília. Porém, para seu grande drama (evidentemente exagero), era pouco considerado e comentado pelos etnólogos em França, que promoveram um autêntico bloqueio em relação a este aspecto da sua obra. Tanto mais incompreensível quanto Pierre Bourdieu desenvolveu trabalhos tão importantes como L’ Esquisse d’une théorie de la pratique, livro francamente original, em que uma nova teoria da acção era delineada a partir de estudos concretos que justamente focavam as estruturas simbólicas do mundo cabílio. Por contraste, os etnólogos anglo-saxónicos tinham-no e têm em elevada estima. Não só foi, por eles, muito referenciado e comentado, como recebeu, deles, várias distinções.

É importante ver efectivamente o que era um sociólogo a trabalhar, trabalho que não se pode reduzir a um certo número de teses (conjecturas teóricas): o conceito de habitus não tem de todo o estatuto dum conceito como o «Eu penso» em Descartes ou em Kant. Ele reenvia para um certo conjunto de problemas precisos, e tem uma flexibilidade e elasticidade que, precisamente, o torna compatível com a pesquisa empírica, com o trabalho terreno. Tomando por exemplo do habitus, creio que se pode continuar a praticar (trabalhar com) este conceito até ao dia em que se lhe apure um limite maior. Quando isso suceder, então sim poder-se-á passar a outra coisa, propor uma alternativa conceptual. Entretanto, enquanto isso não acontece, podemos introduzir ajustes de pormenor, ajustes que todos nós realizamos no nosso trabalho (eu próprio incluído entre os discípulos de Bourdieu), acentuando este ou aquele aspecto (a sua génese, as suas contradições internas, a sua relação com determinadas propriedades objectivas, etc.); e depois há aquelas pretensas correcções proclamadas por alguns no plano da teoria, alguns que, na falta de terem protagonizado pesquisa empírica convincente, fazem um pequeno nome através duma fictícia descoberta de problemas insuspeitos na produção conceptual de Bourdieu (por exemplo, o facto de o habitus não ser simples mas complexo...).

Assim, para ver o que é o trabalho de sociólogo, é também necessário ver o que é o trabalho concreto sobre questionários, a delimitação de uma população, as palavras e os problemas “préconstruídos”. O Bourdieu do qual conservo memória é sobretudo o dos seminários que ele animava, em que abordava os trabalhos de outros investigadores com enorme paciência e escrúpulo, numa palavra: com seriedade a toda a prova. Bourdieu ouvia-os e discutia sem nunca procurar tomar posição sobre conceitos enquanto tais; tratava-se muito mais de sessões de trabalho em que ele, ao mesmo tempo que exibia uma sensibilidade empírica e um sentido do pormenor (o trabalho de sociólogo joga-se justamente no pormenor), sugeria comparações e favorecia o trabalho de generalização. Daí, no fundo, a dificuldade em transmitir Bourdieu: é uma aposta, uma persistência, algo muito complicado uma vez que se trata de transmitir um “métier”, um saber-fazer, uma postura; dito de outra maneira, seria necessário em simultâneo perguntar “que teria dito Bourdieu em tal momento ou circunstância?»; «como teria reagido?”; etc., questões que remetem não para proposições, mas para posturas mentais. Bourdieu introduziu uma forma de levar deveras a sério o trabalho intelectual que nada tem a ver com a retórica “teoricista”.

Um outro aspecto muito importante é a escrita. É frequente ouvir perguntar, a propósito da filosofia alemã, em que medida se pode traduzir Heidegger. O próprio Heidegger argumentava que não podia ser traduzido, visto que “pensar” é pensar... em alemão. Bem entendido, essa não era de todo uma convicção partilhada por Bourdieu. Para ele, a sociologia como prática racional é fundamentalmente transmissível em todas as línguas. Isso não obstava a que estivesse particularmente atento ao trabalho do sociólogo em todos os domínios, incluindo o aspecto decisivo da escrita. De facto, inúmeras vezes lhe ouvi considerações em que insistia na importância de exprimir a actividade sociológica duma certa maneira, porque a sociologia não é uma ciência como a física e, como tal, a experiência dos agentes deve ser descrita, restituída, evocada de um certo modo. Sendo certo que tanto aquele que escreve como aquele que lê pertencem ao mundo social, é necessário não negligenciar a questão social da transmissão, para evitar eventuais mal-entendidos; mas é também indispensável que o modo como a sociologia é expressa, faça sentir um certo número de coisas (o que é ser um desempregado, um cliente de um pequeno botequim de subúrbio, um militante desapontado do Partido socialista). Trata-se, no meu entendimento, de um aspecto que as numerosas homenagens a Bourdieu até agora realizadas não vincaram suficientemente. Creio que ele era igualmente um grande escritor, ao menos em alguns dos seus livros (mormente Les Méditations pascaliennes. É um livro muito conseguido do ponto de vista da língua; merece-me toda a admiração, não hesitando em considerá-lo uma grande obra também nesse plano).

