Introdução
A doença de Coronavírus de 2019 (COVID-19) teve início em dezembro de 2019, na cidade de Wuhan, na China, propagando-se rapidamente por todo o mundo. Por se tratar de um vírus novo e desconhecido, que levou alguns sistemas de saúde à beira da rutura (Huang et al., 2020; Lu, Stratton, & Tang, 2020; World Health Organization, 2020) é bastante comum proliferarem informações/ notícias que nem sempre correspondem à verdade (vulgarmente designadas de fake news) e afetam diretamente a população em geral.
As fake news, para fins analíticos, podem referir-se apenas a conteúdos de notícias que foram comprovadamente falsos ou, também, a outras táticas para desinformar e enganar os indivíduos, como o exagero, a omissão, a informações retiradas de contexto e a especulação. Não é consensual, se o conceito deve incluir apenas conteúdo falso que tenha sido produzido intencionalmente ou se ele também deve incluir qualquer tipo de erro factual verificável, mesmo que não intencional, como um simples erro cometido ao verificar os fatos (Ribeiro & Ortellado, 2018). Esta informação pode ser:
“Apenas um recorte das notícias diárias selecionadas para provar um ponto, uma notícia com uma manchete sensacionalista, um fato mencionado fora do contexto, um exagero de uma história ou alguma especulação sobre um evento ou uma questão que é apresentada como informação factual e, às vezes, pode até envolver mentiras” (Ribeiro & Ortellado, 2018).
Várias dessas táticas para distorcer fatos não se restringem às fake news, e também têm sido usados pelos grandes media. É por isso difícil estabelecer uma linha clara que separe os meios de comunicação com base na sua credibilidade e idoneidade informativa, selecionando os mais confiáveis. Assim, por entre os fluxos de informação, a verdade e a mentira seguem diluídas numa corrente cada vez mais difusa e, analisando o papel do recetor enquanto agente ativo na compreensão e interpretação da informação, existem diversos fatores que o condicionam como os vieses cognitivos (a falta de vontade em verificar a veracidade da informação, a falta de literacia digital e de literacia para a saúde) (Moscadelli et al., 2020).
A desinformação é, então, assimilada e propagada em meios de comunicação de massa entre pontos de emissão e receção por vezes inconscientes do seu papel ativo para reprodução deste sistema (Luhmann, 2000). Isto não se limita às informações que obtemos através do jornalismo, inclui também conhecimentos sobre a ciência, as tendências dos mercados, o significado da arte moderna, a medicina, entre outros. São os media que arbitram o que merece ser conhecido, o que merece ser tema de conversa. O conceito abrange não apenas os media clássicos, como a imprensa, a rádio ou a televisão, mas também os mais recentes, como os media sociais, onde os seus conteúdos são destinados a um público amplo e não selecionado (Luhmann, 2000).
A função dos media é a geração constante de informação e o processamento de irritações, não é a produção crescente de conhecimento ou a socialização e educação de indivíduos para a conformidade com certas normas (Luhmann, 2000). Contudo, seja o sistema comunicacional em que os media se inserem substantivo de uma qualquer ordem moral ou abjeto a esta, as lutas pelo seu controlo e pela difusão de informação com vista em ganhos políticos ou económicos, por exemplo. O conceito de esfera pública é familiar à sociologia graças aos estudos de Jürgen Habermas. O termo "público" indica que o acesso a locais ou a produtos de comunicação está sujeito a formas de limitação e controlo, pelo que formas de censura e de restrição da esfera pública são necessárias. No entanto, a liberdade não pode ser completamente eliminada (Corsi, 2018).
