INTRODUÇÃO
Ao longo de muitos anos, os baldios tiveram um papel central nas comunidades rurais, garantindo área de pastagem e provisão de recursos essenciais à sobrevivência dos povos de montanha, como lenha, madeira e pedra para construção, mel, mato para a cama dos animais e para posterior fertilização dos solos e água, entre outros. A dependência das pessoas relativamente aos baldios, a par da escassez dos recursos face ao número de utilizadores, criou a necessidade de regular o acesso, forjando-se instituições que perduraram séculos, ainda que desafiadas em vários períodos da história. Esta estreita relação estabelecida entre os povos e o meio físico envolvente, no fundo dois sistemas coevolutivos, através de interacções constantes e recíprocas, criou aquilo que é hoje denominado na literatura de sistema socioecológico (SSE) (Herrero-Jáuregui et al., 2018; Ruiz-Ballesteros & Gálvez-García, 2014). Actualmente, a estratégia de conservação da componente ecológica de determinado SSE - os ecossistemas, a biodiversidade, etc. - passa necessariamente pela reintrodução de certas práticas que compunham a componente social - agricultura, pastoreio, uso do fogo, etc. - que, em interacção com a dimensão ecológica, esteve na origem da formação do SSE. Esta estratégia norteia muito do que é feito em Portugal e na Europa, em termos de conservação da natureza, uma vez que a paisagem, inclusivamente a protegida, se encontra profundamente humanizada. Efectivamente, o conceito de SSE resulta da necessidade de se assumir uma perspectiva pluridisciplinar, em particular na gestão das questões ambientais (Castilla, 2016; Herrero-Jáuregui et al., 2018).
Os baldios mantêm-se, actualmente, propriedade comunitária, tendo resistido como tal a diferentes regimes políticos e económicos e a diversas alterações ao quadro legislativo (Bica et al., 2018; Brouwer, 1995). De entre as intervenções mais recentes com consequências no tecido socioeconómico, particularmente na actividade agropecuária e nas dinâmicas socioterritoriais das zonas rurais do interior, refira-se a florestação dos baldios (1938-1968) e a adesão à UE, em 1986, que implicou a adopção da Política Agrícola Comum (PAC). O Plano de Povoamento Florestal, implementado durante o Estado Novo, que previa a arborização de 420 mil hectares de baldios, visou torná-los mais produtivos para a nação, integrando-os no Regime Florestal, e contrariar os efeitos do uso pelas comunidades que alegadamente estaria a contribuir para acentuar a erosão do solo. De acordo com Radich e Baptista (2005), entre 1939 e 1974 foram florestados 287 mil hectares (272 mil na execução do Plano), aumentando consideravelmente a área de floresta pública, a partir daí gerida pelos Serviços Florestais (Devy-Vareta, 2003). Após o fim da ditadura, os baldios foram devolvidos às comunidades, que podiam optar por partilhar a responsabilidade de gestão da floresta com o Estado, numa relação de cogestão, ou, em alternativa, assumir a sua autonomia. A cogestão pressupunha a entrega de uma parte considerável das receitas da floresta ao Estado; ainda assim a maior parte das comunidades, tendo pouca experiência na gestão florestal, optou pela partilha da gestão. Mais tarde, após a adesão à UE, a agricultura portuguesa ficou, no seio da PAC, sujeita a políticas pouco favoráveis. Com um sector primário maioritariamente apoiado em pequenas explorações, com baixa capacidade de adaptação tecnológica, verificou-se que uma minoria de grandes explorações, mais competitivas, foi beneficiada, sendo as restantes incentivadas a abandonar a produção e/ou a manter um nível de produção extensivo com fins de protecção e conservação da natureza e da paisagem. Como consequência, a agricultura perdeu importância no panorama económico do país e no território, diminuindo dramaticamente a superfície agrícola utilizada, com implicações nas dinâmicas estabelecidas durante séculos no seio das comunidades, e entre estas e o meio (Baptista, 2010). A acção conjunta destes acontecimentos levou à saída de uma grande parte da população rural para as zonas urbanas e para diferentes rotas de emigração. Como resultado, os baldios assumem hoje uma posição lateral naquilo que é a subsistência das populações. O uso destes espaços é cada vez mais o reflexo da vontade e de interesses alheios às comunidades (Lopes et al., 2013). Em paralelo, a quase inexistência de controlo social ou de sinais de presença visíveis nas vastas áreas de baldio torna comum a entrada e uso dos recursos por utilizadores externos, que por vezes desenvolvem actividades geradoras de receitas (por exemplo, agentes turísticos) sem que haja a iniciativa, voluntária ou sob coação, de integrar as instituições locais com direitos de propriedade, protegidos pela legislação e pela Constituição, na partilha desses benefícios (Luz, 2017). Este tipo de dinâmica tem como consequência a perda gradual da legitimidade da propriedade comunitária (Baptista, 2010), para o que acções que promovam o fortalecimento comunitário, de forma que amplie a autonomia e a governança democrática do território, podem ter um papel regenerador (ver, por exemplo, Hespanha, 2019, ou Mello et al., 2023).