Bourdieu esteve exposto a muitos equívocos. Manteve-se sempre afastado dos de- bates que ocupavam os nossos heróis filosóficos (em França, um herói é em regra filosófico), à margem portanto de Althusser, de Deleuze, de Derrida, etc., preferindo, ao invés, privilegiar o que podemos talvez alcunhar de filosofia em estado prático, uma filosofia que se desencobriu progressivamente. Excepto no seu último livro, Les Méditations pascaliennes, houve nele sempre uma espécie de pejo em relação ao domínio do discurso filosófico explícito. Se não o invadiu, se se manteve longo tempo à parte, isso deveu-se a uma espécie de cuidado ético em não se aventurar num registo que não era o seu. Ele só pôde finalmente escrever nesse registo quando se sentiu suficientemente seguro e confiante em relação àquilo que podia ter a transmitir, a fazer compreender. De que se tratava? Duma certa maneira de fazer teoria que não é compatível com deixar inalteradas as fronteiras entre ciências e filosofia; de, por outras palavras, afirmar uma concepção ambiciosa da sociologia anti-empirista, anti-positivista, através da qual o sociólogo se posiciona de pleno direito num terreno, o da teoria, historicamente monopolizado pelos filósofos.

A grande diferença entre a teorização à maneira de Bourdieu e a teoria dos filósofos de vanguarda em França é que a teoria de Bourdieu permanece sem-fim em estado prático, em diálogo com uma reflexão de pesquisa em que as questões fundamentais são sempre postas a propósito das pequenas coisas. Nada a ver pois com as “caixas de ferramentas” de Deleuze (“ferramentas” numa caixa filosófica que jamais serviram a alguém). O seu trabalho sobre a fotografia ou sobre os museus, pesquisas extremamente modestas, mas nas quais se põem questões teóricas relevantes, constitui a melhor e mais evidente ilustração da especificidade bourdiana: por exemplo, o que ocasiona que as classes populares sejam avessas à representação fotográfica de objectos julgados “feios” ou “indecorosos”; e, inversamente, por que razão as classes superiores tendem a aceitar/acolher a priori, sem rebate, as convenções em matéria fotográfica que tornam admissível, quase não importa o tema, o valor estético da sua representação? Para tratar esta questão da representação de objectos “feios” Bourdieu mobilizou a Crítica da Faculdade de Julgar de Kant, mostrando que, nos objectos empíricos anódinos duma investigação sociológica, convergiam enjeux muito importantes, os quais necessitavam de restituição “teórica”. Note-se que Kant foi aí invocado não para ser comentado e debatido, antes para ser instrumentalizado (no melhor sentido do termo). É isso que também é muito original em Bourdieu. Contrariamente ao que é vulgo (muito se repetiu que Bourdieu antipatizava com os filósofos, que os criticava, etc.), ele levava a sério os filósofos. O que sucede é que ele os mobilizava na circunstância adequada, para usos (fins) legítimos, ou seja usos conformes às intenções da prática científica.

Nesta altura, gostaria de introduzir de uma forma assaz didáctica o que me parece serem os contributos da revolução simbólica de Pierre Bourdieu. De uma maneira didáctica, não tenho pudor de anunciar cinco pontos.

