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Forum Sociológico

versão impressa ISSN 0872-8380versão On-line ISSN 2182-7427

Forum Sociológico  no.41 Lisboa dez. 2022  Epub 30-Dez-2022

https://doi.org/10.4000/sociologico.10853 

Dossiê "Pierre Bourdieu: Memória e actualidade" (Baptista, L., & Nunes, J. S. (Coords.) (2003). Forum Sociológico, (9/10).)

Reflexividade reformista e auto-análise (publicação secundária)1

José Madureira Pinto1 
http://orcid.org/0000-0001-7740-6349

1Universidade do Porto, Faculdade de Economia, Instituto de Sociologia, 4150-564 Porto, Portugal. E-mail: jmp@fep.up.pt


1

Não tenho escondido, em encontros em que se aborda e homenageia a obra de Pierre Bourdieu, a enorme dívida de gratidão que ela me suscita.

E também gosto de dizer, nessas alturas, que a leitura de Le Métier de Sociologue e, depois, do Esquisse d’une théorie de la pratique constituíram, na minha vida (e, neste caso, nem distingo entre vida pessoal e profissional), ponto de bifurcação absolutamente decisivo.

Acontece que julgo só ter compreendido o essencial do Esquisse - obra particularmente difícil para o jovem economista em reconversão para a sociologia que então eu era durante uma releitura do livro em que me pude guiar por uma longa e muito bem urdida recensão crítica publicada na revista La Pensée. Era autor desse texto2 nada menos nada mais do que Louis Pinto, que hoje tenho o privilégio de acompanhar neste debate.

Estávamos no fim de 1974, Portugal reemergia, enfim, para a democracia - a bifurcação era, afinal, verdadeiramente, um nascimento.

Dito isto, comprender-se-á que a minha intervenção neste encontro não vá estar isenta de alguma emoção; não escondo, por outro lado, quanto gostaria que as minhas palavras pudessem contribuir, ainda que infinitesimalmente, para esclarecer o sentido e realçar o mérito de algumas propostas de Pierre Bourdieu, nem sempre, quanto a mim, bem compreendidas nem devidamente valorizadas.

2

O título que encontrei para a comunicação - que, para alguns, será um pouco inesperado ou mesmo deslocado relativamente ao núcleo central de preocupações teóricas de Pierre Bourdieu - procura, de facto, enfrentar, de uma forma condensada, várias críticas habitualmente dirigidas ao nosso autor e à sua obra.

O facto de os dois tópicos seleccionados - “reflexividade” e “auto-análise” - remeterem para o espaço de considerações habitualmente imputados à intervenção epistemológica não tem de nos afastar do referido núcleo. Na verdade, nem por convencionalmente se refugiar na “área protegida” da filosofia, deixa essa mesma intervenção de constituir prática social sociologicamente objectivável - testemos, então, a seu propósito, a fecundidade das interrogações e instrumentos analíticos cuja discussão aqui nos trouxe.

Uma das principais críticas dirigidas ao trabalho de Pierre Bourdieu centra-se, como se sabe, no carácter alegadamente determinista e estruturalista das suas posições teórico-epistemológicas.

Sempre achei que as proposições centrais da teoria da prática, pelo menos tal como nos surgem expostas e fundamentadas desde o já invocado Esquisse, constituem um veemente desmentido quanto a uma eventual aproximação, por parte da sociologia de P. Bourdieu, ao formalismo estruturalista.

Estou, no entanto, disposto a conceder que, em muitas pesquisas empíricas, o esforço de objectivação a que o nosso autor meteu ombros foi de tal forma intenso, sistemático e impenitente relativamente às interpretações espontâneas sobre o social (incluindo, em lugar de destaque, as ilusões do voluntarismo accionalista imerso em todos nós), que terá deixado na penumbra alguns ingredientes mais adequados a cumprir os requisitos da vertente praxeológica, essa mais claramente não-determinista, do modo de conhecimento que defendia.

Pois bem: ao incluir, no título desta comunicação, uma menção à ideia de “reflexividade reformista”, a qual obtém algum destaque em Saence de la science et réflexivité3 e me agrada, desde logo, pela crítica anti-escolástica que implicitamente comporta, a minha intenção foi tornar claro, que na obra de Bourdieu, a identificação e análise do sistema de determinações objectivas das práticas sociais, incluindo a prática científica, em geral, a prática sociológica, em particular, e a própria reflexão meta-científica, não são incompatíveis - bem pelo contrário - com a identificação e análise das condições da sua transformação.