De acordo com Vaccaro (2008), a criação de áreas protegidas (AP) está entre as iniciativas externas (neste caso, estatais) passíveis de beneficiarem de um tecido demográfico, social e institucional debilitado. Na prática, ao estabelecer normas de acesso e uso, as AP permitem a expansão da autoridade do Estado como única entidade legítima de gestão, assumindo um processo de reterritorialização de zonas periféricas. Este processo tem importantes consequências sociais e económicas que envolvem alterações profundas do sistema local de propriedade, restabelecendo direitos, legitimidades e jurisdições (Ferreira & Mello, 2016; Heidrich, 2009; Vallejo, 2009). Em Portugal, a distribuição das áreas protegidas confirma esta visão, encontrando-se, na sua maioria, em zonas rurais, despovoadas e institucionalmente vulneráveis (ICNF, 2023a). A classificação do Parque Natural da Peneda-Gerês (PNPG) acontece num período em que as comunidades se encontravam já desconectadas dos baldios e as instituições em desuso, fruto da evolução do sector agrícola, da emigração e das intervenções estatais nas serras. Na prática, os baldios incluídos no Parque Nacional tinham sido já fortemente intervencionados pelos Serviços Florestais, encontrando-se muitos deles englobados em Perímetros Florestais, formados por propriedade privada, pública e comunitária (então ainda não assumida como tal na legislação nacional), muitas vezes delineados sem atentar aos seus limites (Freire, 2004). Estes perímetros ainda vigoram actualmente e são muitas vezes priorizados na consideração formal destas áreas. Com a criação do PNPG, todas estas áreas e os seus recursos ficaram submetidos a um regime de uso e gestão que atendia aos objectivos de protecção e conservação, sobrepondo-se às instituições vigentes naquela área, da escala nacional e legal à escala local e comunitária.
Além do Parque, outras instituições articulam-se no território com objectivos de controlo do acesso e uso dos recursos e da paisagem1. Estas (re)classificações resultaram na densificação do tecido institucional vigente no território do PNPG, à qual a UE também não foi alheia, financiando determinadas actividades produtivas e intervenções agro-ambientais, que subtilmente vão definindo as prioridades para o território classificado (Penker, 2008). Estas condições criam uma conjuntura particular para os baldios do Parque. A agregação de diferentes níveis institucionais - como a parceria UE, Estado e organizações locais, neste caso com o objectivo primeiro de apoiar o desenvolvimento socioeconómico em zonas de fraco desenvolvimento - resulta muitas vezes numa situação em que o parceiro detentor de maior poder acaba por definir a agenda de desenvolvimento, neste caso a UE, através da PAC2 (Edwards & Steins, 1998; Haesbaert, 2007). Contudo, apesar dessa dimensão institucional que teoricamente domina o uso das paisagens, as comunidades ainda têm poder sobre o território, nem que seja porque é ao nível local que se negoceiam e põem em prática os direitos de propriedade (Penker, 2008). De facto, como lidar com a diversidade de usos e de instituições existentes em sistemas socioecológicos permanece um tema de discussão entre os autores que se debruçam sobre a gestão de recursos naturais. O ponto principal para superar as dificuldades de gestão que advêm dessa diversidade encontrar-se-á na capacidade de acção colectiva coordenada entre os vários grupos de interesse envolvidos (Gatzweiler, 2005; Poteete & Ostrom, 2002). Nesta situação, o Estado, ou outras entidades não governamentais, deverá ter um papel facilitador e de apoio (Gatzweiler, 2005; Meinzen-Dick & Knox, 1999).
Centrando-se na gestão de sistemas de recursos comuns3, Ostrom (1990) realça o papel do meio sociopolítico envolvente no sucesso ou insucesso das instituições criadas para os gerir. Baseada na influência desse e de outros conjuntos de factores, evidenciada num extenso estudo que recorreu a dados empíricos recolhidos em diversas partes do mundo, Ostrom propôs um conjunto de princípios de delineamento de instituições para a gestão de recursos comuns. Entre estes destaca-se a relevância do aval e reconhecimento dessas instituições pelas autoridades estatais, sem os quais correm o risco de não ter validade fora do contexto local, pondo eventualmente em causa a sua continuidade (Ostrom, 1990). Este tipo de raciocínio seria aplicado mais tarde ao estudo do funcionamento de SSE, sujeitos à influência de diversas entidades a diferentes escalas, tais como florestas, recursos aquíferos ou pescas, para o que criou um enquadramento com o objectivo de facilitar o desenho metodológico e de articular informação de origem e natureza diversa (Ostrom, 2009).
No PNPG, a influência do meio sociopolítico envolvente é particularmente evidente e acontece a vários níveis com efeitos sobre os restantes factores actuantes (e.g., características dos utilizadores, do sistema de gestão e da entidade gestora). Partindo da teoria da gestão dos comuns, este trabalho propõe uma análise da gestão dos baldios localizados no Parque Nacional da Peneda-Gerês, visando perceber de que maneira a gestão é afectada pelas várias entidades que ali actuam e pela densidade institucional que vigora no PNPG. Dada a complexidade do sistema baldio, recorre-se a uma abordagem pluridisciplinar e multinivelada, abordando a questão ao nível do território do parque e ao nível da aldeia. Em seguida descreve-se sucintamente o local de estudo e a metodologia utilizada.