O fenómeno da desinformação relacionada com a COVID-19 também se encontra atualmente bem presente pelo que existe a necessidade de analisar este fenómeno de várias perspetivas, combinando estudos qualitativos (Bastani & Bahrami, 2020), quantitativos (Moscadelli et al., 2020) e mobilizando dados de redes sociais como o Youtube (Li, Bailey, Huynh, & Chan, 2020) e o Twitter (Krittanawong et al., 2020). Os media enquanto plataformas sobre as quais a esfera pública é hoje erguida têm uma responsabilidade acrescida de mediação e regulação da informação. Nos tempos atuais da pandemia COVID-19, a necessidade de que se inunde o discurso mediático, e, por conseguinte, o discurso quotidiano, de “boa informação” é fundamental (World Health Organization, 2020). Assim, sendo a esfera pública o “lugar” no qual os diversos sistemas sociais se entrecruzam e pelo qual comunicam procuraremos encontrar a relação existente entre a “má informação” e os seus perigos para a disseminação de comportamentos de risco individuais da COVID-19 e para a desinformação do público, tentando compreender, também, que perigos estas trazem relativamente a práticas, comportamentos e conflitos sociais fundamentados em informação falsa. Nesse sentido o objetivo deste protocolo é mapear e sintetizar o impacto da disseminação de fake news em tempo de pandemia da COVID-19. Para isso definimos como questões de investigação: Qual é o impacto da disseminação de fake news em tempo de pandemia da COVID-19? Qual a relação entre a disseminação de fake news e a pandemia COVID-19? Uma pesquisa preliminar na JBI Database of Systematic Reviews and Implementation Reports, Cochrane Database of Systematic Reviews, PROSPERO, MEDLINE e CINAHL revelou que atualmente não há outra revisão (publicada ou em curso) sobre este tema.
1. Métodos
Este protocolo foi redigido tendo por base o Preferred Reporting Items for Systematic reviews and Meta-Analyses for systematic review Protocols (PRISMA-P) (Moher et al., 2015) e estrutura a realização de uma revisão scoping através do método proposto pela Joanna Briggs Institute (Tricco et al., 2018).
A pesquisa será realizada nas bases de dados PubMed, Scopus e Jstor, e serão incluídos estudos em língua inglesa, portuguesa e espanhola, com data de publicação de 1 de dezembro de 2019 até à data atual do desenvolvimento da pesquisa. A escolha que motivou o intervalo de tempo da pesquisa foi a data de início da pandemia COVID-19, pois só posteriormente começaram a emergir fake news sobre o tema em apreço.
As estratégias de pesquisa que serão utilizadas para a Pubmed, a Scopus e para a Jstor encontram-se apresentadas na Tabela 1.
Base de dados | Fórmula de pesquisa | Resultados |
---|---|---|
PubMed | ((((("COVID-19"[Title/Abstract] OR "severe acute respiratory syndrome coronavirus 2"[Title/Abstract]) OR "2019-nCoV"[All Fields]) OR "SARS-CoV-2"[All Fields]) OR "coronavirus"[MeSH Terms]) OR "coronavirus"[Title/Abstract]) AND ("fake news"[Title/Abstract] OR "misinformat*"[Title/Abstract]) | 157 |
Scopus | TITLE-ABS(Covid-19) OR TITLE-ABS("severe acute respiratory syndrome coronavirus 2") OR ALL(2019-nCoV) OR ALL(SARS-CoV-2) OR TITLE-ABS-KEY(coronavirus) AND TITLE-ABS("fake news") OR TITLE-ABS(misinformat*) | 158 |
Jstor | ((((((ab:(Covid-19) OR ab:("severe acute respiratory syndrome coronavirus 2")) OR ti:("severe acute respiratory syndrome coronavirus 2")) OR (2019-nCoV)) OR (SARS-CoV-2)) OR (coronavirus)) AND ("fake news")) | 53 |
Após a pesquisa, todas as citações identificadas serão transferidas para o Endnote V7.7.1 (Clarivate Analytics, PA, EUA) e os duplicados removidos. A fim de avaliar a sua elegibilidade, os títulos e resumos serão analisados por dois revisores independentes (JR e MC). Na ausência de consenso será incluído um terceiro revisor (ES) como critério de desempate. Os artigos completos serão analisados com base nos seguintes critérios de inclusão:
PARTICIPANTES: Serão considerados todos os tipos de media institucionalizados (como por exemplo, jornais impressos ou programas televisivos), bem como plataformas digitais de interação como os media sociais (como por exemplo, o Youtube, o Twitter ou o Facebook);
CONCEITO: As fake news terão de corresponder, em todos os casos, a informação falsa, seja por mentira ou omissão de factos ou informação, que é reportada enquanto verdadeira (Ribeiro & Ortellado, 2018);
CONTEXTO: O contexto destas “fake news” terá de se enquadrar com a pandemia da COVID-19, podendo se tratar de má informação ou informação falsa sobre a doença, modos de contágio e propagação ou de comportamentos e práticas de “cura” ou “precaução” que sejam errados ou factualmente incomprovados.