Para o nosso autor, “cada acto científico é, como qualquer prática, o produto do encontro entre duas histórias, uma história incorporada sob forma de disposições e uma história objectivada na própria estrutura do campo e em objectos técnicos (instrumentos), escritos, etc.”4.

Nesta perspectiva, considera-se então que as estratégias dos actores em causa são orientadas pelos constrangimentos e oportunidades objectivas associadas à posição que ocupam no campo e pelas representações/avaliações que formaram quer acerca da sua posição, quer da dos concorrentes. A margem de liberdade ao seu alcance dependerá da estrutura e grau de concentração do capital científico, os quais, por sua vez, se organizam em torno da oposição fundamental entre dominantes, tendencialmente defensores da “ciência normal”, e “challengers”, que colocam os primeiros, ou melhor, o campo no seu conjunto, em estado de compulsão inovadora.

É que, sendo o campo científico um campo social como os outros, ele obedece, segundo P. Bourdieu, a uma lógica específica que o torna “um lugar histórico em que se produzem verdades transhistóricas”.

A primeira propriedade exemplar deste campo decorre do seu fechamento relativo e da circunstância de cada investigador ter como receptores privilegiados outros investigadores aptos a compreendê-lo, mas também a refutá-lo e desmenti-lo. A segunda propriedade diz respeito à aceitação tácita, entre os membros do campo, do princípio da arbitragem do “real” (“tal como pode ser produzido pelo equipamento teórico e experimental efectivarnente disponível num determinado momento”)5.

A forma mais “pura” do campo científico será, então, aquela em que a força das ideias depende essencialmente da conformidade das proposições e procedimentos científicos às regras de coerência lógica e de compatibilidade com os factos.

Sabe-se que, nos contextos históricos concretos, e, por maioria de razão, no campo das ciências sociais - que têm especiais dificuldades em garantir a sua autonomização como “cité savante” -, o campo científico contém urna dimensão política, podendo, ao limite, aproximar-se de lógicas em que a força das ideias depende essencialmente da força dos grupos que a reconhecem.

Em circunstâncias normais, porém, as relações de força e lutas entre agentes e instituições do campo são submetidos a princípios dialógicos e argumentativos que, interiorizados na e pela prática, acabam por dar origem a urna espécie de “reflexividade reformista espontânea” (se é que, nesta expressão, em que o segundo qualificativo é de minha responsabilidade, não há urna contradição nos termos) conduzida em nome de urna rectificação metódica do erro e da promoção de urna verdade provisoriamente selada pelo acordo intersubjectivo dos pares.

O papel de urna ciência da ciência, que terá na sociologia da ciência um instrumento privilegiado, será então o de racionalizar e de algum modo radicalizar esta reflexividade espontânea partilhada pelos cientistas. Papel tanto mais importante, quanto, como ironicamente observava Gaston Bachelard, as boas “filosofias diurnas” accionadas pelos cientistas correspondem frequentemente “filosofias nocturnas” assaz imperfeitas.

Como concretizar, então, a reflexividade reformista de 2° grau, baseada numa ciência da ciência sociologicamente informada?

Resposta: pensando e actuando não apenas ao nível dos objectos técnicos, procedimentos metodológicos, quadros teóricos acumulados - o que não se afasta do terreno convencional da intervenção epistemológica -, mas ainda e sobretudo sobre os outros elementos determinantes do “acto científico”, a saber: a estrutura do campo (ela própria produto histórico sui generis) e o sistema de disposições sociais e profissionais dos cientistas.

Podemos recolher na obra de P. Bourdieu um sem-número de reflexões e de sugestões de intervenção concreta deste tipo.

Assim, logo no Métier, fica claro que evitar hierarquizar tarefas científicas com base em hierarquias estatutárias é preferível a insistir em modalidades de divisão do trabalho científico que atribuam os encargos nobres da teorização aos detentores de poder no campo e as operações de observação (que, nas ciências sociais, se revestem de particular complexidade) a pessoal inexperiente e menos qualificado. Deste conjunto de considerações decorrem, como é óbvio, sugestões muito concretas quanto ao modo de organizar os processos de investigação e de balizar carreiras académico-científicas.