MÉTODOS
Local de estudo
O Parque Nacional da Peneda-Gerês (PNPG) foi instituído através do Decreto-Lei nº 187/71 de 8 de Maio, um ano depois da entrada em vigor da Lei n.º 9/70, de 19 de Junho, que regula a criação de áreas protegidas no país, sendo a única área protegida a nível nacional que entra na categoria de Parque Nacional da União Internacional para a Conservação da Natureza. Localiza-se na região norte do país, nas regiões do Minho e de Trás-os-Montes, e faz fronteira em cerca de 67 km com a Comunidade Autónoma da Galiza, Espanha. Ocupa uma área de 69 592 hectares distribuída por três distritos - Braga, Vila Real e Viana do Castelo -, cinco concelhos - Melgaço, Terras do Bouro, Arcos de Valdevez, Ponte da Barca e Montalegre -, e 22 freguesias (ICNF, 2023b). Cerca de 7% da área do Parque corresponde a propriedade pública (5 275 hectares), 30% é propriedade privada (22 000 hectares) e a restante fatia, que constitui mais de 60% do território do Parque, é propriedade comunitária, sob a forma de montes baldios. Pode afirmar-se que o PNPG é uma instituição pública inscrita num território fundamentalmente composto por propriedade privada e predominantemente comunitária. Ao nível socioeconómico, verifica-se a predominância da actividade silvopastoril, desenvolvida em cerca de 68% da área do Parque, maioritariamente nos baldios. A área florestal, cerca de 22% da área total estabelecida maioritariamente em terreno comunitário, constitui uma fonte de receitas para as comunidades, ainda que partilhada com o Instituto de Conservação da Natureza e Florestas (ICNF). A área utilizada para agricultura é reduzida (10%) e a produção é maioritariamente direccionada para alimentação dos animais e para consumo das famílias. Nas últimas décadas, o turismo tem ganhado importância, passando o sector terciário a dominar a economia no território do PNPG (Instituto da Conservação da Natureza e da Biodiversidade (ICNB), 2010). Este aumento acompanha a igualmente crescente procura urbana por espaços sossegados e paisagens de alto valor natural. De acordo com o Instituto da Conservação da Natureza e da Biodiversidade (2010), o aumento do turismo expressa-se no número de visitantes e no alargamento das actividades e dos promotores de serviços turísticos. Esta dinâmica é sentida nos baldios - uma vez que é lá que os percursos se desenvolvem - e nas aldeias - onde os visitantes procuram a logística necessária (cafés, restaurantes, estadia, etc.). De acordo com os dados do Recenseamento Geral da População de 2001, a população do Parque rondava os 11 000 habitantes (ICNB, 2010).
Métodos
O trabalho de pesquisa foi efectuado em duas fases. A primeira decorreu entre os meses de Maio e Agosto de 2015. Ao longo desse período, foram efectuadas entrevistas semiestruturadas em cada uma das 30 unidades de baldio dirigidas aos elementos do órgão de gestão. Ao todo foram realizadas 30 entrevistas4. Com esta abordagem pretendeu-se caracterizar a situação do baldio no respeitante a: a) entidade gestora; b) sistema de recursos; c) meio político e institucional envolvente; d) utilizadores, de acordo com os princípios de desenho de instituições de gestão comum. Paralelamente, pretendeu-se caracterizar a gestão efectuada (e.g., tipo de actividades, rendimentos, actores envolvidos), procurando identificar a sua relação com as características do sistema de recursos. Complementarmente às entrevistas, recorreu-se a outro tipo de fontes de informação, de conversas informais à participação em reuniões de compartes (três). O contacto com outras entidades privilegiou também o uso da entrevista semiestruturada. Entrevistaram-se elementos do ICNF (3 entrevistas); de associações que trabalham com os baldios (2 entrevistas, Associação Atlântica e Secretariado dos Baldios de Trás-os-Montes e Alto-Douro), no sentido de contextualizar o papel destas organizações e de perceber a complexidade dos procedimentos que a gestão dos baldios implica. Igualmente contactou-se a direcção da BALADI (uma entrevista) e um ex-director do PNPG, procurando recorrer à experiência de ambos nos cargos que ocupa(ra)m para obter uma perspectiva alargada do lugar dos baldios à escala regional - do PNPG - e nacional. Dado o crescimento do turismo no território do PNPG, e em particular nos baldios, tornou-se relevante a integração da perspectiva dos seus agentes e gestores (6 entrevistas - ADERE Peneda-Gerês, Cabril Eco Rural, Ecoagri, Gerezmont, Oporto Adventure Tours e Green Park).
A segunda fase do trabalho de recolha desenvolveu-se entre Agosto e Outubro de 2015, na aldeia de Fafião, freguesia de Cabril, concelho de Montalegre. Durante esse período de permanência estabeleceram-se conversas informais com habitantes e visitantes da aldeia e efectuaram-se entrevistas semiestruturadas e livres com os habitantes. Ao todo, foram realizadas 14 entrevistas. Pretendeu-se aprofundar o papel do baldio na dinâmica da comunidade e a forma como a gestão é desenvolvida, acedendo ao seu percurso evolutivo por via dos matizes das relações entre os compartes, e entre os compartes e o baldio. Durante este período houve um envolvimento no quotidiano da aldeia que permitiu uma maior percepção do lugar do baldio na dinâmica da comunidade e da forma como o seu uso, gestão e acesso se encontram organizados. Essa proximidade decorreu da relação estabelecida com as pessoas e famílias, da participação em trabalhos agrícolas, nas festas da terra e em eventos socialmente importantes. Na análise dos dados, optou-se, em ambas as fases, pelo método manual, dado que o número de entrevistas não exigiu o recurso a ferramentas informáticas. Todas as entrevistas foram registadas em formato áudio, sempre que consentido. Quando não houve consentimento (em dois casos), recorreu-se a registo escrito.
RESULTADOS
Ao contrário dos tempos em que o baldio servia apenas as necessidades das comunidades locais cuja subsistência estava estreitamente ligada ao trabalho da terra, hoje um baldio, principalmente quando integrado na área protegida com maior nível de conservação do país, é o epicentro de vários interesses, articulados por diversas entidades, nacionais e internacionais. Em seguida apresentam-se os principais traços do que é hoje a gestão de um baldio localizado no PNPG, enquadrando essa gestão na estrutura institucional em que os baldios se encontram envolvidos e destacando alguns aspectos que revelaram ter maior influência sobre a capacidade de gestão local.
