Introdução
A doença renal crónica (DRC) é considerada um problema de saúde pública e um desafio à escala mundial (Silva et al., 2020). Na última década tem-se registado um aumento significativo de casos de DRC, em distintos contextos, estando relacionado com o envelhecimento da população e com a melhoria da expectativa de vida (Marinho et al., 2017). A hipertensão arterial, a diabetes e a glomerulonefrite primária constituem-se como as principais causas de DRC, mas as disparidades socioeconómicas, raciais e de género também se configuram como fatores determinantes.
Nos países desenvolvidos estima-se uma prevalência da DRC entre 10 a 13% na população adulta, enquanto que, nos países em desenvolvimento prevalece uma limitação e heterogeneidade nos dados de prevalência, não permitindo uma estimativa (Marinho et al., 2017). É expectável que a prevalência de DRC nos adultos com idade superior a 30 anos aumente 16,7% em 2030, no caso concreto nos Estados Unidos. Portugal apresenta uma tendência de crescimento anual de DRC5 D ou T (DRC estadio 5 em diálise ou transplantação) superior à média dos países da OCDE, evidenciando as taxas mais elevadas de incidência e prevalência de DRC5 D ou T da Europa (226,7 por milhão de população-pmp e 1824,4 pmp respetivamente em 2015). Segundo os dados da Sociedade Portuguesa de Nefrologia (2020), em 2019 iniciaram diálise ou foram submetidos a transplante renal, um total de 2673 doentes.
Em Portugal, existe uma Norma da Direção-Geral da Saúde (DGS, Norma 017/2011, atualizada a 14/06/2012), que estabelece que em cada serviço hospitalar de nefrologia tem de existir uma consulta para o esclarecimento do doente sobre as diversas modalidades de tratamento DRC5. O doente renal crónico deve ser referenciado de forma atempada à consulta de esclarecimento, ou seja, a partir do estadio 4 da doença renal. A implementação desta norma preconiza uma equipa multidisciplinar, onde o enfermeiro tem um papel primordial. A sua importância é fulcral, pois é neste momento que o doente é informado e o seu comportamento depende muito da sua literacia em saúde e do conhecimento prévio da doença (Silva et al., 2020).
A literacia em saúde (LS) foi definida pela Organização Mundial de Saúde (OMS), em 1998, como o conjunto de competências cognitivas e sociais que determinam a motivação e a capacidade dos indivíduos para aceder, compreender e usar informação, de forma a promover e manter um bom estado de saúde. Implica a aquisição de conhecimentos, competências pessoais e confiança para agir de forma saudável, mediante mudanças de estilo e condições de vida. (OMS, 1998)
O aumento da literacia para a saúde é favorável ao exercício de uma cidadania em saúde, construtiva da sustentabilidade, ambiental, social e cultural. Neste âmbito, o modelo renasceres®, contribui para a discussão de boas práticas em saúde e representa um domínio de intervenção que, numa perspetiva salutogénica, acentua a progressão da pessoa rumo ao polo de máxima funcionalidade (Saboga-Nunes, Freitas, Cunha, 2016).
A Estratégia Nacional de Literacia em Saúde em Portugal, para além de abranger diferentes dimensões da literacia em saúde, abarca a pessoa e os sistemas de saúde, apresentando oportunidades estratégicas de intervenção em contextos associados com diferentes determinantes da saúde (Costa et al., 2019). Em conformidade com a Arriaga et al. (2019, p.7), “as abordagens em Literacia devem contemplar as especificidades de cada estadio de desenvolvimento, sendo a Literacia em Saúde uma oportunidade de promover a saúde ao longo do ciclo de vida”. Seguindo este princípio orientador da Direção-Geral da Saúde, a LS e a comunicação clara entre os profissionais de saúde e os doentes, no caso com DRC, são fundamentais para melhorar a sua saúde e qualidade dos cuidados prestados, bem como para os informar atempadamente sobre a doença e as diferentes modalidades de tratamento.