Ao sublinhar, com extraordinária abundância de argumentos, o carácter construído e a presença de arbitrários culturais implícitos nas nomenclaturas e classificações accionadas na prática social e nas rotinas administrativas, P. Bourdieu abriu caminho a um trabalho - que acabou por ser gigantesco - de crítica e reformulação dos indicadores sociais exigidos pela pesquisa empírica. Fazendo questão de não ceder ao purismo teoricista e escolástico, para se empenhar, bem pelo contrário, ao longo de toda a sua carreira, nas duras tarefas e desafios da demonstração empírica, foram muitos os incentivos que dirigiu no sentido de um diálogo acrescido com os produtores e utilizadores de informação padronizada. O trabalho de renovação do aparelho estatístico francês, nomeadamente em matéria de nomenclaturas sócio-profissionais, deve-lhe muito e constitui exemplo particularmente expressivo da margem de transformação da estrutura de oportunidades do campo científico (e por extensão do próprio campo político) ao alcance de uma epistemologia reformista.

Quando, por outro lado, no âmbito de uma reflexão sobre o campo académico­ científico, foi capaz de objectivar o espaço das posições universitárias e correspondentes espécies de homo academicus e de os pôr em relação com o espaço das tomadas de posição, nos planos intelectual e político, Bourdieu não se limitou a contribuir, como poucos, para a análise sociológica do universo empírico em causa - acabou, sim, por explicitar múltiplos condicionalismos institucionais que, a coberto de consagrações puramente nominativas, da manutenção de fronteiras disciplinares caducas, da defesa de interesses eminentemente corporativos, constituem obstáculo óbvio aos deveres gerais de promoção do conhecimento e de maximização da utilidade social da sua difusão.

E poderia prosseguir, se dispusesse de mais tempo, neste enunciado de contribuições para uma reforma progressista do campo científico presentes na obra de Pierre Bourdieu.

3

Depois de ter procurado mostrar que a noção de “reflexividade reformista” remete para uma concepção sociológica claramente demarcada do determinismo estruturalista, é chegada a altura de, a propósito da “auto-análise”, segundo elemento do título desta comunicação, tentar rebater o argumento segundo o qual as propostas teóricas de P. Bourdieu são refractárias ou mesmo incompatíveis com a análise de singularidades, nomeadamente as que configurarão o carácter complexo e único - tão complexo e único quanto o será sempre uma impressão digital - do actor/indivíduo.

Julgo que o convívio regular e descomplexado com a obra de Pierre Bourdieu deveria ser suficiente para contrariar o essencial da crítica a que agora me refiro.

Com efeito, são abundantíssimas, aí, as análises em que, graças a um assumido ecletismo metodológico, a identificação de regularidades sociais objectivas engrena harmonicamente com o enunciado compreensivo das minúcias irrepetíveis do real. E isto em domínios tão diversos como os estilos de vida e as práticas culturais profanas, o mundo literário e artístico, a acção pedagógica, a mudança em colectividades camponesas da França ou do Norte de África, o medo e o silêncio de grupos sociais excluídos, as subtilezas sempre renovadas dos actos de fala, o mercado de casas individuais, as condições de possibilidade da emoção estética, o enamoramento ou a subordinação social das mulheres.

Por outro lado, só os mais desatentos não notarão que, em várias ocasiões, Bourdieu faz questão de mobilizar todo o seu arsenal teórico e técnico-metodológico com a finalidade de, justamente, objectivar sociologicamente presenças singulares no campo das relações sociais - indivíduos, afinal.

Não deixa de surpreender, aliás, que, sendo frequente celebrar - com toda a justiça - um Norbert Elias ou um George Duby, pelo facto de terem metido ombros à tarefa de entender sociologicamente a emergência de um génio musical (por definição, único) como Mozart ou a carreira excepcional do Cavaleiro Guillaume, tal como é contada num poema medieval, passe tão despercebido todo o alcance das subtilezas analíticas (a um tempo explicativas e compreensivas, para invocar a dicotomia clássica) de Pierre Bourdieu, quando se ocupa da obra de um Flaubert, um Manet, um Heidegger ou quando se interroga, num esforço admirável para garantir “condições de felicidade” (no sentido da pragmática linguística) na interacção discursiva própria da entrevista sociológica, sobre as determinantes sociais do interesse expressivo e do acesso aos instrumentos de reflexividade entre as vítimas (atomizadas) da “miséria do mundo”.