Actividades tradicionais e manutenção da paisagem
No território delimitado pelo PNPG, e apesar da perda de importância, o sector primário encontra-se ainda representado por alguma actividade agropastoril, facilitada pelos apoios da União Europeia. Este investimento inscreve-se numa lógica de manutenção da dinâmica e estética da paisagem e de produção de produtos de qualidade e implica que parte do trabalho de gestão do baldio passe pelo registo e actualização da situação dos produtores (número de cabeças, raça, etc.) para a realização de candidaturas, elaboradas por organizações que prestam serviços nesta área (e.g., Associação Atlântica). Na ausência de terra própria para pastoreio, que é o caso da generalidade dos produtores, as candidaturas são feitas recorrendo à área de baldio, tornando-se este um assunto comunitário. Portanto, o baldio representa um espaço de pastagem físico e institucional, possibilitando aos produtores sem terra a manutenção da actividade, ainda que esta seja essencialmente uma actividade privada, circunscrita a alguns compartes.
A par dos incentivos à produção, existem apoios que promovem directamente a manutenção da paisagem do baldio no actual contexto de (quase) abandono das actividades produtivas. As medidas agro-ambientais denominadas Intervenções Territoriais Integradas5 (ITI) foram introduzidas com o Programa de Desenvolvimento Rural 2007-2013 (PRODER), inicialmente pensadas para os proprietários, privados6 e comunitários, integrados no Parque Nacional. A medida abrangeu igualmente outras áreas protegidas a nível nacional, contudo nem todas tiveram a mesma adesão e sucesso na implementação. Na prática, as ITI promovem várias acções que contribuem para a manutenção da paisagem rural, como a limpeza mecânica das pastagens ou a manutenção e reabilitação de estruturas ligadas ao uso agropastoril de outros tempos, como as mariolas, os fojos dos lobos, as silhas dos ursos, os muros de pedra posta, entre outras. Estes apoios são dirigidos aos compartes, enquanto proprietários comunitários. A gestão e operacionalização destas medidas ocupa um papel central naquilo que é hoje a gestão dos baldios do Parque, tanto no que se refere ao tempo que lhes é dedicado, como ao valor do apoio.
De facto, a maior receita do baldio provém das ITI, valor que, caso as metas propostas tenham sido cumpridas, é entregue a fundo perdido e gerido exclusivamente pelas comunidades. Além do impacto na paisagem e na dinamização das comunidades, as ITI tiveram um impacto muito significativo no panorama institucional dos baldios. De acordo com o PRODER, seriam candidatos elegíveis às ITI os “baldios administrados por compartes ou pessoas colectivas de direito privado”7, restringindo o acesso dos baldios geridos pelas Juntas de Freguesia (JF). O resultado dessa opção foi o incentivo à organização dos compartes para a gestão dos seus territórios e o aumento do número de Conselhos Directivos (CD) no Parque. Desta forma, várias comunidades passaram a ter um papel activo nas decisões respeitantes ao baldio, dando-se um passo formal no sentido da reactivação, ou reprodução, das instituições locais.
No Programa de Desenvolvimento Rural para 2014-2020 (PDR), o Apoio Zonal (AZ) do PNPG continuou a apoiar a gestão do pastoreio nas áreas de baldio. Contudo, medidas nacionais inspiradas no novo regulamento da UE (1307/2013) para os pagamentos directos aos agricultores resultaram na aplicação de um coeficiente de redução da elegibilidade de 50% nas áreas de “prados e pastagens permanentes com predominância de vegetação arbustiva caracterizadas por práticas de pastoreio de carácter tradicional em zonas de baldio” (Portaria n.º 57/2015 de 27 de Fevereiro) e na exclusão total de áreas de floresta, zonas queimadas, rochas, água, etc. Estas medidas tiveram um impacto substancial na extensão da área elegível para pastagem em zonas de montanha, reduzindo-a drasticamente em muitos casos. De acordo com o presidente do CD de Fafião,
(…) está-se a tentar mudar isso, andamos aí na luta porque precisávamos mesmo desses hectares para fixar as pessoas aqui. (…). Depois de ser feita essa leitura (do território para avaliação da extensão das pastagens) aplicaram uma redução de 50% à área forrageira, só que no nosso caso foi muito mais que isso, no Parque alguns tiveram mais que 90% de corte da área forrageira.
Efectivamente, as alterações dificultam, por um lado, o acesso aos pagamentos directos dos produtores; e, por outro, diminuem o valor monetário e os benefícios locais (ecológicos e sociais) provenientes da implementação da medida ITI/AZ. Esta situação ilustra a forma como a acção local, sendo suportada, e de alguma forma determinada, por instituições externas, se encontra dependente dos desígnios do financiador.
Floresta
Nos baldios do PNPG a floresta é composta essencialmente por pinhal, grande parte herança do Plano de Povoamento Florestal. A venda de madeira representa hoje a principal fonte de rendimentos (além das ITI), estando, contudo, reduzida aos baldios com suficiente área florestal. Num total de 30 comunidades, apenas três estão em autogestão8. A este nível a percepção é a de que a cogestão se tem mostrado mais lesiva do que benéfica, sendo manifesta a vontade de assumir a autonomia da gestão como se verifica no seguinte discurso do presidente do CD de Sezelhe:
(…) só estamos a perder por estarmos em cogestão. (…) já disse a um engenheiro para me mandar os documentos (…) Assim que me der resposta isso é logo, porque assim estamos… faça conta que estamos a produzir e 40% vão para o Estado, praticamente sem (o Estado) produzir nada.
