INTRODUÇÃO
No artigo “Unprepared for a Pandemic”, publicado na revista Foreign Affairs em 2007, Michael Osterholm (2007), epidemiologista norte-americano, alertava que uma crise de saúde pública estava no horizonte e que o mundo não estava preparado para enfrentá-la. Dois anos antes, ele já havia escrito o artigo “Preparing for the Next Pandemic”. Segundo este autor, a baixa letalidade das epidemias do vírus influenza do subtipo H1N1 (conhecido como “gripe suína”), no surto de 2009, e do vírus influenza subtipo H5N1 (conhecida como “gripe aviária”), no surto de 2003, teve como consequência a minimização da sua importância e da necessidade de manter a permanência de alerta máximo por um período mais prolongado de tempo. Este afrouxamento das medidas de antecipação e de preparação acabaria por ter um preço elevado, porque evitar a consideração de questões fundamentais - entre elas a produção de vacinas, especialmente em países em desenvolvimento, e a prospecção dos efeitos de uma pandemia na economia mundial - agravaria os efeitos devastadores de uma próxima pandemia.
Este autor é apenas um entre um grande número de especialistas em doenças infecciosas emergentes, especialmente as de origem zoonótica, que vem alertando há décadas sobre as possíveis epidemias à escala global a partir da transposição das fronteiras entre as espécies, ou seja, sobre as formas como certos microrganismos, que infectam animais selvagens ou domésticos, conseguem se adaptar à espécie humana, causando doenças e mortes (Grisotti et al., 2022). Além disso, já existia um esforço na difusão de informações sobre doenças de origem zoonótica em revistas científicas (como a Emerging Infectious Diseases, a Transboundary and Emerging Diseases e a Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical) e em plataformas online, a exemplo do Program for Monitoring Emerging Diseases (ProMED)1, lançado em 1994, considerado o maior sistema público de produção de relatórios globais em tempo real sobre surtos de doenças infecciosas emergentes e reemergentes que afetam humanos, animais e plantas.
Apesar de todos estes alertas, no final de 2019, emergiu a COVID-19 em humanos expostos à vida selvagem no mercado grossista de Huanan, o maior mercado da China central e onde são vendidas diferentes espécies de animais selvagens. Tratava-se de uma doença infecciosa de origem zoonótica - embora o papel dos animais na epidemiologia da doença ainda seja desconhecido (Decaro et al., 2020) -, para a qual não havia tratamento, vacina ou imunidade preexistente. À época, as decisões eram tomadas com base em protocolos em constante mudança devido à natureza dinâmica da disseminação do vírus e da infecção em diferentes grupos sociais. O conhecimento científico era limitado, especialmente sobre os portadores assintomáticos, a relação entre infecção e imunidade, e a precisão dos testes diagnósticos. Em face dessas incertezas, medidas como o distanciamento físico (erradamente designado de “social”) foram adotadas para desacelerar a propagação do vírus e reduzir a demanda por cuidados hospitalares intensivos (Grisotti, 2020).
A pandemia de COVID-19 reacendeu o debate sobre a crise da modernidade (Beck, 1992, 2006), que se caracteriza por eventos de riscos potencialmente severos para a humanidade, os animais e o ambiente, ameaçando a saúde pública, a segurança social e as economias. Este debate coloca novos desafios para a saúde global, especialmente no que diz respeito à vigilância de doenças de origem zoonótica.
Tais desafios incluem a complexidade dos fatores e agentes envolvidos na produção de conhecimento e nas ações sociais, as incertezas na definição dos problemas e na tomada de decisões (para os quais não existem soluções claras e cujas consequências são imprevisíveis), o reconhecimento dos limites e das responsabilidades das instituições tradicionais em meio a novas relações e ações transfronteiriças. Além disso, há a necessidade de redefinir os direitos sociais e de equilibrar os ideais de liberdade individual com os interesses da saúde pública.
Para ilustrar os desafios descritos acima, especialmente os dilemas do processo de produção do conhecimento e de tomada de decisão em saúde pública em contextos de incertezas, e, com base na abordagem One Health2, analisamos o caso de uma doença - a angiostrongiliase abdominal -, assim como os desafios encontrados nos sistemas de vigilância epidemiológica a partir de alguns aspectos emergentes do processo de controlo da tuberculose de origem bovina.
No caso da angiostrongilíase abdominal, analisamos as implicações que diferentes técnicas de diagnóstico têm na constituição da “realidade” desta doença em humanos e nos mecanismos que levam a considerá-la um problema de saúde pública, assim como a relação com os hospedeiros animais (intermediários e definitivos). Essa doença foi descrita na Costa Rica, por meio de estudos anatomopatológicos e, no sul do Brasil, a partir de estudos soroepidemiológicos. Foi realizada a análise da literatura produzida sobre esta doença3 e feito o acompanhamento, por meio de observação direta, da pesquisa soroepidemiológica realizada no sul brasileiro durante dois anos, juntamente com a aplicação de entrevistas à população envolvida (em torno de 50 famílias), assim como com a equipe de investigação (médica e agrícola). A pesquisa procurou compreender: por que, apesar de seu aparecimento em outras regiões do Brasil e do mundo, a doença não faz parte de um sistema de registro e notificação rotineiro dos serviços de vigilância epidemiológica no Brasil? Veremos como as mudanças na estrutura da percepção médica desta zoonose implicam, também, uma mudança nas abordagens que definem o status do “normal” e do “patológico”, bem como nos sistemas de vigilância e prevenção.
E, através da análise de documentos do Ministério da Agricultura e Pecuária do Brasil e dos resultados da tese de doutorado de Santos (2013), analisamos as configurações sociopolíticas do processo de rastreabilidade, controlo e notificação da tuberculose de origem bovina pelos serviços de vigilância em saúde animal e sua conexão (ou não) com a saúde humana.