Temo sinceramente que, subjacente a esta desatenção, exista um grande equívoco epistemológico: o de pressupor, a partir da confusão elementar entre o estatuto de indivíduo enquanto “variável independente” e o de indivíduo enquanto “variável dependente”, que a crítica ao individualismo metodológico, que P. Bourdieu assumiu com excepcional pertinácia, conduz em linha recta à inibição de analisar sociologicamente singularidades individuais.

Para Bourdieu, a análise destas últimas (o indivíduo como “variável dependente”) é uma ambição inteiramente legítima e ao alcance de uma ciência dos factos sociais. O que ele tem dificuldade em admitir é que, para chegar a explicações, ela procure apoiar­ se, explícita ou implicitamente, em alegadas qualidades essenciais imputadas a um ser individual (indivíduo como “variável independente”).

Nesta perspectiva, não surpreende então que a “auto-análise” de que nos fala a propósito de reflexividade científica, diga respeito, sem ambiguidade, aos sujeitos concretos da pesquisa, embora se afaste com clareza dos princípios de uma “epistemologia dogmática e individualista”.

Se as ciências, em geral, e as ciências sociais, em particular, são práticas submetidas incontornavelmente a determinações sociais específicas (as quais, como vimos, as compelem, aliás, em determinadas circunstâncias, à objectividade), a análise sociológica do ponto de vista e do modus operandi das ciências é condição necessária do avanço científico - convém que seja, pois, incorporada, em lugar central, no habitus profissional dos cientistas, incluindo, por maioria de razão, os sociólogos.

Nada melhor, para mostrar até que ponto a auto-análise do cientista individual pode, com evidentes ganhos epistemológicos, ser conduzida numa perspectiva não-individualista do que recorrer às páginas que P. Bourdieu dedica ao tema no já citado Science de la science et réflexivité, livro publicado pouco antes da sua morte.

O que, a certa altura, aí nos propõe é um impressionante esboço de análise socio­ lógica sobre o indivíduo-sociólogo com o singular nome de Pierre Bourdieu, que, como qualquer outro indivíduo, não deixa de ser um corpo socializado em trânsito num espaço diferenciado de interesses e relações de força socialmente regulados.

Não vou poder pormenorizar os elementos de objectivação que, a seu propósito, o autor aqui nos oferece.

Bastará dizer que, como seria previsível, ele evoca as posições sucessivamente ocupadas no campo das ciências sociais em diferentes momentos da sua trajectória pessoal e profissional, desde uma fase de relativa exterioridade, justificada, em parte, pela formação filosófica inicial, até à da ascensão aos lugares mais exigentes em capital científico e mais rentáveis em capital simbólico.

É uma trajectória condicionada, na década de sessenta, pela concorrência, no espaço institucional da sociologia francesa, entre alguns pólos de produção, difusão e consagração científica (cursos, centros de pesquisa, revistas) estruturados por especialidades, a que acrescia o pólo da etnologia, centrado em Lévi-Strauss e na revista L’ Homme, que terá exercido grande atracção junto dos recém-chegados ao campo, entre os quais o próprio Pierre Bourdieu.

Neste contexto, a uma camada de sistematizadores da história e teoria sociológicas, bastante divorciada das exigências da investigação observacional, contrapunha-se uma massa de membros com origens escolares as mais diversas, no âmbito da qual se instalou a tendência para multiplicar pesquisas empíricas sem fundamentação teórica consistente e onde se revelava muito difícil estabelecer condições institucionais adequadas à criação de um universo sustentado de discussão racional, devidamente distanciado, além disso, de ocupações e preocupações políticas.

O habitus transportado por Bourdieu para o seio desta “disciplina pária” era, segundo o próprio, um habitus não modal, quer no campo filosófico, por força da sua trajectória social, quer no campo sociológico, dada a sua trajectória escolar. O facto de regressar da Argélia com uma experiência de etnólogo feita em ruptura com a experiência escolar terá aliás reforçado a sua propensão para recusar fechamentos institucionais e disciplinares estritos e para pensar o seu trabalho por referência ao campo global das ciências sociais e da filosofia.

Afinal, o que havia de específico na bagagem transportada por Pierre Bourdieu? Em primeiro lugar, o domínio de um conjunto de técnicas e métodos mais valorizados pela pesquisa etnológica do que propriamente pela sociologia - fotografia, observação directa, entrevista a informantes; depois, a abertura a problemas e modos de pensamento com a marca da reflexividade filosófica.