A literatura atual sugere que a LS é um fator importante no cuidado a pessoas com DRC e pode influenciar o impacto da doença no doente e seus familiares, e a adoção de comportamentos saudáveis. Níveis baixos de LS são comuns entre os doentes com DRC, sobretudo em estadio terminal e têm sido associados a menos conhecimentos sobre a função renal e a diálise. Entre estes doentes, níveis mais elevados de LS têm sido associados a uma maior participação em comportamentos de autogestão, como a adesão à terapêutica (Wong et al., 2018). A corroborar, Stømer et al. (2019) referem que cerca de 25% dos doentes com DRC possuem níveis baixos de LS, o que pode reduzir a autogestão do tratamento e daí advirem piores resultados clínicos. Ao afetar, de forma desproporcional, pessoas com baixo status socioeconómico, uma baixa LS pode promover iniquidade em saúde. Neste sentido, os objetivos deste estudo consistem em identificar os níveis de LS nos doentes com DRC; e determinar os preditores de LS em doentes com DRC.
1. Métodos
1.1 Tipo de estudo
Trata-se de um estudo não-experimental, quantitativo, transversal e de carácter descritivo-correlacional, realizado na Consulta de Esclarecimento da Unidade de Diálise do Centro Hospitalar Tondela Viseu.
1.2 Amostra/ participantes
A amostra, não probabilística por conveniência, contou com 125 doentes, que representam 30,48% da população, tendo em conta que recorreram à consulta 410 doentes, entre janeiro de 2016 e dezembro de 2020. Os critérios de inclusão foram: doentes com DRC em estadio 4 e 5; comparência em Consulta de Esclarecimento da Unidade de Diálise do Centro Hospitalar Tondela-Viseu e que previamente aceitaram participar de forma voluntária no estudo.
1.3 Colheita de dados e instrumentos
A recolha de dados foi realizada com aplicação de um protocolo constituído por um questionário ad hoc sociodemográfico e clínico, bem como pelo Questionário European Health Literacy Survey (HLS-EU) traduzido e validado para Portugal por Pedro et al. (2016).
Os dados foram colhidos entre o mês de abril e junho de 2021 com recurso a entrevista telefónica ou presencial. A entrevistadora iniciava a entrevista com a apresentação do estudo e a importância da participação no mesmo, referindo que o mesmo era confidencial e anónimo. O consentimento informado foi assinado nas entrevistas presenciais, nas entrevistas telefónicas, foi pedido consentimento, verbal antes do início da entrevista.
O HLS-EU é um instrumento que permite avaliar o nível literacia em saúde. A opção por este instrumento de avaliação resultou de uma apurada revisão da literatura na área temática e porque este já foi incluído em Portugal no consórcio Health Literacy Survey-EU, coordenado pela Universidade de Maastricht. Este instrumento é constituído por 47 questões, desenhadas de acordo com um modelo conceitual que integra 3 domínios muito importantes da saúde - cuidados de saúde (16 questões), promoção da saúde (16 questões) e prevenção da doença (15 questões) - e 4 níveis de processamento da informação - acesso, compreensão, avaliação e utilização - essenciais à tomada de decisão. A combinação destes domínios com os níveis resulta numa matriz de análise de literacia em saúde com 12 sub-índices que são operacionalizados nas 47 questões do instrumento. Através de uma escala de 4 valores (“muito fácil” ao “muito difícil”), o respondente indica o grau de dificuldade que sente na realização de tarefas relevantes na gestão da sua saúde. As 47 questões, agrupadas nos 3 domínios e 4 níveis de processamento da informação, permitem categorizar grupos de literacia em saúde em conformidade com pontos de corte. Para garantir o cálculo correto dos índices e assegurar a comparação entre eles, os 4 índices calculados são uniformizados numa escala métrica variável entre 0-50, onde 0 é o mínimo possível e 50 o máximo possível, de literacia em saúde. Para os 4 níveis são identificados os seguintes pontos de corte: scores iguais ou inferiores a 25 pontos= literacia em saúde inadequada; scores entre 25-33 pontos = literacia em saúde problemática; scores entre 33-42= literacia em saúde suficiente; e scores entre 42-50 = literacia em saúde excelente. É de idêntica importância referir que este é um instrumento que avalia a literacia em saúde por autoperceção (Pedro et al., 2016).
O estudo obteve parecer favorável da Comissão de Ética para a Saúde do Centro Hospitalar Tondela-Viseu (N.º 10/05//03/202) no dia 05 de março de 2021.