Primeiro ponto. Direi que Bourdieu introduziu uma concepção crítica e reflexiva da sociologia e relembrarei que ele próprio afirmava que, para ele, esse era o aspecto mais importante. Reflexividade que se joga a três/quatro níveis. O primeiro nível corresponde a uma crítica das aparências: toda a ciência é crítica das aparências. É importante vincar este aspecto porque, actualmente, há todo um conjunto de correntes descritivas que apregoam que “não devemos praticar a crítica; devemo-nos ater a observar o mundo tal como ele é”. Isto constitui uma regressão em relação àquilo que Bourdieu fazia, quanto mais não seja porque toda a descrição está “impregnada de teoria” (como se diz entre os anglo-saxões). Fazer sociologia é, assim, encontrar obstáculos, nomeá-los, e ver as formas mais ou menos eruditas que esses obstáculos adquiriram/revestiram. É também, depois, uma crítica dos instrumentos de pensamento e, mutatis mutandis, das problemáticas eruditas. Por exemplo, todos os seus trabalhos de sociologia da educação evidentemente foram dirigidos contra uma teoria implícita ou explícita: a teoria do “dom”, do dom natural. Por último, a um nível bastante mais subtil, é ainda uma crítica do observador, ou, mais exactamente, uma crítica do ponto de vista do observador. É a questão de saber: “será que não desenho nos outros o meu ponto de vista, como efeito da minha trajectória, mas também, simplesmente, como consequência de encarar os outros como uma espécie de espectáculo sobre o qual devo tentar falar (espectáculo que podem ser práticas rituais, educativas, matrimoniais)?” Assim, quando analisamos o casamento, sobretudo quando se trata de uma sociedade primitiva, por definição não estamos nem um pouco envolvidos com o que se passa. Isso parece permitir e até incentivar que se apadrinhe a descrição ultra-distanciada, erudita; mas a adopção desta interdita perceber que, para os agentes, um tal ponto de vista não faz qualquer sentido. Eles simplesmente estão implicados no que lá vai. O que significa tomar o ponto de vista de um indígena? O que significa tomar o ponto de vista daquele para quem o que lá vai é a sua honra, ou até, quiçá, questões de vida ou de morte? Esta crítica reflexiva do ponto de vista do observador deu origem a todo um conjunto de pesquisas e obras (Le Sens pratique, Les Méditations pascaliennes), afluindo numa crítica dos intelectuais e da razão escolástica. É preciso rememorar que o universo intelectual é também um universo social. De resto, a dificuldade nem reside aqui. Com efeito, mesmo os mais ingénuos ou mais arrogantes intelectuais não ousarão dizer que o mundo intelectual é imune a todas as leis sociais; reconhecê-lo-ão ao nível geral dos princípios (ou quando tiverem contas a acertar). A dificuldade (resistência) põe-se outrossim quando se trata de responder à questão mais ou menos subtil: “para vós, geógrafos, historiadores, juristas, economistas, sociólogos, qual é a hierarquia dos objectos, dos métodos, dos autores, das instituições, das editoras...?” Aí sim, sentir-se-á distintamente a crispação de pessoas que se apressarão a esclarecer que as coisas não são assim, não se passam desse modo. A renitência a pensar certas coisas que devem continuar impensáveis, reflecte obstáculos intelectuais, os quais são socialmente explicáveis.

Segundo ponto, que deriva do precedente. A concepção da sociologia como actividade emancipadora. A sociologia é emancipadora ao nível individual e ao nível colectivo. Ao nível individual, é simplesmente a ideia de socio-análise. Neste capítulo, o exemplo, principal é o da socio-análise que o próprio Bourdieu realizou. Ele empreendeu-a, note-se, não por narcisismo, mas para responder a diversas exigências: não se exceptuar de um modo de análise que respeita aos agentes sociais em geral; testar a pertinência dos instrumentos de análise sobre ele próprio; compreender até que ponto e em que medida as suas tomadas de posição se devem a pulsões sociais; e, pela probidade do exemplo, incitar os outros (intelectuais e cientistas) a ir além de contar o género de histórias que os intelectuais tanto apreciam contar(-se), e, por essa via, contribuir para reforçar as exigências de lucidez colectiva.

Se, claro está, ele não disse tudo, ao menos forneceu princípios e esquemas de análise que podem ser contestados e contraditos, o que contrasta nitidamente com outros intelectuais franceses, como Jacques Derrida, que falam de si mesmos mas fazendo-o de maneira irrefutável, indiscutível, infalsificável. Bourdieu, enquanto sociólogo, põe os instrumentos às claras em cima da mesa e solicita às pessoas que trabalhem com esses instrumentos, como o habitus, o campo... Ele mesmo oferece-nos elementos e pistas: graças a pesquisa empírica será seguramente possível encontrar outros para realizar uma análise mais completa do que aquela que ele propôs.

O outro aspecto da emancipação é, evidentemente, a emancipação colectiva. Bourdieu inscrevia-se na linha da filosofia das Luzes, em que o conhecimento tem um valor de emancipação colectiva e, por essa própria razão, uma função política. Pensar, como Bourdieu pensava, que o saber não pode deixar o mundo social no estado em que o encontra, não significa que Bourdieu fosse um agitador político; apenas que ele levava suficientemente a sério o valor social do saber.