DOENÇAS SEM FRONTEIRAS: ASPECTOS HISTÓRICOS, CIENTÍFICOS E SOCIOPOLÍTICOS DA VIGILÂNCIA E CONTROLO DE DOENÇAS
A vigilância dos riscos sanitários e epidemiológicos e o controlo das doenças de origem zoonótica fazem parte dos processos de governança em saúde global e da iniciativa One Health. Estes processos podem ser compreendidos desde um ponto de vista histórico, científico-médico e sociopolítico.
Do ponto de vista histórico, as ações de controlo e vigilância das doenças humanas e animais, que transcendem fronteiras locais e nacionais, têm uma longa história. A formação da Organização Mundial de Saúde (OMS), no século xx, marcou o início das respostas coletivas às ameaças à saúde global (McInnes & Lee, 2012). A frase “doenças sem fronteiras” (Garrett, 1996; King, 2004) há muito é reconhecida por historiadores e cientistas que trabalham na área de medicina tropical, evidenciando que eventos relacionados a doenças em uma região do mundo afetam a saúde em outras áreas (Grisotti, 2016). De acordo com Ávila-Pires (1998), a associação de parasitas com os seres humanos remonta à Antiguidade, mas a compreensão completa do parasitismo só foi alcançada no final do século xix.
A prática da quarentena na Europa do século xiv, precursora da moderna saúde pública (Fidler, 1996, 2004), já era comum em vários Estados, muito antes da compreensão científica da teoria microbiana e da noção de interdependência entre o mundo humano e não humano, que só foi possível no século xix com as descobertas de Pasteur e Koch (Grmek, 1980). Ao explorar o conceito de infecção e as medidas sociais adotadas para combater doenças contagiosas ao longo da história, da Antiguidade até a Idade Média, Grmek (1980) destaca a fundação da primeira quarentena em Dubrovnik, em 1377, como um marco importante na história da saúde pública.
O que pode ser considerado recente, pelo menos do ponto de vista teórico, é a compreensão dos níveis de complexidade e das redes de interdependência entre os sistemas sociais e naturais e entre as relações humanos e animais não humanos (Bergandi, 1995; Elias, 1999; Hochman, 1998; Latour & Woolgar, 1979). De fato, apenas do ponto de vista teórico, pois, na prática, a experiência com a pandemia de COVID-19 revelou que pouco aprendemos com a história social das epidemias. Apesar dos avanços científicos e tecnológicos, as medidas de biossegurança adotadas no início da pandemia basearam-se em práticas antigas, anteriores à teoria dos germes, como quarentenas, cordões sanitários nas fronteiras dos Estados-nações (assim chamados a partir do final do século xviii) e o uso de máscaras (Grisotti, 2020).
Do ponto de vista estritamente científico e médico, a bacteriologia representou um marco crucial com a descoberta da origem microbiana das doenças, a produção de soros e vacinas no final do século xix e o advento de sulfas e antibióticos no século xx, os quais ajudaram a controlar várias doenças infecciosas e parasitárias (Hardy, 1993; Markel, 2004; McNeill, 1976; Porter, 1997; Rosen, 1958; Rosenberg, 1992). No entanto, os microrganismos são altamente adaptáveis às condições ambientais e superam a capacidade científica de compreensão dos seus processos biológicos de mutação, recombinação e dispersão, dificultando a produção de novos medicamentos e vacinas, bem como o controlo da sua disseminação (Ochman et al., 2000). Ou, como advertem, mais recentemente, Osterholm e Olshaker (2022): “Human intelligence, scientific know-how, and technology try to outstrip the microbe’s capacity for rapid change. The human species produces a new generation on average about every 20 to 30 years; microbes produce a new generation in minutes to hours”.
Alguns pesquisadores têm-se dedicado aos aspectos sociotécnicos do fenômeno da resistência antimicrobiana, entre eles Kahn (2017), Chandler (2019), Frid-Nielsen et al. (2019) e Pelfrene et al. (2021). Os agentes antimicrobianos, incluindo antibióticos, antivirais, antifúngicos e antiparasitários, são medicamentos essenciais usados para prevenir e tratar infecções em humanos, animais e plantas. No entanto, preocupações sobre a resistência antimicrobiana têm sido levantadas desde a sua descoberta, uma vez que bactérias e outros agentes patogénicos podem evoluir para resistir a estes medicamentos ao longo do tempo. O surgimento de bactérias multirresistentes e pan-resistentes, conhecidas como “superbactérias”, torna as infecções mais difíceis de serem tratadas com medicamentos existentes, aumentando o risco de morte. Apesar da maior compreensão pública dos mecanismos de mutação por meio de experiências como a COVID-19, a resistência antimicrobiana permanece relativamente desconhecida como uma ameaça global à saúde humana. Enquadrando os antibióticos como uma infraestrutura moderna de saúde, Chandler (2019) analisa como diferentes atores, incluindo governos, organizações internacionais e a sociedade em geral, abordam o problema da resistência antimicrobiana, identificando desafios e oportunidades para a pesquisa e a ação futura.
Do ponto de vista sociológico, há uma grande diferença entre as causas e os processos das doenças. Outros fatores devem ser considerados, além do simples encontro de um microrganismo com o hospedeiro suscetível. Os clássicos trabalhos de Ackerknecht (1965, 1982) contribuíram para tornar os fatores sociais, econômicos, geográficos e de constituição como determinantes no processo de saúde e doença. Esta perspectiva foi ampliada a partir das pesquisas mais recentes desenvolvidas nas áreas da antropologia e sociologia da saúde e a partir da implementação de iniciativas globais como a Comissão sobre Determinantes Sociais da Saúde, em 2005, pela OMS. As pesquisas têm mostrado a influência tanto das condições sociais, econômicas e ambientais na emergência de doenças (Inhorn & Brown, 2004; Farmer, 1996; Krieger, 2019; Marmot, 2020; Solar & Irwin, 2010) quanto do impacto da percepção de risco, construída por indivíduos e grupos, nas mudanças de comportamento, necessárias como resposta aos surtos e epidemias (Beck, 1992, 2006; Giddens, 1990; Lupton, 2013; Rose, 2007; Slovic, 2000; Turner, 2008).