1.4 Análise estatística
O tratamento de dados foi realizado com recurso ao software IBM SPSS Statistics, versão 23.0. Os dados foram explorados através de estatística descritiva recorrendo a frequências absolutas e percentuais e a medidas de tendência central (média) e de dispersão (desvio padrão, coeficiente de variação - CV, entre outros). Assumiu-se que existia uma dispersão baixa quando CV≤15%, moderada quando 15%<CV≤30% e alta quando CV>30% (Pestana, & Gajeiro, 2008). A análise da consistência interna foi realizada através do Alpha de Cronbach cujos valores são interpretados como muito boa >0,9, boa entre 0,8 e 0,9, razoável entre 0,7 e 0,8, fraca entre 0,6 e 0,7 e por fim, inadmissível <0,6 (Pestana, & Gajeiro, 2008). Por fim, o estudo dos preditores foi realizado através de um modelo de regressão linear multivariado com recurso ao método Forward. Todas as variáveis sociodemográficas e clínicas foram incluídas no modelo. Apenas foram retidas as variáveis estatisticamente significativas (p=0,05). Antes desta análise, os pressupostos de normalidade e multicolinearidade foram confirmados. O teste de Kolmogorov-Smirnov (p=0,19), o achatamento (0,004) e curtose (1,25) atestam que não existe nenhuma violação da normalidade univariada e multivariada (Pestana, & Gajeiro, 2008).
2. Resultados
A amostra contou com 125 doentes, maioritariamente do sexo masculino (65,4%; n=69), com uma idade mínima de 22 anos e uma máxima de 93 anos, ao que corresponde uma idade média de 63,46 anos (±14,64 anos). A dispersão assume-se como moderada (Tabela 1).
Género | N | Min | Max | M | DP | CV (%) | Sk/erro | K/erro |
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Feminino | 56 | 22 | 93 | 61,05 | 16,49 | 27,01 | -1,11 | -0,95 |
Masculino | 69 | 35 | 88 | 65,41 | 12,75 | 19,49 | -1,17 | -1,12 |
Total | 125 | 22 | 93 | 63,46 | 14,64 | 23,06 | -2,09 | -0,85 |
Quanto à caracterização sociodemográfica verifica-se que prevalecem os doentes casados/união de facto (67,2%; n=84), com escolaridade equivalente a 4 anos de escolaridade completos (4ª classe) (33,6%; n=42). A maioria dos doentes coabita com o cônjuge (44,0%; n=55) e residem em meio rural (79,2%; n=99). Predominantemente os doentes encontram-se reformados (42,4%; n=53) (Tabela 2).
Género | Feminino | Masculino | Total | |||
---|---|---|---|---|---|---|
Variáveis | n (56) | % (44,8) | n (69) | % (55,2) | n (125) | % (100.0) |
Estado civil | ||||||
Solteiro(a) | 7 | 12,5 | 4 | 5,8 | 11 | 8,8 |
Viúvo(a) | 11 | 19,6 | 7 | 10,1 | 18 | 14,4 |
Casado(a)/União de facto | 33 | 58,9 | 51 | 73,9 | 84 | 67,2 |
Divorciado(a)/separado(a) | 5 | 8,9 | 7 | 10,1 | 12 | 9,6 |
Habilitações literárias | ||||||
Analfabeto (ou não frequentou a escola) | 6 | 10,7 | 0 | 0,0 | 6 | 4,8 |
<4 anos de escolaridade | 11 | 19,6 | 11 | 15,9 | 22 | 17,6 |
4 anos de escolaridade completos (4ª classe) | 13 | 23,2 | 29 | 42,0 | 42 | 33,6 |
4 a 9 anos de escolaridade | 6 | 10,7 | 15 | 21,7 | 21 | 16,8 |
Ensino secundário | 15 | 26,8 | 4 | 5,8 | 19 | 15,2 |
Ensino superior | 5 | 8,9 | 10 | 14,5 | 15 | 12,0 |