Terceiro ponto. Parece-me muito importante ressaltar o conjunto de novos instrumentos que a forma bourdiana de ver o mundo social nos deu: trata-se daquilo que ele designa de modo de pensar disposicional e modo de pensar relacional.

O modo de pensar disposicional, é, para abreviar, o habitus. Não me debruçarei sobre a noção entendida como produto da interiorização de estruturas objectivas e como “gramática geradora” de práticas conformes às estruturas objectivas. O problema aqui tratado é o da produção ou do modo de produção das regularidades objectivas. Como o campo, o habitus antes de mais responde a necessidades muito precisas, em particular a questão da unidade de análise: para compreender uma trajectória individual, qual a unidade de análise que devo adoptar? Para Bourdieu, a unidade de análise indicada é o conjunto das práticas de um agente: escolhas estéticas, intelectuais, indumentárias, os amigos e parceiros sexuais que elege, etc., na medida em que tais práticas se fundam em um mesmo princípio gerador. Trata-se de uma opção extremamente difícil de conservar, uma vez que é muito mais fácil recortar e diferenciar as pessoas em termos isolados das suas práticas alimentares ou indumentárias, do que tentar identificar e distinguir, como ele procurou fazer em La Distinction, o gosto burguês nos seus diferentes domínios. Ao menos em França, a sociologia do consumo ainda não integrou tais princípios, contentando-se em correr atrás das mudanças, para as quais se esforça, miseravelmente, por fornecer, depois de terem acontecido, explicações ad hoc, fazendo o périplo das variáveis (categoria sócio-profissional, idade, sexo, etc.).

A questão da unidade de análise está subjacente tanto à sua análise dos campos como à análise do espaço social. Esta análise, no meu entendimento, é extremamente original, mas mal comprendida em muitos países, nomeadamente nos países anglo-saxónicos, nos quais se produzem consideráveis pesquisas sociológicas mas reduzindo o contributo de Bourdieu à ideia simples - de algum bom senso de que não existe apenas o capital económico, que é preciso considerar igualmente os diplomas, o capital cultural. Ora, tal não é de todo o sentido do seu projecto, que é muito mais ambicioso, e que encerra bem mais do que uma recomendação para integrar os diplomas na análise das sociedades contemporâneas. Bourdieu acima de tudo contribuiu para tornar totalmente obsoletas e ultrapassadas questões como a da boa classificação da sociedade. Há toda uma literatura anglo-saxónica em matéria de classes sociais (J. Goldthorpe, E. O. Wright...) que está dominada, através daquela questão da boa classificação científica, por aquilo que chamo de realismo taxonómico, que impele à elaboração de critérios eruditos, “objectivos”, operacionalizáveis (favorecendo a classificação, o recenseamento, o trabalho estatístico) e a ver, por exemplo, como é que as transformações tecnológicas se repercutem (ou não) na emergência de uma nova classe dotada de consistência e de fronteiras claramente definidas. Daí resulta um certo tipo de problemática sobre o valor científico dos critérios, sobre o número de grupos, etc. (“a fronteira situa-se aqui e não ali”; “estes dois grupos formam um só...”). Com a sua noção de espaço social, Bourdieu tornou estas questões, que são centrais para os profissionais das classificações sociais, absolutamente desinteressantes. O espaço social é um conjunto de posições que se definem através de relações, relações de oposição entre agentes que lutam com propriedades que constituem armas (recursos). Estas armas em regra provêm do “capital económico” e do “capital cultural”, mas também, circunstancialmente, daquilo que Bourdieu designou de “capital político”, no caso das antigas sociedades socialistas. A ideia central é a de que a luta que ocorre pela reprodução ou subversão da estrutura de posições, luta que supõe recursos e enjeux específicos, é muito mais “realista” do que as teorias taxonómicas, e também possui um maior valor heurístico. Não se trata de uma teoria fechada ou dogmática sobre as diferentes espécies de capital: não é difícil imaginar outras formas de capital além das que usualmente são citadas/utilizadas. Os agentes lutam com o seu capital e lutam também em torno de classificações. Assim, a questão das classes sociais não pode ser considerada a priori da questão das classificações. As classificações constituem também um enjeu de luta, um instrumento de luta, e é por isso que, para analisar e compreender os instrumentos intelectuais que as classificações em cada caso são, é necessário fazer a história de uma tradição nacional, e ver por que razão em França, em Portugal, na Alemanha, existem este e aquele grupos. A este propósito podemos invocar excelentes trabalhos de história, como o de Jürgen Kocka, que estudou os empregados na Alemanha do século XIX, categoria engendrada na base do modelo em simultâneo da corporacão e do servidor do Estado: como, ainda, o de Luc Boltanski, que fez algo semelhante/equivalente para os “quadros”, categoria que apenas existe em França e em Portugal. Para nós, sociológicos, não se deve pôr a questão, por exemplo, de determinar quem é “verdadeiramente” intelectual; ou se os quadros são “verdadeiramente” diferentes dos empregados. Existem de facto fronteiras, mas tais fronteiras são produto de um trabalho, em parte político e ideológico, de construção, precisamente aquilo que os teóricos dos grupos sociais quase todo o tempo esquecem. A teoria do espaço social permite incluir no conhecimento das classes sociais o “efeito de teoria”, a contribuição de agentes dotados de uma forma específica de autoridade para a construção da realidade que os sociólogos se esforçam por descrever. É preciso não esquecer nem negligenciar que os instrumentos de pensamento através dos quais enunciamos, afirmamos, declaramos que existem classes sociais constituem um enjeu tanto para os observadores como para os próprios agentes.