As mudanças de comportamento estão relacionadas com a forma como as pessoas demarcam as fronteiras entre o visível e o invisível, entre as pessoas assintomáticas e as pessoas doentes, assim como entre a liberdade individual e os regimes de saúde coletiva. Segurança e liberdade são conceitos clássicos desde a modernidade ao mundo contemporâneo, de Hobbes (2003) a Foucault (1997, 2004). A necessidade de criar dispositivos de biossegurança, mesmo que isto signifique sacrificar outros ideais que também valorizamos, envolveu a eficiência do Estado por meio do contrato social: indivíduos, movidos pelo medo, por uma total insegurança e por uma guerra de “todos contra todos”, estabelecem um contrato, trocando a sua liberdade individual pela segurança e pela liberdade natural que existia no Estado de natureza se torna liberdade civil (que é a base da concepção liberal de segurança).
A tensão entre as práticas de liberdade e as práticas de segurança é um dos dilemas do mundo contemporâneo, expresso em termos empíricos a partir das seguintes questões: Como lidar quando uma pessoa se recusa a realizar um tratamento, por exemplo para tuberculose, alegando o direito à liberdade individual de escolha em detrimento das consequências para a saúde pública? Como lidar quando um proprietário não permite a entrada na sua residência para inspeção de reservatórios de doenças, como no caso da dengue, ou recusa entregar o seu cachorro contaminado pela leishmaniose visceral para os serviços de vigilância epidemiológica realizarem a eutanásia?4
Esta tensão expressa a crise da modernidade mencionada por Beck (1992, 2006), caracterizada pela emergência de riscos e incertezas globais (resultados das próprias conquistas da modernidade) que desafiam as estruturas tradicionais de poder e de controlo social, exigindo novas formas de governança e participação social. Beck argumenta, ainda, que a modernidade trouxe uma série de riscos e incertezas que não podem mais ser controlados pelos métodos tradicionais de governança e de controlo social.
VIGILÂNCIA DE DOENÇAS TRANSMITIDAS ENTRE OS HUMANOS E OS ANIMAIS
Apesar de o conhecimento sobre parasitas e sua relação com os seres humanos remontar à Antiguidade clássica e ao século xviii, quando Jenner identificou a ligação entre a varíola bovina e a humana, a medicina permaneceu focada apenas nas doenças humanas. Mesmo com a difusão da prática empírica de variolização, a distância entre os humanos e outros animais persistiu. Foi somente no início do século xix que a semelhança entre estruturas e funções comuns às plantas e aos animais foi reconhecida, devido à visão privilegiada que os humanos tinham de sua própria espécie. Foram necessários séculos para que fosse aceite a origem comum e a relação dos humanos com outros organismos da natureza (Ávila-Pires, 2005).
O desmatamento e a antropização dos ambientes naturais comprometeram amplamente alguns nichos ecológicos (Cascio et al., 2011). O comércio e a rápida circulação de pessoas, animais, plantas, microrganismos e mercadorias estão impulsionando a disseminação de agentes patogênicos à escala mundial. Além disso, o consumo humano de animais silvestres, a expansão contínua das terras agrícolas em áreas selvagens, o contato com o gado, animais domésticos e silvestres, o boom mundial da produção, o tráfego de bovinos e as migrações forçadas (por questões ambientais, econômicas ou políticas) estão contribuindo para a emergência de doenças zoonóticas em várias regiões do mundo (Grisotti, 2016, 2020; Grisotti & Amorim, 2020) e para o fenômeno de transposição das barreiras entre as espécies (Quammen, 2012), na qual certos microrganismos que infectam animais selvagens ou domésticos conseguem se adaptar na espécie humana, causando doenças e mortes.
O relatório da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (Food and Agriculture Organization of the United Nations (FAO), 2013) - World Livestock 2013: Changing Disease Landscapes - alertava para o fato de cerca de 70% das novas doenças que infectaram os seres humanos nas últimas décadas terem tido origem animal, sendo cada vez mais comum a transposição das barreiras entre as espécies pelo crescimento das cadeias de agricultura e de abastecimento alimentar. A infecção de aves silvestres e domésticas, de mamíferos e alguns felinos pela gripe aviária do subtipo H5N1 vem acendendo um alerta para a humanidade. Além de causar mortes de animais, o vírus impacta a agricultura, o comércio de alimentos, e aumenta o risco do desenvolvimento de novas mutações, capazes de se espalharem entre pessoas. Esta é a conclusão do relatório recente feito pela OMS em conjunto com a FAO e a Organização Mundial de Saúde Animal (FAO, 2023).
Além dos esforços governamentais, surgiram nos últimos anos iniciativas como a One Health, constituída por pessoas da sociedade civil e organizações científicas e profissionais, especialmente da área médica, veterinária e ambiental, que incentivam estratégias globais para expandir as colaborações e as comunicações interdisciplinares em todos os aspectos de atenção à saúde entre humanos, animais e meio ambiente (Atlas & Maloy, 2014; Kahn, 2024; Talukder, 2018; Woodall, 2001). As ciências sociais também têm contribuído para este debate, na medida em que a multiplicidade de crises sanitárias causadas por zoonoses tem conduzido a uma reformulação das normas e políticas públicas de controlo da população animal. Na análise destas políticas percebe-se a falta de articulação entre as ciências médicas e a medicina veterinária, entre a investigação microbiológica (e clínica) e a epidemiologia, entre os setores da saúde, da agricultura e pecuária e do meio ambiente, que, de forma desarticulada, tendem a dificultar as ações de vigilância e de controlo das zoonoses (Grisotti, 2003; Meditsch, 2006; Santos, 2013) e as estratégias de comunicação pública do conhecimento científico (Organização Panamericana da Saúde (OPAS), 2003).