Contudo, o processo para a desvinculação do Estado tem sido dificultado pela burocracia associada e pelo que se exige aos compartes. Diz o presidente do CD do baldio de Sistelo: “(…) eu já tentei (passar para a autogestão) mas isso é muito complicado. Eles exigem muito dinheiro, querem fazer avaliações, querem receber (…).” Esta questão tem gerado alguma controvérsia e o diploma que pretendia regulamentar “a formalização da transferência para os compartes da administração do baldio em regime de associação e da compensação devida no termo daquela administração” (DL n.º 165/2015 de 17 de Agosto) acabou por ser revogado, cessando vigência em Fevereiro de 2016. Previa-se no documento o ressarcimento do Estado pelo investimento feito, tendo em conta as estruturas actualmente existentes no baldio e os povoamentos florestais plantados entre 1938 e 1968, o que se torna ainda mais contestável face à alegada desresponsabilização do ICNF na gestão do património florestal deixado pelo Estado nos baldios. Hoje o apoio do ICNF na cogestão passa unicamente pela selecção e marcação das árvores para abate e pela venda do material lenhoso, ainda assim criticada por alguns compartes: “(…) ainda temos de estar a pedir para eles virem ver as madeiras, para vir marcar, e para vender mal vendida, que vendem mal vendida, levam muito tempo a pagar (…)” (presidente do CD de Sistelo). Ainda assim, nos baldios com menos floresta verifica-se uma posição menos crítica da cogestão:
Eles (o ICNF) recebem e depois dão-nos a nossa parte… é 60%. São eles que cuidam, foram eles que tomaram a iniciativa de plantar, ou de cuidar (…) eles têm de ter a preocupação de gerir a questão da doença dos pinheiros, isso não tem lucro não é, isso só dá prejuízo (…) quem tiver muita floresta compensa-lhe estar em autogestão, agora nós se calhar até não temos muito prejuízo (…). (presidente do CD de Cela e Sirvozelo)
Poderá dizer-se que a ausência do ICNF é mais sentida nos baldios com maior área florestal, pelo custo de oportunidade que resulta da ausência de uma gestão mais assídua, e pelas questões relacionadas com a prevenção de incêndios. Portanto, enquanto se verifica uma desresponsabilização do Estado, prolonga-se uma relação inoperante que, entre outras coisas, limita a iniciativa local.
Turismo e lazer
Apesar da crescente dinâmica de visitação registada no PNPG e, logo, nos baldios, verifica-se que essa não traz qualquer benefício aos compartes, enquanto proprietários e gestores dos baldios, situação em parte justificada pela incapacidade/falta de vontade dos compartes de, perante esses utilizadores, reclamarem os direitos de propriedade. Assim, enquanto existem elementos das comunidades com pequenos negócios que tiram partido do acréscimo de visitantes, o baldio, ou a comunidade, não beneficia dessa tendência. Não obstante, verifica-se já em muitos baldios iniciativas de demarcação física dos direitos de propriedade (e.g., sinalização a informar quem são os utilizadores autorizados, veículos do CD identificados na pintura exterior, identificação de autoria de infra-estruturas de lazer, miradouros, etc.), assim como iniciativas de outra natureza, que têm contribuído para demarcar a natureza comunitária dos baldios e clarificar o papel dos compartes. Em Fafião, a parceria estabelecida entre duas instituições da aldeia - o CD e a Associação Vezeira - e uma empresa de turismo é demonstradora do que pode ser feito no campo da cooperação entre utilizadores, e também do que pode acontecer quando as instituições se sobrepõem e uma prevalece sobre a outra. A Oporto Adventure Tours, uma empresa de turismo sediada no Porto, desenvolve a sua actividade exclusivamente no baldio e aldeia de Fafião. Enquanto beneficia dos locais menos acessíveis e mais atractivos do baldio, e consegue também acesso privilegiado às dinâmicas e actividades da aldeia, a empresa colabora com o CD do baldio de Fafião na manutenção dos trilhos e noutras benfeitorias. Além disso, entrega ao CD uma quantia por grupo de visitantes.
O acordo estipulado, informalmente, entre as duas partes conseguiu garantir o funcionamento pacífico e o benefício de ambas as entidades. Contudo, existem outras instituições com jurisdição sobre aquele território que, não reconhecendo, ou ignorando, a legitimidade das instituições locais, põem em causa a sua validade. Autorizados pelo CD a aceder com o jeep à área do baldio e aí estacionar temporariamente, a equipa da Oporto foi multada pela equipa do Grupo de Intervenção de Protecção e Socorro da Guarda Nacional Republicana (GIPS - GNR) que actua no Parque, por se encontrar em local não autorizado a não residentes. Na prática, o exercício de uma outra camada institucional colocou em xeque a legitimidade do CD para decidir quem são os utilizadores legítimos da propriedade comunitária e para exercer a gestão do uso do baldio. Embora a prevalência do Plano de Ordenamento do Parque sobre as restantes instituições ali actuantes seja expectável num contexto de área protegida, esta não deixa de ser controversa, enquanto torna difusos os direitos práticos de propriedade. Esta indefinição pode levar em última instância à desmotivação dos compartes em defender os direitos de propriedade comunitária, e ao efectivo abuso, consciente ou inconsciente, desses direitos por entidades que tenham algum interesse no uso do território.