Por outro lado, há que salientar que estes grupos nem sempre se afrontam directamente, como acontece nos casos de dominação pessoal. Muitas vezes enfrentam-se no tabuleiro da mediação do poder que têm/exercem sobre os lugares (espaços, campos) de formação e de reprodução do valor social e das diferentes espécies de capital: o sistema escolar é um desses lugares. O Estado é a instância última em matéria de formação do valor; dir-se-á que é o banco central donde provém todo o crédito.

A visão do mundo social de Bourdieu era, pois, uma visão muitíssimo original, visão que pode ser percebida através de uma imagem que bastante me impressionou, a do mobile4 de Calder. As esculturas de Calder consistem em uma série de hastes que se combinam e sobre as quais se depositam pilhas de pequenas placas. O espaço social corresponde ao princípio unificador do mobile. É o conjunto dos grupos sociais e estes grupos sociais vão agir e pesar duma maneira diferente sobre as diferentes placas (o campo religioso, o campo universitário, o campo jurídico...) que se mexem com o ar, o vento; cada uma dessas placas, ainda que permaneça ligada ao eixo central, terá a sua vida própria, o seu próprio movimento. Nunca perdendo de vista a questão global do espaço social, podemo-nos concentrar no estudo local dos diferentes campos, como, por exemplo, o campo dos historiadores (ou o sub-campo dos medievalistas...) ou o campo dos sociólogos (ou o sub-campo dos sociólogos da cultura...).

Quarto ponto. Uma antropologia coerente. Trata-se de aspecto que não pôde ser abordado na sessão de hoje. O ser humano de que nos fala Bourdieu é um ser imerso no mundo social, definido até ao seu âmago no e pelo mundo social; é um ser profundamente político, isto é aberto ao mundo social. A clivagem (o fosso) entre o pessoal e o político tem de ser superada. O ser humano é também um ser de paixão, e não a espécie de autómato que o habitus putativamente erigiria. Também neste capítulo, as representações construídas acerca do habitus atraiçoaram a sua inspiração. Muitos conferiram-lhe um (redutor) carácter mecânico, mas o que interessava Bourdieu (e que procurou explorar através do conceito de habitus) não eram apenas os dispositivos cognitivos implicados no ajustamento ao mundo social exterior, mas também todo o conjunto de paixões, pulsões, ou simplesmente gostos pelo jogo (social). Ao ser-no-mundo de que fala Heidegger, Bourdieu contrapõe o ser-no-jogo. Mas este jogo deve-se entender no plural. Com efeito, não se trata de um “grande jogo”, visto que há vários jogos em que participamos (no espaço profissional, no espaço doméstico, …), jogos para os quais, jogando melhor ou pior, em qualquer caso somos chamados, mobilizados, nos quais queremos e esperamos obter reconhecimento. “Reconhecimento” é um termo muito importante em Bourdieu; e, também aí, os filósofos poderão descobrir/mostrar uma filiação filosófica - a filiação hegeliana - do conceito de reconhecimento. Através deste termo aponta-se ao facto de que dispomos de crédito, de capital, justamente pelos outros. Todavia, não se trata simplesmente de uma relação interindividual; trata-se, isso sim, duma lógica complexa que é a lógica de pertença a um campo social. O facto de se ser conhecido, de receber diplomas, medalhas, prémios, aprovações, sorrisos, olhares, etc., gera, no destinatário, a crença na sua própria identidade como identidade digna de existir e, dessa forma, cria as condições para o desejo de perseverar no seu ser social. Claro está, isso não elimina a possibilidade de crises. É preciso não deslembrar que a sociologia durkheimiana abordou o tema existencial sumamente dramático do suicídio (os sociólogos, incluindo Bourdieu, não têm uma visão necessariamente idílica/feliz do ser no mundo social). Por conseguinte, podemos perfeitamente imaginar que este jogo, o jogo social, seja mal jogado, infeliz, etc., nomeadamente porque há contradições no habitus, ou desfasamentos entre o habitus e o espaço de possíveis. Com a antropologia de Bourdieu estamos longe das antropologias utilitaristas (o agente “racional”), as quais presentemente constituem a principal alternativa intelectual e política à visão do homem social que Bourdieu propôs. Ao escrever Les méditations pascaliennes, Bourdieu não tinha o objectivo de escrever simplesmente um livro de filosofia; era, no fundo, uma forma militante de prosseguir em filosofia um combate intelectual que conhecia outros terrenos e lugares. Não era diferente, nem na matriz nem nos desígnios, o homem que, em 1995, enquanto escrevia aquele livro de aparência inactual, se envolveu numa série de lutas contra o neoliberalismo.