Embora os estudos sobre as doenças partilhadas entre humanos e animais sejam incipientes no campo das ciências sociais, é a partir dos conceitos de biossegurança e biopolítica, conectados aos estudos sobre riscos e as relações multiespécies, que encontramos pistas para uma agenda de pesquisas nesta área. As transformações sociotécnicas e políticas em matéria de gestão de doenças infecciosas emergentes (Collier et al., 2004), o sistema de rastreabilidade, triagem e pesquisa de população animal sentinela, que permitem lançar alertas em caso de emergência de novos patógenos (Keck, 2020), são exemplos de novas estratégias que precisam ser mais bem avaliadas do ponto de vista sociológico.
Por outro lado, o conceito de doenças infecciosas emergentes, tanto aquele defendido mediante uma abordagem pragmática pelo Centers for Disease Control and Prevention (Centro de Controlo e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos, CDC) mas especialmente o defendido pela abordagem histórico-epistemológica realizada por Grmek (1993, 1995), aponta para o caráter interdependente das interações humanos-animais-ambiente. Pelo fato de nem sempre podermos saber se uma doença é nova ou se é existente, mas não detectável, Grmek (1993) expandiu o conceito de doenças emergentes, apresentando quatro situações nas quais as doenças poderiam ser assim denominadas: i) ela existia antes de ser reconhecida pela ciência; ii) ela já existia, mas aumentou o seu grau de letalidade em função de mudanças qualitativas e quantitativas no seu ambiente (o caso da Legionella, uma bactéria simples mas letal quando concentrada em precários sistemas de refrigeração ou aquecimento); iii) ela foi introduzida numa região onde não existia anteriormente (o caso das diversas doenças ditas “tropicais”); e iv) ela emerge a partir da passagem de um reservatório não humano para um reservatório humano (o caso das inúmeras doenças zoonóticas). Como as ações em saúde pública global dependem do conhecimento sobre a incidência e prevalência de doenças, paralelamente às situações apontadas por Grmek, incluímos outra situação que consideramos crucial para determinar a emergência de uma doença: o papel da subnotificação das doenças de notificação obrigatória e a falência no reconhecimento e registro de doenças incomuns (Grisotti, 2016; Grisotti & Ávila-Pires, 2010).
Este aspecto tem sido um dos maiores limitadores do processo de vigilância e controlo das doenças, pois a qualidade dos dados de notificação locais é crucial para o sucesso da vigilância. Essas ações dependem da gestão eficiente dos sistemas de vigilância em saúde ao nível local, o que afeta as atividades globais de saúde. Apesar dos acordos internacionais sobre segurança global em saúde, a produção de dados locais é influenciada por fatores não apenas epidemiológicos. Este ponto foi reforçado no relatório recente da The Lancet Commission sobre lições a serem aprendidas da pandemia de COVID-19 (Sachs et al., 2022).
O VERME, A LESMA E O HUMANO: O CASO DA ANGIOSTRONGILÍASE ABDOMINAL
Em 2000, uma comunidade da região do estado de Santa Catarina/Brasil foi atingida por um grande número de lesmas da espécie Sarasinula linguaeformis. A princípio, foi considerada uma praga agrícola, pois devastou grande parte da produção da região, mas após alguns meses verificou-se que 86% dos caramujos coletados estavam contaminados com o nematódeo Angiostrongylus costaricensis. O possível contacto da população com as lesmas levou a uma investigação seroepidemiológica e à descoberta da infecção humana por uma zoonose denominada angiostrongilíase abdominal, uma doença parasitária grave para a qual não existe tratamento específico e que é frequentemente confundida com câncer ou apendicite (Graeff-Teixeira et al., 1991; Grisotti & Ávila-Pires, 2011).
A descoberta desta parasitose constituiu um pequeno acontecimento histórico que precisa ser reconstituído no seio de uma prática científica. Trata-se da história de uma pesquisa que encontra o seu objeto (um parasita e seus hospedeiros - algumas espécies de lesmas, ratos e, posteriormente, cachorros) e a doença que este representa (Grisotti & Ávila-Pires, 2011).
É uma doença na qual os sintomas são vagos e, na maior parte dos casos, só se tem o diagnóstico quando se “vê” (isola) o parasita, por meio de análises de biópsias ou a partir de sorologia, na qual se observa uma reação que indica a presença da infecção, mas não necessariamente da doença. Esse teste pode apresentar uma reação cruzada com outros parasitas, e o uso de anti-helmíntico pode provocar a migração do parasita para outros órgãos do corpo. As manifestações clínicas ocorrem numa região do organismo na qual os sintomas podem ser confundidos com os de outras doenças, especialmente apendicite e tumores. Trata-se de um parasita intestinal cujos ovos não são eliminados nas fezes do hospedeiro humano, que é acidental e, neste caso, diferente, portanto, de outras helmintíases como esquistossomose e oxiuriose. As pessoas podem ser infectadas por meio da ingestão de verduras contaminadas (alface, por exemplo) com o muco secretado pelas lesmas. Além disso, é uma doença considerada como subdiagnosticada, devido: 1) à ausência de diagnóstico sorológico específico e sensível; 2) à ausência de larvas nas fezes humanas; 3) ao não envio de peças cirúrgicas para estudo anatomopatológico mais detalhado, quando constatado não ser um caso de apendicite nem de tumor; 4) ao desconhecimento da doença entre o pessoal médico (Graeff-Teixeira et al., 1991).