Ao mesmo tempo, a presença e actuação no baldio de instituições públicas (e.g., ICNF, autarquias locais e municipais) ao nível da gestão e exploração de actividades de turismo é patente de diferentes formas. A organização de eventos, pontuais ou regulares, é uma delas. Verifica-se que esse tipo de abordagem é assumido por tais entidades, mas também aceite sem questionar pela comunidade. Diz o ex-presidente do CD do baldio de Cabana Maior: “Oh, o turismo não nos traz propriamente…, não taxamos… a porta do parque taxa mas isso é tudo para o município. (…), nunca lhes foi exigido (contributo para o baldio)… ainda não lhes foi exigido.” A concepção, organização e dinamização das Portas do Parque são o exemplo mais concreto da acção do ICNF e das autarquias no que respeita à gestão do turismo no Parque. Estas estruturas foram concebidas para serem “pontos de entrada” no Parque Nacional, locais onde convergem os visitantes e onde a actividade turística é de alguma forma controlada. Embora em regra as portas estejam instaladas nos baldios das referidas comunidades, a sua exploração (e.g., venda de lembranças, mapas, acesso a actividades) é da responsabilidade da Câmara Municipal, do ICNF ou da Associação Regional de Desenvolvimento do Alto Lima, revertendo as receitas a favor destas entidades. Não se verifica a integração das comunidades nessa dinâmica, nem qualquer compensação pela apropriação do espaço - físico e simbólico. Além do espaço ocupado pela estrutura em si, existe um convite subjacente, dirigido a todos os visitantes, que envolve a visita daquilo que, fundamentalmente, são os baldios. Por outro lado, enquanto os visitantes são dali direccionados para trilhos que atravessam os montes baldios, as entidades não participam de forma directa na manutenção do património das comunidades locais. Em geral não se verificam acções de contestação dos compartes nem parece existir vontade de vir a actuar nesse sentido. Excepcionalmente, em Lindoso, os compartes organizaram-se para tirar partido da presença de uma Porta. Para isso, o CD aliou-se à actividade da Câmara Municipal, colaborando formalmente na manutenção dos percursos pedestres e recebendo um valor simbólico por cada visitante.
DISCUSSÃO
O tecido institucional que delimita e determina o uso do território do PNPG é constituído por diversas camadas, a que corresponde uma diversidade de perspectivas e expectativas que diferentes actores ali projectam. Enquanto umas instituições poderão concorrer para o mesmo objectivo, completando-se, outras inevitavelmente irão sobrepor-se. O problema surge quando a introdução de novas instituições desconsidera a existência das já existentes, criando uma espécie de hierarquia em que a actuação de uma invalida a vigência da outra.
Mais de dois terços da área do PNPG é território baldio, gerido pelas comunidades de compartes ou pelas JF, segundo instituições consuetudinárias, hoje juridicamente enformadas na legislação nacional, que consagra a sua posse e gestão comunitárias. Estas instituições remontam ao tempo em que a agricultura e a produção animal eram o centro das economias individuais das famílias, em que o baldio assumia um papel central. Com elas, pretendia-se gerir o uso de recursos escassos. Actualmente, num contexto de despovoamento e de transição dos usos, os direitos de propriedade comunitária são delimitados e geridos por um complexo de instituições e apropriados (ou ignorados) por uma diversidade de actores para atender a diferentes interesses, por vezes complementares, noutras concorrentes: dos agropecuários aos turísticos, passando pela reserva ambiental e da biodiversidade. Em seguida, com enquadramento na literatura sobre a gestão de recursos comuns, analisam-se os resultados relativos à influência das instituições sobre a gestão dos baldios do PNPG.
A gestão dos baldios à luz da teoria da gestão dos comuns
A abordagem aos baldios foi guiada pelo trabalho de Ostrom sobre as instituições de gestão de recursos comuns. De acordo com a autora, existem alguns factores que favorecem (ou desfavorecem) o bom funcionamento de um sistema de gestão de recursos comuns e que se relacionam com a definição dos limites do próprio sistema de recursos e do universo de utilizadores, com as características da entidade gestora, e com a forma como se posiciona o ambiente institucional envolvente. Nos baldios abrangidos pelo PNPG, os principais factores que vêm desafiando a manutenção das suas instituições estão relacionados com o ambiente sociopolítico que os envolve, designadamente com o posicionamento9 das instituições estatais face aos baldios e ao papel dos compartes. Na verdade, este posicionamento tem vindo a influenciar todos os quatro grupos de factores mencionados: 1) a delimitação do universo dos utilizadores: na forma como o próprio ICNF, os Serviços Florestais e as autarquias se têm posicionado como utilizadores do território das comunidades; 2) as características físicas e os limites do sistema de recursos: através da florestação em massa dos baldios e da forma como a demarcação dos limites físicos destes espaços tem sido descurada por aquela instituição; 3) a entidade gestora: ao assumir responsabilidades nos baldios em cogestão, nomeadamente de apoio técnico, não honrando esse papel, e ao dificultar a passagem para uma situação de gestão autónoma pelos compartes; e, por fim, 4) o ambiente sociopolítico envolvente. Neste último ponto, Ostrom sublinha a importância do reconhecimento formal das instituições locais pelo Estado, para que aquelas estejam legitimadas e credibilizadas nas suas acções. Este é um aspecto crítico na situação dos baldios. Se, por um lado, se encontram legitimados pela Constituição da República e pela legislação própria que os regula e defende a nível nacional, na prática, no PNPG verifica-se uma certa incúria na forma como são encarados os limites físicos e institucionais dos baldios. Ao mesmo tempo, situações como a alteração dos critérios de elegibilidade das áreas de pastagem implementada a nível nacional por instituições do Estado, por um lado, demonstram o desconhecimento das entidades do Estado sobre as dinâmicas dos locais afectados por aquelas medidas e, por outro, deixam vislumbrar o aparente posicionamento estatal perante as instituições consuetudinárias e os interesses locais, que se concretiza, entre outras coisas, em opções estratégicas de gestão do território alheias a essa realidade local.
Em seguida desenvolvem-se alguns factores que actuam sobre a gestão dos baldios, limitando a discussão àqueles que decorrem da acção do meio sociopolítico envolvente e da (inter)acção das suas instituições.
Efeitos do meio sociopolítico envolvente sobre a gestão dos baldios do PNPG
Nos baldios do PNPG, o uso por utilizadores não autorizados10 é diversificado e reveste-se de formas mais ou menos directas. Pudemos constatar exemplos variados de violação dos direitos de propriedade das comunidades do PNPG, tanto pelo ICNF como por outros actores. Ainda que não decisivos, estes são aspectos que desmotivam as comunidades e enfraquecem as instituições, vulnerabilizando-as face a qualquer acção que pretenda introduzir algum tipo de alteração.