Quinto ponto (e concluirei aqui). O que ele chamava “corporatismo do universal”. É a condensação da conta elevada em que tinha o intelectual, não dissociável da concepção autocrítica de que antes falei. Não se trata de todo de celebrar uma capacidade profética extraordinária, ou os direitos exorbitantes do intelectual. A tarefa do intelectual inclui sempre uma severidade e uma exigência acrescida para ele próprio: a “reflexividade”, que torna mais difícil ceder a complacências, encantamentos e mitologias. A autonomia do campo intelectual e dos seus membros não é uma questão local, “corporatista”; é uma questão cívica, de alcance universal, na medida em que é no campo intelectual que há alguma hipótese de que, contra os poderes que agem no mundo social, possa ser adquirido um conhecimento deste mundo e, em consequência, alcançada uma maior liberdade.

Referências bibliográficas

Pinto, L. (2003). Comunicação apresentada na conferência memória e actualidade - Diálogos com a obra científica de Pierre Bourdieu. Forum Sociológico, (9/10), 65-74. [ Links ]

Notas

1 Tradução de João Sedas Nunes. Chame-se a especial atenção para que a epígrafe deste texto relembra apenas o contexto em que este foi produzido. Com efeito, o autor entendeu, por razões compreensíveis (vide nota nº 1, mas também os esclarecimentos que o autor presta sobretudo nos primeiros parágrafos do texto), não dar título à sua comunicação.

2 Este texto é uma publicação secundária completa do trabalho primeiramente publicado em Forum Sociológico (Pinto, L. (2003). Comunicação apresentada na conferência memória e actualidade - Diálogos com a obra científica de Pierre Bourdieu. Forum Sociológico, (9/10), 65-74).

3 Nesta versão escrita, o autor conservou o estilo oral da comunicação, com as vantagens e inconvenientes que tal opção comporta (N.T. suplementar: a tradução procurou não reverter esta opção; tentou pois assegurar que a passagem ao português não funcionasse como momentum de transposição a um código de matriz escrita. As excepções a este plano ficaram a dever-se a razões de compreensão do argumento do autor, que uma tradução rigidamente fiel ao princípio da coloquialidade correria o risco de comprometer).

4N.T.: poder-se-á traduzir mobile por móbil. Na verdade mobile foi a expressão com que Marcel Duchamp, um dos mais influentes artistas do século XX, baptizou as revolucionárias, embora regra geral de pequenas dimensões, esculturas quinéticas do artista americano Alexander Calder, que, nos anos 30 do século passado, desafiaram a concepção vigente (clássica) do objecto escultórico, fazendo que também ele entrasse na contemporaneidade estética. Subvertendo o paradigma do objecto escultórico, as esculturas de Calder adquirem formas contingentes, através do impulso de um toque ou mais frequentemente da exposição à força do vento. Mobile, portanto, na síntese de Duchamp, no duplo sentido de movimento e motivo, duplo significado que o termo português móbil também acomoda.

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