A formação do conceito de angiostrongilíase abdominal supõe a articulação de quatro processos de investigação: 1) estudo clínico e anatomopatológico; 2) a identificação do parasita e de seu ciclo de vida, que prevê a identificação dos hospedeiros (definitivo e intermediário); 3) estudo epidemiológico; e 4) os métodos de diagnóstico disponíveis, como os exames anatomopatológicos (que isolam o parasita) e os testes sorológicos (que localizam uma reação no sangue, não necessariamente a doença) experimentados na população afetada. A descoberta da patologia, do parasita e de seus hospedeiros ocorreram quase que simultaneamente. Em 1967, na Costa Rica, Morera e Céspedes publicam um artigo sobre a descrição do quadro clínico de uma patologia diferente, no mesmo ano em que Morera identificou o parasita. Em 1970, o hospedeiro intermediário e o definitivo são identificados e, em 1971, o conjunto que abrange a etiologia, o ciclo biológico, a patologia e as características clínicas e anatomopatológicas são descritas em dois artigos publicados nesse mesmo ano.
Estas afirmações não surgiram nem facilmente nem ao acaso - nelas estão embutidos anos de pesquisa e reformulações. Para compreendermos o processo de construção médica e social dessa doença analisamos a maior parte da literatura produzida sobre ela, desde o ano da descrição da patologia e do ciclo do parasita até o ano de 2005. Neste artigo não serão discutidas as controvérsias científicas envolvidas no processo de constituição dessa doença, que já está descrito por Grisotti e Ávila-Pires (2010), nem analisados os impactos sociais e econômicos advindos de sua emergência na região, também já descritos por Grisotti e Ávila-Pires (2008), mas cabe ressaltar que as diferentes técnicas de diagnósticos da doença utilizadas no Brasil e na Costa Rica e a falta de interesse pelos serviços oficiais de vigilância epidemiológica (humana e animal), pela pesquisa e pelo monitoramento dos infectados, dos doentes e dos reservatórios animais provocaram uma diferença importante na caracterização da “realidade” da doença nos dois países. Na Costa Rica, os casos eram investigados através de estudos anatomopatológicos, ou seja, conseguia-se isolar o parasita em alguma peça cirúrgica; enquanto no Brasil os casos eram investigados através de estudos sorológicos, ou seja, detectava-se uma reação no sangue dos participantes, mas não a confirmação da existência do parasita. Isto quer dizer que o background científico e a área da ciência na qual a experiência de investigação é realizada podem determinar a diferença tanto no tipo de diagnóstico quanto nos resultados obtidos. De maneira similar, Mol e Hardon (2020), no artigo “What COVID-19 May Teach Us about Interdisciplinarity”, mostraram que diferentes disciplinas científicas operacionalizaram a COVID-19 de diferentes modos, propuseram intervenções divergentes e usaram parâmetros contrastantes de sucesso, gerando desafios a serem enfrentados pelos formuladores de políticas públicas ao lidar com as diferentes abordagens das diversas disciplinas científicas na resposta à COVID-19.
O estudo soroepidemiológico no sul do Brasil: da praga agrícola a um problema de saúde pública
A investigação agrícola e o estudo soroepidemiológico foram realizados na região próxima ao município de Chapecó, em Santa Catarina, Brasil. A área infestada pela espécie Sarasinula linguaeformis, um dos hospedeiros do nematódeo Angiostrongylus costaricensis, compreende a comunidade da Linha Cambucica, que pertence, em parte, ao município de Nova Itaberaba (67 famílias) e em parte ao município de Planalto Alegre (7 famílias), totalizando 74 famílias, na maior parte de origem italiana, vivendo em propriedades de aproximadamente 12 hectares (Grisotti & Ávila-Pires, 2008).
A região caracteriza-se pela agricultura de pequenas propriedades, com a utilização de mão de obra familiar e tração animal. As culturas típicas são o milho e feijão, e, com menor expressão, a soja. O restante é uma produção de subsistência, com a exceção de algumas famílias que produzem tabaco. Nesta região, existem aproximadamente quinze aviários de 100 metros de comprimento, que é um modelo padrão para as agroindústrias. Os aviários são construídos mediante investimento dos agricultores, que também são responsáveis pela manutenção das edificações, dos acessórios e pela compra de equipamentos exigidos pelas empresas. Esta forma de produção conjunta é chamada de “integração”. A mão de obra para tratar os frangos, limpar o aviário e até transportar os frangos para o armazenamento em frio é da responsabilidade dos produtores, bem como as despesas com aquecimento de pintos (gás ou lenha) e energia elétrica para o aviário. As agroindústrias fornecem os pintos e a ração, e comprometem-se a receber as aves. As agroindústrias definem o número de frangos dos aviários e a época (peso) de abate dos frangos. No dia marcado, o produtor recebe as gaiolas e acondiciona os frangos, que são encaminhados para o armazenamento em frio. Alguns dias depois, o produtor recebe um cheque do valor do lote vendido, que é determinado seguindo os critérios preestabelecidos pela indústria. Os agricultores, por outro lado, reclamaram muito das perdas que têm nesse processo de produção. Um deles confessou que durante alguns dias dormia no aviário para poder estar sempre presente para qualquer modificação (de luz ou humidade, por exemplo).
Neste contexto mais geral da vida e do trabalho dos habitantes dessa região, emerge, em 1995, um ataque severo do molusco da espécie Sarasinula linguaeformis nas culturas de feijão, soja e milho. Os locais característicos da sua ocorrência são aqueles próximos a abrigos naturais, tais como beiradas de matas ou capoeiras, montes de palha, patamares de pedras e no meio do “milho dobrado”. Eles se reproduzem rapidamente por serem hermafroditas5. Além dos danos à agricultura, os moradores destacavam a preocupação da invasão das lesmas nas residências, nos “chiqueiros” de porcos e nos aviários da região, que constituem uma importante fonte de rendimento.
Nas tentativas de controlo das lesmas, os “inimigos naturais” (predadores ou parasitas que controlam biologicamente as lesmas) não apresentaram eficácia. De acordo com o técnico do setor agrícola:
é difícil controlar essas pragas, pois elas preferem as horas mais amenas e, por isso, andam mais à noite e de madrugada; elas, às vezes, se enterram e permanecem vários dias até que condições climáticas favoreçam para eles saírem novamente.