Apesar de existir um número crescente de iniciativas que procuram clarificar e fortalecer o papel dos compartes, eventualmente motivadas pela dinâmica que as ITI imprimiram nas várias comunidades, alguns episódios têm demonstrado que ainda há um longo caminho a percorrer, já que, na prática e do ponto de vista institucional, a propriedade comunitária aparece em segundo plano em relação ao plano de ordenamento do Parque. Esta situação põe obstáculos ao desenvolvimento de parcerias entre os utilizadores do espaço e tem vindo a criar um fosso ainda maior entre o PNPG e os utilizadores do território. No fundo, o direito de exclusão ou inclusão de utilizadores, que assiste à comunidade de compartes relativamente ao seu baldio, é posto em causa pelas regras e pela actuação do Parque (por exemplo, caso da multa no baldio de Fafião). Nestas condições, pese o aparente rigor do controlo pelo Parque, o livre acesso aos baldios não está efectivamente acautelado, uma vez que não existe consenso entre as duas instituições sobre quem é e quem não é utilizador autorizado. Esta situação reflecte as consequências de um sistema institucional de gestão de recursos comuns baseado em normas que não têm o pleno reconhecimento e aval das autoridades estatais, e, reciprocamente, de estas procurarem impor às instituições locais normas concorrentes das suas. Como avisa Ostrom (1990), as primeiras correm o risco de não ter validade fora do contexto local, e as segundas o de não serem acatadas pelos actores nele presentes, o que poderá pôr em causa o seu sucesso e, logo, a sua continuidade.
Conquanto a maior fonte de disrupção institucional nos baldios esteja ligada à actuação do Estado, veio também do Estado o fortalecimento do tecido institucional quando, na conjuntura política após o 25 de Abril, fomentou a organização das comunidades e a (re)criação das instituições locais para a gestão dos baldios. Ao mesmo tempo, a propriedade comunitária foi consagrada na Constituição da República Portuguesa e ficou salvaguardada na legislação a posse, uso e gestão dos baldios pelas comunidades utilizadoras, de acordo com os usos e costumes, permitindo simultaneamente a manutenção da tutela estatal sobre a propriedade comunitária. Segundo Baptista (2010), no processo de devolução dos baldios, “a actuação dos Serviços Florestais (…) privilegiou a manutenção de uma tutela e não incentivou a autonomia dos povos na gestão e controle dos baldios” (p. 86). Hoje, é largamente aceite entre investigadores, compartes e mesmo técnicos de entidades que lidam directamente com a gestão dos baldios que a cogestão dos baldios é um modelo que não tem funcionado, sendo inclusivamente lesivo para a sua gestão. Radich e Baptista (2005) imputavam ao Estado, e particularmente aos Serviços Florestais, essas debilidades, considerando-as decorrentes da falta de meios, da baixa prioridade institucional conferida aos baldios e do ressentimento latente daqueles Serviços pela perda do poder que lhe fora conferido pela legislação de 1938. Confrontados com essa realidade e incentivados por diferentes entidades para o fazerem, os compartes começam a ponderar, e alguns mais do que isso, a exclusão do Estado da gestão dos baldios.
Vaccaro (2008) refere a relação de reforço mútuo que existe no tipo de territórios que estudamos entre a debilitação demográfica e agrícola, a indefinição de direitos de propriedade e a constituição de áreas protegidas pelo Estado, a qual patrimonializa a paisagem como bem colectivo nacional. Efectivamente, quando o PNPG foi instituído em 1971, os efeitos da emigração, das alterações tecnológicas da agricultura e da florestação faziam-se já sentir sobre as populações e, de modo inevitável, sobre as instituições locais, situação que terá facilitado a entrada e implementação de novos usos e novas instituições, nomeadamente a reconversão da paisagem agrária em áreas naturais protegidas. Haesbaert (2007, p. 20) chama a atenção para o efeito “desterritorial” que estas iniciativas (e.g., áreas protegidas) poderão ter ao nível social, ao criarem situações desiguais e de clara prevalência de umas instituições sobre as outras, daí resultando custos de transacção elevados, eventualmente minimizados pela cooperação entre os vários intervenientes (Poteete & Ostrom, 2002). No PNPG, essa situação é evidenciada no confronto entre os usos e costumes, que constituem no fundo as instituições locais, e o Plano de Ordenamento do Parque. A falta de concordância exige constantes negociações ou notificações, por vezes através de métodos de coerção. Por outro lado, como sugerem Edwards e Steins (1998), em situações de grande complexidade institucional, muitas vezes é o parceiro que detém maior poder que define a direcção da gestão. No caso, tanto o Plano de Ordenamento do PNPG como a UE, através da PAC e da sua estratégia de financiamento, têm vindo a definir o percurso de desenvolvimento daquele território. Ao mesmo tempo, a influência do ICNF é também legitimada pelos próprios compartes, ao manterem a colaboração com o Estado na gestão dos baldios, apesar de lesiva, e ao lidarem com a utilização do baldio pelas instituições do Estado - as autarquias, locais e municipais, o ICNF - como se se tratasse de uma fatalidade, tornando ainda mais difusos os direitos de propriedade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No contexto de rarefacção demográfica, das directivas da UE através da PAC e das mudanças de funções, interesses e usos do espaço rural, o trabalho de um Conselho Directivo (CD) de um baldio é necessariamente diferente do que seria há 40 anos, assim como serão as suas condições para o desenvolver. A iniciativa de organização das comunidades para acederem a subsídios a aplicar em benefício dos baldios, e logo das populações, ganha aqui sentido. E, ainda que numa primeira abordagem o resultado prático da sua aplicação não pareça muito relevante, já do ponto de vista institucional ganha importância. E é esta base institucional em que se apoiam as comunidades, e a capacidade de cooperação que mobiliza, que nos parece ser o ponto de partida para a preparação de um futuro independente de subsídios.