TIPO DE ESTUDOS: Todos os tipos de estudos, nomeadamente revisões sistemáticas, estudos quantitativos, qualitativos e de métodos mistos.
Os dados serão extraídos por dois revisores independentes (JR e MC). A presença de desacordo entre os revisores será resolvida com a inclusão de um terceiro revisor (ES). Os resultados serão agrupados numa tabela e acompanhados por uma síntese narrativa.
2. Resultados
Com a realização desta revisão scoping prevemos incluir diversos estudos que demonstrem qual é o impacto da disseminação de fake news em tempo de pandemia da COVID-19.
Uma pesquisa preliminar permitiu observar uma maior tendência para a análise de redes sociais ou meios de comunicação direta entre indivíduos, não mediado por instituições formais como os jornais e outros media tradicionais. Assim, além de outras metodologias como o inquérito, os investigadores analisaram a disseminação de fake news em redes sociais como o Youtube ou o Twitter (Krittanawong et al., 2020; Li et al., 2020).
Preliminarmente podemos afirmar que se verifica uma elevada disseminação de fake news em tempo de pandemia da COVID-19, pois 23% das hiperligações mais partilhadas nos primeiros 4 meses do ano de 2020 em Itália continham informação falsa e 82% dos italianos não estavam preparados para reconhecer uma informação falsa (Moscadelli et al., 2020). Da análise de 673 tweets, 153 continham desinformação ou informação não verificável (Kouzy et al., 2020).
Os tipos de fake news disseminadas são predominantemente teorias da conspiração, aconselhamento de práticas não eficazes ou não recomendadas pelo campo científico e da saúde, entre outras, e têm consequências psicológicas e sociais para a população (Bastani & Bahrami, 2020).
Os resultados preliminares indicam existir heterogeneidade, tanto geográfica como teórica e metodológica, que reforça necessidade da realização desta revisão scoping sobre esta temática.
3. Discussão
A disseminação de fake news em tempo de pandemia COVID-19, fenómeno denominado como “infodemia” (World Health Organization, 2020), é analisada sob diversas perspetivas e é amplamente prevalente internacionalmente. Por exemplo, em Itália 23% das informações partilhadas continham desinformação (Moscadelli et al., 2020).
A disseminação de fake news pode ter impacto nas políticas de resposta à pandemia implementadas, atrasando a sua execução e podem ser categorizadas em: piadas, exageros, descontextualizações e a deceção ou engano.
A realização desta revisão scoping permitirá descrever, categorizar e compreender como e onde proliferam as fake news e, quanto ao seu impacto neste tempo de pandemia, questionar como podemos mitigar as suas consequências negativas.
Conclusões
Este protocolo de revisão sistemática prevê sintetizar os resultados dos estudos realizados sobre o impacto da disseminação de fake news em tempo de pandemia da COVID-19. A sua análise sistemática poderá contribuir para um conhecimento mais profundo sobre o tema em apreço que se tem verificado internacionalmente, em diversas redes sociais, sob diferentes perspetivas teóricas e metodológicas podendo aportar intervenções para minimizar os seus riscos.