Enquanto isso, os agricultores da região atingida protegiam suas hortas do ataque das lesmas, espalhando cal ao redor dos canteiros.
Os agricultores questionavam sobre as causas do aparecimento destas lesmas, e os pesquisadores da Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina (EPAGRI) respondiam, inicialmente, que as lesmas encontraram um ambiente favorável, sem que houvesse predadores ou inimigos naturais para limitar a sua multiplicação e que, mesmo que exista controlo natural, ele não está sendo suficiente para manter a população com nível de equilíbrio ou em baixo nível de infestação. Além disso, acrescentavam que as práticas de conservação do solo que foram implementadas na região nos últimos anos teriam criado condições propícias para que as lesmas se abrigassem e se alimentassem, já que elas comem tudo que contém carboidrato e proteína, vegetal verde, seco ou podre. Porém, outra possível causa da disseminação das lesmas também apareceu: que elas teriam sido introduzidas acidentalmente na região, principalmente por meio de mudas de flores e frutas. Exploramos as mudanças e os conflitos sociais ocasionados quando os membros da comunidade identificaram o morador que havia trazido as possíveis mudas de plantas com as lesmas (Grisotti & Ávila-Pires, 2008).
A partir de 1999, os serviços de agricultura da região entraram em contato com pesquisadores que estudavam esses moluscos, os parasitas que se alojam neles e as doenças em humanos por eles provocadas. Esse contato forneceu o primeiro alerta na população local: “a forma infestante deste parasita é liberada através do muco secretado pelas lesmas e as pessoas podem adquirir esse verme pela ingestão de produtos hortifrutigranjeiros contaminados” (Milanez & Chiaradia, 1999, p. 15).
O problema da lesma como vetor de doenças
Em julho de 1999, os exames constataram que 86% das lesmas coletadas estavam contaminadas. Neste período, os agricultores foram forçados a evitar o plantio de certas culturas devido à preferência alimentar das lesmas por aquelas culturas e três famílias haviam abandonado as propriedades por causa deste problema.
Nessa mesma época, elaborou-se outra hipótese: se as lesmas estavam infectadas, era esperado que a população humana também estivesse, devido ao contato ocasional com elas. A partir daí, os dois pesquisadores, um da área da saúde e outro da agricultura, programaram um calendário para a coleta de moluscos e de sangue da população a cada 4 meses, até completar quatro coletas (ago./2000, dez./2000, abr./2001 e ago./2001). Em todos os períodos de coleta os procedimentos eram os mesmos: palestras do médico e do técnico agrícola, entrega dos resultados sorológicos, inquérito clínico-epidemiológico para os que tinham resultado positivo e nova coleta de sangue.
Em agosto de 2000, foi realizada a primeira coleta de sangue na população da área atingida, bem como uma nova coleta de moluscos. Nesta primeira coleta, não se sabia ainda qual a prevalência da infecção na população.
Todo esse processo foi amplamente divulgado pela imprensa. No dia 15 de agosto de 2000, por exemplo, foi publicada uma matéria no principal jornal do estado de Santa Catarina. Nessa reportagem, além de informações sobre as tentativas para desenvolver um meio para combater as lesmas e a doença, foi emitido um parecer sobre a magnitude da doença:
(...) o verme, de dois centímetros e em forma de um fio de cabelo, ao ser ingerido por seres humanos se aloja nos vasos sanguíneos do intestino, provocando inflamação e perfuração das paredes do órgão, infecção generalizada e obstrução do intestino. (Diário Catarinense, 2000)
Cinco meses depois, os resultados da primeira sorologia apontaram que 24% das pessoas da comunidade estavam infectadas com o verme, mas a doença intestinal ainda não se havia manifestado em nenhuma delas.
A segunda coleta também foi divulgada pela imprensa, mas esta divulgação foi diminuindo ao longo dos meses, devido às consequências que estas informações estavam gerando para a comunidade: se, por um lado, elas serviam para alertar a comunidade atingida, as regiões vizinhas e os consumidores de hortifrutigranjeiros sobre o problema, e serviam também, de certa forma, para que os pesquisadores obtivessem recursos financeiros ao demonstrar a relevância social da pesquisa; por outro lado, criava um problema social e econômico para a população atingida. As pessoas e as suas propriedades ficaram estigmatizadas, no sentido atribuído por Goffman (1963). Além disso, a divulgação criava um problema para o próprio grupo de pesquisa, como se observa na declaração:
Todo mundo fica preocupado, começam a trazer lesmas de todo o lugar; outros queriam saber se estavam contaminados ou não. O pessoal da cidade diz: “assisti na televisão”, depois eles me ligam: “eu li no jornal que a lesma pode transmitir um verme que dá tal sintoma. Pois aqui em casa nós temos tal sintoma, o que nós vamos fazer agora?”. (Informante da EPAGRI)
Um problema de praga agrícola transformou-se, também, num problema de saúde pública, percebido pela comunidade local e pelos pesquisadores. Apesar disso, os serviços de vigilância em saúde humana, bem como os serviços em vigilância em saúde animal, em nenhum momento do processo da pesquisa se interessaram pelos dados ou se dispuseram a colaborar, a despeito das insistentes solicitações, por parte dos pesquisadores (por meio de cartas oficiais para ambas as instituições governamentais), de auxílio no acompanhamento dos casos e na monitorização conjunta de outros possíveis casos na região.
A construção social dessa doença, bem como o estudo sobre os reservatórios de animais silvestres e domésticos envolvidos no processo, ficou, portanto, circunscrita aos interesses pessoais de pesquisa do médico e do agrônomo (e da socióloga que observava todo o processo).
No período posterior à divulgação dos resultados da primeira coleta de sangue da população e da contaminação dos moluscos, seguiram-se mais três rodadas de coleta de sangue, de moluscos e de análise das fezes dos cachorros (outro possível reservatório do parasita). Em todas essas etapas os dois pesquisadores reuniam-se com a comunidade para explicar os dados encontrados6.