O trabalho aqui apresentado resulta de recolha de informação realizada entre 2014 e 2017. Contudo, o ano de 2017 foi rico em acontecimentos que afectaram directamente a realidade dos baldios. Por um lado, foi nesse ano que foi publicada a Lei dos Baldios em vigor, a Lei n.º 75/2017, e que foi revogado o polémico DL n.º 72/201411. Foi também nesse ano que ocorreram os fogos mais letais da história do país que espoletaram uma série de medidas tendo em vista a restruturação da floresta e da estratégia para a sua gestão, acelerando a denominada Reforma da Floresta. A dimensão e gravidade dos incêndios tornaram a floresta um tema diário na comunicação social e na agenda do Governo. Ao mesmo tempo, a consequente descredibilização das entidades do Estado responsáveis pela gestão da floresta criou um espaço para os gestores dos baldios se assumirem como uma parte importante da futura estratégia florestal. Ficaram criadas as condições para uma mudança de paradigma, não só ao nível da gestão da floresta, mas também ao nível das relações institucionais, nomeadamente no que respeita ao ICNF e aos proprietários florestais, privados ou comunitários. Neste contexto, em 2019, fruto da parceria entre o Governo e as federações de baldios (a BALADI e a Forestis), foi lançado um projecto-piloto com o principal objectivo de criar agrupamentos de baldios, incentivando o associativismo e tirando partido dos benefícios de uma gestão de escala, estratégia já há muito reclamada pelo movimento dos baldios. Incentivava-se desta forma também a cooperação interinstitucional, enquanto se reconhecia aos compartes capacidade de gestão e de colaboração. Existem agrupamentos de baldios com quatro anos de actividade. Entre estes está o Agrupamento de Baldios da Serra do Gerês, composto por sete comunidades que integraram a nossa amostra. Alguns dos princípios que fundamentam esta iniciativa, concebida e implementada num contexto de reforma “de urgência”, vão ao encontro de parte das nossas conclusões. Designadamente, a premência de uma abordagem que ponha o Estado numa posição de facilitador, retirando-o do papel interventivo que não tem conseguido cumprir; e que promova a cooperação entre as instituições actuantes no território do Parque e, como tal, nos baldios.
A pluridisciplinaridade neste estudo
Atendendo à complexidade do sistema baldio, resultado de uma estreita interacção secular entre as pessoas e o meio, é de fácil aceitação que a abordagem que se circunscreva à perspectiva de uma única disciplina terá resultados limitados e potencialmente desenquadrados da realidade. Quando o funcionamento desse sistema é continuamente dificultado ou redireccionado, de acordo com os desígnios de entidades a quem foi reconhecida, em alguma altura da história, legitimidade para decidir sobre as suas funções e sobre a forma de as operacionalizar, torna ainda mais relevante uma análise que preveja uma aproximação multinivelada e pluridisciplinar. Este estudo partiu desta premissa na forma como definiu a metodologia da investigação, procurando abranger diferentes escalas de observação que se complementassem e se enriquecessem mutuamente ao diversificar os actores envolvidos, a abrangência da amostra e o aprofundamento dos temas. Ao mesmo tempo, a natureza diversa das questões que compõem a realidade dos baldios tornou fundamental o recurso a diferentes campos de conhecimento para o enquadramento da investigação e para a compreensão dos dados, observados ou que nos foram dados a conhecer, ao longo da interacção com as comunidades. Assim, disciplinas como a sociologia, a antropologia e a geografia foram essenciais no estabelecimento da metodologia, enquanto a engenharia florestal ou mesmo a biologia, a história, o direito e a economia foram centrais no enquadramento da problemática, contribuindo para uma melhor compreensão das dinâmicas estabelecidas. A estas há que adicionar a dimensão política, constantemente presente, dos primórdios deste tipo de propriedade aos tempos actuais. Uma abordagem que negligenciasse a abrangência que a problemática implica, simplificando-a, teria efeitos potencialmente perversos. Por exemplo, a inércia de algumas comunidades no que se refere à gestão do baldio seria, numa abordagem superficial, facilmente justificada por um factor actuante: o despovoamento seria talvez o mais consensual, a falta de vontade das populações face à ausência de interesse económico nos recursos do baldio seria provavelmente outro. Contudo, essas são apenas duas das dimensões do problema que, como se viu, é mais complexo do que o que fica explicado por esses factores. Neste trabalho, dada a limitação de espaço, os resultados apresentados são os que derivam sobretudo da influência de instituições como o Estado ou a União Europeia sobre a capacidade de gestão pelas comunidades. Não obstante, factores como o espaço físico, os diferentes utilizadores dos baldios, autorizados e não autorizados, questões relacionadas com a dinâmica interna da comunidade que reflectem a sua história, o imaginário local, a cultura, as crenças e tradições, as emoções que sustentam ou que devastam relações, a história da interacção com outras comunidades, entre outros, são fundamentais para apreender a dimensão da problemática que envolve os baldios, e logo para pôr em perspectiva a eventual acção/inacção das comunidades. Poder-se-á dizer que os factores que determinam o resultado do funcionamento do sistema baldio são tantos quantos os elos existentes entre os diversos elementos do sistema socioecológico que é o baldio. Elos que são estabelecidos dentro das comunidades, entre as comunidades, e entre estas e o meio que as envolve, também este plural e diverso. Não é, portanto, um caminho simples o da pluridisciplinaridade, contudo o nível de conhecimento a que chegaram as ciências sociais e humanas tornou-as também mais “humildes”, sendo hoje clara e aceite a sua contribuição para a compreensão da já inquestionável dimensão ecológica do ser humano.