Na intersecção destes elementos, começa a formar-se um ambicioso programa de investigação apostado explicitamente no pluralismo metodológico. Trata-se, por um lado, de romper com as definições cientistas da disciplina então predominantes na área de influência da sociologia norte-americana (em particular as que haviam conduzido à sua fragmentação segundo especialidades e à dissociação entre teoria e pesquisa observacional); mas trata-se, por outro, de evitar cair na tentação de alguma ortodoxia teórica que, com a preocupação de demarcação face ao alegado positivismo intrínseco das técnicas de objectivação sociológica, frequentemente se refugiava no teoricismo, em geral, e no marxismo, em particular, recusando, além disso, aprofundar contribuições dos “clássicos” tão decisivas para a análise da especificidade dos fenómenos sociais como eram, seguramente, as de Max Weber.

Entretanto, a inserção de P. Bourdieu no espaço intelectual francês faz-se também por demarcação relativamente à filosofia ou, talvez, melhor à estratégia de desvalorização das ciências sociais empreendida por alguns dos seus sectores mais influentes. O movimento dos filósofos franceses que, nos anos setenta, acedem a posições de desta­ que no panorama intelectual caracteriza-se, segundo o nosso autor, por uma ambiguidade fundamental: compelidos, por um lado, a corresponder às expectativas de mudança que a contestação político-intelectual impunha ao campo universitário, os referidos filósofos ter-se-ão abrigado, por outro, numa “reacção conservadora” face à ascensão, real ou temida, das ciências sociais - e o resultado foi o de assumirem, radicalizando-a, “a crítica historicista da verdade (e das ciências)”, remetendo a ambição racionalista de descoberta e explicação empiricamente sustentada de regularidades reais para o reduto alegadamente “démodé e mesmo um pouco reaccionário” do campo intelectual.

O afastamento de P. Bourdieu relativamente ao movimento, que então emerge, de crítica dita pós-moderna da herança racionalista tentará não ser meramente reactivo, nem se deixar enredar pela inércia argumentativa de polémicas mais ou menos mediáticas. Para o nosso autor, submeter as práticas da ciência e o campo científico, no seu conjunto - afinal, objectos sociais como quaisquer outros - à análise sociológica, sem, nessa perspectiva, abdicar dos instrumentos de racionalização e objectivação sedimentados na tradição racionalista, surge-lhe como a melhor forma de recusar, no debate epistemológico das últimas décadas, uma lógica de mero ajuste de contas e de contribuir para uma “rectificação (permanente) do erro”, como diria Bachelard, fundada na análise sistemática e localizada dos usos práticos dos instrumentos da reflexividade científica.

Esta tomada de posição, “aparentemente morna e prudente”, contra o radicalismo relativista pós-moderno ficará a dever-se em boa parte, segundo o próprio Bourdieu, às disposições de um habitus que, como qualquer outro, começou a construir-se no espaço social da família de origem. Filho de um camponês do Béarn que, aos trinta anos, se tornou pequeno funcionário rural, Pierre Bourdieu irá experimentar, na escola primária, não obstante toda a proximidade mantida com os pares, a hostilidade (ainda que sob a forma branda de uma espécie de “barreira invisível”) que habitualmente se reserva aos trânsfugas. A passagem pelo colégio interno, se, por um lado, revela este último como “terrível escola de realismo social”, permite, por outro, o contacto com a sala de aula, um mundo entre parêntesis feito de descobertas intelectuais e de relações humanas em certo sentido encantadas. “Compreendi recentemente”, confessa Pierre Bourdieu, “que o meu profundo investimento na instituição escolar foi sem dúvida constituído nesta experiência dual e que a revolta profunda, que nunca me abandonou, contra a Escola tal qual é, vem sem dúvida da imensa decepção, inconsolável, que o desfasamento entre a face nocturna e detestável e a face diurna e supremamente respeitável da escola em mim produziu (o mesmo podendo dizer-se, por transposição, dos intelectuais)”6.

A coincidência contraditória, na trajectória de vida de Bourdieu, resultante de o acesso aos lugares da aristocracia escolar ter sido conseguido a partir de uma origem popular e de província, estará, segundo o próprio, na base da constituição de um “habitus clive”, conceito que alguns dos seus críticos mais recentes não renegariam. Dele não decorrerá apenas a já referida ambivalência na análise do sistema escolar e, por extensão, do campo intelectual e ·académico; tal clivagem explica também a propensão, bem manifestada em toda a sua obra, para seleccionar objectos de pesquisa “triviais”, na análise dos quais, porém, através de um esforço paciente e minucioso de recolha e tratamento de informação, se investem, com acentuada indiferença relativamente a fronteiras disciplinares e a hierarquias entre domínios de conhecimento, grandes ambições de problematização teórica. Só um habitus científico “clivé”, e em particular a disposição anti-intelectualista intelectualmente cultivada que o integra, terá permitido, por outro lado, sem cedência a populismos epistemológicos fáceis, consumar a análise desencantada do obstáculo escolástico que sempre ameaça o trabalho científico.