Os pesquisadores finalizaram os dois anos de trabalho na região apontando que a compreensão da forma infectante dependia de apoio financeiro para avançar no estudo a longo prazo sobre a dinâmica de populações dos vetores e hospedeiros animais, bem como no estudo sobre os ingredientes para eliminar ou repelir as lesmas, paralelamente associado com a monitorização de casos de infecção (a partir de estudos sorológicos) e de doenças (por meio da análise de peças cirúrgicas) na população humana. Este trabalho pressupõe uma perspectiva mais abrangente e intersetorial, que tende a ser desconsiderada pelos tomadores de decisão governamentais em casos de doenças que, a princípio, não interferem na dinâmica econômica global7. O mesmo aconteceu com os casos de esquistossomose e da dengue no Brasil e em muitos países latino-americanos onde medidas iniciais, em termos da integração entre pesquisa científica e a utilização dos dispositivos de vigilância de forma sistemática e contínua, poderiam ter impedido o descontrolo em relação à sua propagação. No contexto da governança em saúde global no caso do vírus Ebola, a mesma problemática pode ser ilustrada. O pesquisador belga Peter Piot (2012) descreve, em seu livro, a história da emergência do vírus Ebola em 1976 (e do HIV), narrando em detalhes as configurações sociopolíticas do processo de desenvolvimento da saúde internacional (hoje descrita como “saúde global”). Em uma entrevista realizada em 2014, Piot declarou que as medidas de prevenção não mudaram desde a identificação do vírus há 40 anos:
Soap, gloves, isolating patients, not reusing needles and quarantining the contacts of those who are ill - in theory it should be very easy to contain Ebola (…) We shouldn’t forget that this is a disease of poverty, of dysfunctional health systems - and of distrust. (Brown, 2014).
A compreensão do termo “doenças negligenciadas” (Hotez et al., 2007), bem como a compreensão das desigualdades sociais envolvidas na emergência das doenças infecciosas (Farmer, 1996), é anterior à compreensão dos padrões comportamentais das populações atingidas por essas doenças.
QUESTÕES EMERGENTES NO CONTROLO DA TUBERCULOSE DE ORIGEM BOVINA
A tuberculose causada pelo Mycobacterium bovis é uma zoonose de evolução crônica que acomete principalmente bovinos e bubalinos, sendo responsável por perdas econômicas consideráveis. Em 90% dos casos, a transmissão do Mycobacterium bovis se dá por aerossóis durante o contato direto entre animais infectados e sadios. O animal infectado pode eliminar o agente em secreções respiratórias e vaginais, sêmen, fezes, urina e leite, sendo que a aquisição de animais infectados constitui a principal forma de introdução da tuberculose nos rebanhos (Ministério da Agricultura e Pecuária, 2022).
As doenças zoonóticas passaram a ocupar um lugar central nas agendas e acordos políticos de muitos países, e as medidas sanitárias são parte das exigências para a efetivação de muitos acordos internacionais, principalmente aqueles interessados na exportação de produtos de origem animal. Junto aos atores sociais anteriormente envolvidos no sistema (produtores rurais, armazenamento em frio, governos e seus programas, regulações específicas e mercados), uma nova rede de atores foi incorporada ao sistema, a exemplo dos fornecedores de insumos, das consultorias privadas e estatais, dos profissionais de fiscalização (nacionais e internacionais) e das certificadoras, que avaliam o sistema de rastreabilidade do gado e garantem o status de propriedade livre de certas doenças animais, além das fábricas que produzem dispositivos de identificação (brincos, por exemplo).
No Brasil, foi criado em 2001 o Programa Nacional de Controle e Erradicação da Brucelose e da Tuberculose Animal, com o intuito de reduzir o impacto negativo dessas zoonoses e promover a competitividade nacional na produção de leite e carne e, em 2002, Serviço de Rastreabilidade da Cadeia Produtiva de Bovinos e Bubalinos (SISBOV), que tem como finalidade acompanhar a cadeia produtiva bovina, especificando as formas de manejo, modos de alimentação e procedimentos sanitários aos quais os animais devem ser submetidos. Esse processo é operacionalizado por uma base de dados alimentada por informações oriundas da identificação e certificação de cada animal (Buainain & Batalha, 2007).
Esses programas apresentam vários problemas que foram identificados em Santos (2013); entre eles, o fato de funcionar por adesão voluntária do produtor de carne, ou seja, apesar de ter sido criado para controlar toda a cadeia produtiva de bovinos, na prática, o sistema é aplicado apenas em algumas propriedades - geralmente de grandes proprietários interessados no mercado exportador de carne bovina, que exige certificação. Nessas propriedades, o rastreamento das condições sanitárias e de saúde dos animais segue todas as normas e protocolos internacionais. Porém, como os microrganismos, os vetores e os reservatórios de doenças desconhecem fronteiras geopolíticas (Frenk & Moon, 2013), a permanência destas doenças em muitas propriedades que não aderiram ao sistema, bem como o reaparecimento da tuberculose de origem bovina (assim como da brucelose) em algumas propriedades controladas, e naquelas situadas nas fronteiras entre os países, representa um desafio para a saúde global. Como podem ser efetuados os controlos quando um país é livre da doença e outros não? Quem é responsável e como serão efetuados os controlos? E, em caso de indemnização, quem é responsável? Quais são as consequências econômicas da notificação de doenças em animais de elevado valor no mercado da carne bovina? Estas são algumas questões que precisam ser aprofundadas em novas pesquisas.
Além dos problemas relacionados à vigilância em saúde humana e animal nas fronteiras entre Estados-nações, existem outros problemas relacionados com as fronteiras entre os espaços rurais e urbanos. Embora a ocorrência tanto da tuberculose de origem bovina (e da brucelose) quanto da angiostrongilíase se dê predominantemente nas áreas rurais8, o impacto para a saúde humana ocorre também nas cidades, as quais são os centros de distribuição e consumo de produtos agrícolas de origem rural, como verduras (no caso da angiostrongilíase abdominal), leite e queijo (no caso da brucelose e tuberculose bovina). Grande parte dos consumidores urbanos de produtos oriundos das chamadas “feiras de produtos coloniais” geralmente desconhece que esses produtos são produzidos sem qualquer tipo de controlo. Do ponto de vista dos pequenos produtores de carne e leite, as variações do mercado os levam a criar alternativas, tais como vender alimentos de origem animal em feiras coloniais nas cidades. Outra prática de comércio é a chamada “venda à janela”, na qual os produtores comercializam pequenas quantidades de produtos ao se deslocarem para a cidade a fim de estudar, fazer compras ou ir ao médico. Essas formas de comércio escapam, muitas vezes, a qualquer estratégia de controlo dos órgãos oficiais (Santos, 2013).
A falta de articulação e diálogo entre os setores de vigilância da agricultura, da saúde e do meio ambiente e a fraca vigilância de muitos animais silvestres (hospedeiros de diversos microrganismos patogênicos) que entram na cadeia produtiva do gado tornam o controlo do rebanho ainda mais fragilizado.
Esta falta de articulação institucional é resultado de posições e interesses políticos. Mas algo também importante é a falta de articulação entre os campos das clínicas médicas e veterinárias e o campo da epidemiologia (e as diferentes “realidades” das doenças por eles construídos na esfera da produção de conhecimento). Por exemplo, no Brasil não é realizado o diagnóstico diferencial do Mycobacterium responsável pela tuberculose. Do ponto de vista clínico, o tratamento será o mesmo (com antibióticos), independente do agente patogênico encontrado. Para um bacteriologista, há diferentes patógenos envolvidos, mas para o clínico esta distinção é irrelevante. Por outro lado, para as finalidades da saúde pública, a identificação do patógeno é fundamental para o processo de notificação e produção de dados epidemiológicos, a fim de se saber o que está circulando no ambiente e para antecipar, com maior precisão, as medidas de controlo e vigilância da fonte de transmissão (humana ou animal). Estas diferenças entre especialidades médicas e suas maneiras específicas de configurar as doenças e tratá-las criam desafios aos serviços de vigilância epidemiológica e aos tomadores de decisão em política pública, como anteriormente apontado por Mol e Hardon (2020).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O nascimento da clínica representou uma mudança fundamental no entendimento das doenças (Foucault, 1997), enquanto o surgimento da saúde pública foi impulsionado pela compreensão das relações entre as condições socioeconômicas e as enfermidades. No mundo moderno, ambas (clínica e saúde pública) estão imersas em uma pluralidade de disciplinas acadêmicas e especialidades médicas, as quais desafiam o processo de tomada de decisão em política de saúde. Além disso, o registro e cálculo de dados permitem correlacionar taxas de mortalidade com condições de vida, mas apenas registrar epidemias não constitui vigilância em saúde, mais importante é saber como coletar e como interpretar os dados.
Como analisamos nesse artigo, a governança em saúde global, especialmente no que se refere à vigilância dos riscos sanitários e epidemiológicos em caso de doenças zoonóticas, depende de como são realizadas as notificações de doenças (ou de suspeitas de doenças) nas esferas locais (municipais) dos países onde os dados são produzidos; da forma como são diagnosticadas as doenças nas áreas e subáreas da saúde humana e da saúde animal, de como são interpretados e construídos esses dados; de quais são os interesses (políticos, econômicos e culturais) em jogo para tornar “real” a existência de uma doença bem como para considerá-la como problema de saúde pública; de uma melhoria na estrutura, nos mecanismos de coordenação e no compartilhamento de informações, essenciais para assegurar respostas às ameaças que se difundem além das fronteiras dos Estados-nações; de uma reestruturação na formação de pessoal (acadêmico e técnico) qualificado e capacitado de forma contínua para a investigação interdisciplinar.
O estudo da angiostrongilíase abdominal apontou a falta de articulação entre a pesquisa científica e os dispositivos de vigilância em saúde humana e animal colocados em prática pelos serviços governamentais, assim como os limites na definição do que uma doença representa e de quando representa,, do ponto de vista do sistema público de vigilância, um problema de saúde pública. A zoonose estudada é uma “realidade” apenas para os atores sociais (pesquisadores e comunidade) envolvidos na sua emergência, pois ela nunca fez parte de nenhum sistema de notificação oficial.
As questões emergentes da análise da tuberculose de origem bovina demonstram a falta de percepção, por parte de algumas instituições governamentais brasileiras, sobre as interdependências estabelecidas entre os microrganismos e os fenômenos sociais e ambientais e sobre os impasses inerentes à administração das externalidades do processo de prevenção e mitigação dos efeitos negativos para a saúde animal (e humana), deixando pistas para futuras pesquisas sobre como lidar com situações de doenças nos rebanhos de gado bovino que ocorrem nas fronteiras municipais e estaduais e dos Estados-nações, quando nem todas as propriedades aderem ao Serviço de Rastreabilidade da Cadeia Produtiva de Bovinos e Bubalinos (SISBOV).
Em ambos os casos, assim como na pandemia de COVID-19, ressaltamos a necessidade de fortalecer a interdisciplinaridade como uma prioridade nas agendas de pesquisa e políticas de saúde pública, a fim de estarmos mais bem preparados para enfrentar futuros desafios de saúde global.
Espera-se que este debate estimule novos estudos interdisciplinares sobre os impactos sociais das doenças que surgem de patógenos que cruzam as barreiras entre espécies (spillover). Este fenômeno exige a inclusão das relações entre humanos, animais não humanos e natureza na noção de interdependência proposta por Elias (1999), que, inicialmente, foi concebida na sociologia para descrever as relações apenas entre pessoas e grupos sociais.