No termo da auto-análise, que, afinal, é um exercício desencantado de sócio-análise, o sujeito/objecto ficará mais armado do que antes para racionalizar, sem cinismos, as estratégias científicas que o condicionam - trata-se de tentar compreender o jogo e o que está em jogo no campo, dele retirando “ensinamentos’”, em vez de simplesmente suportar ou sofrer com as suas consequências.

Num dos excursos com que, em Science de la science et réflexivité, pontua o essencial da sua argumentação sobre estes temas, Pierre Bourdieu reconhece até que ponto foram injustas as críticas que, numa fase inicial da carreira, dirigiu à sociologia da ciência de Robert K. Merton. Procura entendê-las, genericamente, como efeito da condição de recém-chegado a um campo dominado pelo estruturo-funcionalismo. Mas não se coíbe de, mais especificamente, reconhecer até que ponto, nesse momento, terá sido atraiçoado, quer pelo desconhecimento (só posteriormente ultrapassado) sobre a trajectória social e científica e as condições de produção da obra de Robert Merton, quer por algum hipercriticismo com que os mais jovens e inexperientes membros de uma comunidade científica tendem a avaliar a contribuição científica dos consagrados. Perceber quais as disposições do habitus social e científico que estão na base das “vues” e “bévues” de um autor pode permitir aceder a “princípios ético-epistemológicos” adequados a “tirar partido, selectivamente, das suas contribuições e, mais geralmente, para submeter a um tratamento crítico, simultaneamente epistemológico e sociológico, os autores e as obras do passado e a sua própria relação com os autores e as obras do presente e do passado”7.

Para rematar esta breve digressão sobre “reflexividade reformista e auto-análise” segundo Pierre Bourdieu, vale a pena reter um último ponto, o qual remete já para as condições institucionais da prática científica. Se, de acordo com o autor, a sociologia da sociologia deve acompanhar em permanência a prática da sociologia, incentivando uma tomada de consciência auto-crítica, a verdade é que tal forma de reflexividade só adquire plena eficácia “quando se incarna em colectivos que a incorporaram, até ao ponto de a praticarem num modo reflexo”. Em comunidades de investigação organizados nestes termos, a censura colectiva tenderá a ser muito forte - trata-se, porém, de uma “censura libertadora”, semelhante à que, “num campo idealmente constituído”, “libertaria cada um dos participantes dos ‘vieses’ ligados à sua posição e às suas disposições”8.

Reflexividade reformista e auto-análise, dois pólos que se alimentam reciprocamente, não estão imunes à sedução de uma utopia - a da Razão libertadora. Em estado de sedução permanente, nem por isso abdicou Pierre Bourdieu de consumar, ao longo de toda a sua obra, quer como incansável “trabalhador da prova”, quer como cidadão empenhado na transformação político-institucional do campo científico, uma “Realpolitik” da Razão. Haverá forma mais autêntica e consequente de amar e consagrar, dessacralizando-o, o saber científico?

Referências bibliográficas

Pinto, J. M. (2003). Reflexividade reformista e auto-análise. Forum Sociológico, (9/10), 21-29. [ Links ]

Notas

1 Este texto é uma publicação secundária completa do trabalho primeiramente publicado em Forum Sociológico (Pinto, J. M. (2003). Reflexividade reformista e auto-análise. Forum Sociológico, (9/10), 21-29).

2 Pinto, L. (1974). Théorie de la pratique. La Pensle, (178).

3 Bourdieu, P. (2001). Science de la science et réflexivité - Cours du Collège de France, 2000-2001. Éditions Raisons d’Agir.

4Idem, ibidem, p. 72.

5Idem, ibidem, p. 137.

6Idem, ibidem, p. 214.

7Idem, ibidem, p. 32.

8Idem, ibidem, p. 220.

José Madureira Pinto. Professor Aposentado da Universidade do Porto, Faculdade de Economia & Investigador Integrado no Instituto de Sociologia, Portugal.

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