Agregado familiar | ||||||
Sozinho | 9 | 16,1 | 10 | 14,5 | 19 | 15,2 |
Cônjuge | 22 | 39,3 | 33 | 47,8 | 55 | 44,0 |
Filho | 9 | 16,1 | 3 | 4,3 | 12 | 9,6 |
Outros familiares | 3 | 5,4 | 7 | 10,1 | 10 | 8,0 |
Outro não familiares | 2 | 3,6 | 2 | 2,9 | 4 | 3,2 |
Cônjuge e filhos | 11 | 19,6 | 14 | 20,3 | 25 | 20,0 |
Zona de residência | ||||||
Rural | 45 | 80,4 | 54 | 78,3 | 99 | 79,2 |
Urbana | 11 | 19,6 | 15 | 21,7 | 26 | 20,8 |
Profissão | ||||||
Profissões das Forças Armadas | 1 | 1,8 | 1 | 1,4 | 2 | 1,6 |
Representantes do Poder Legislativo | 0 | 0,0 | 1 | 1,4 | 1 | 0,8 |
Especialistas das Atividades Intelectuais e Científicas | 4 | 7,1 | 5 | 7,2 | 9 | 7,2 |
Técnicos e Profissões de Nível Intermédio Pessoal Administrativo | 3 | 5,4 | 4 | 5,8 | 7 | 5,6 |
Pessoal administrativo | 1 | 1,8 | 3 | 4,3 | 4 | 3,2 |
Trabalhadores dos Serviços Pessoais, de Proteção e Segurança e Vendedores | 2 | 3,6 | 2 | 2,9 | 4 | 3,2 |
Agricultores e Trabalhadores Qualificados da Agricultura, da Pesca e da Floresta | 1 | 1,8 | 7 | 10,1 | 8 | 6,4 |
Trabalhadores Qualificados da Indústria, Construção e Artífices | 4 | 7,1 | 6 | 8,7 | 10 | 8,0 |
Trabalhadores não-qualificados | 12 | 21,4 | 6 | 8,7 | 18 | 14,4 |
Desempregado | 6 | 10,7 | 3 | 4,3 | 9 | 7,2 |
Reformado | 22 | 39,3 | 31 | 44,9 | 53 | 42,4 |
Total | 56 | 100,0 | 69 | 100,0 | 125 | 100,0 |
Em relação ao tempo em que os doentes são seguidos na consulta de nefrologia, os dados indicam um mínimo e um máximo a oscilarem entre zero anos e 20 anos, com uma média de 4,63 anos (±4,80 anos). No que se refere às doenças associadas, constata-se que mais de metade dos doentes sofre de hipertensão (60,8%; n=76), seguindo-se a diabetes (40,8%; n=51). Apenas 17,6% (n=22) dos doentes já realizou algum tratamento Substitutivo da Função Renal, dos quais 21 realizaram hemodiálise. Todos os doentes mencionaram ter sido informados das diferentes técnicas de substituição da função renal na consulta, cuja opção dialítica mais escolhida foi a hemodiálise (67,2%; n=84), seguida da diálise peritoneal (26,4%; n=33). A sua escolha foi respeitada (100,0%) (Tabela 3).
Género | Feminino | Masculino | Total | |||
---|---|---|---|---|---|---|
Variáveis | nº (56) | % (44,8) | nº (69) | % (55,2) | nº (125) | % (100,0) |
Diabetes | ||||||
Não | 34 | 60,7 | 40 | 58,0 | 74 | 59,2 |
Sim | 22 | 39,3 | 29 | 42,0 | 51 | 40,8 |
Hipertensão | ||||||
Não | 27 | 48,2 | 22 | 31,9 | 49 | 39,2 |
Sim | 29 | 51,8 | 47 | 68,1 | 76 | 60,8 |
Glomerulonefrites | ||||||
Não | 53 | 94,6 | 65 | 94,2 | 118 | 94,4 |
Sim | 3 | 5,4 | 4 | 5,8 | 7 | 5,6 |
Doença Poliquística | ||||||
Não | 49 | 87,5 | 61 | 88,4 | 110 | 88,0 |
Sim | 7 | 12,5 | 8 | 11,6 | 15 | 12,0 |
Insuficiência Cardíaca | ||||||
Não | 48 | 85,7 | 61 | 88,4 | 109 | 87,2 |
Sim | 8 | 14,3 | 8 | 11,6 | 16 | 12,8 |
Insuficiência Respiratória | ||||||
Não | 56 | 100,0 | 68 | 98,6 | 124 | 99,2 |
Sim | 0 | 0,0 | 1 | 1,4 | 1 | 0,8 |
Obesidade | ||||||
Não | 44 | 78,6 | 57 | 82,6 | 101 | 80,8 |
Sim | 12 | 21,4 | 12 | 17,4 | 24 | 19,2 |
Outras | ||||||
Não | 46 | 82,1 | 59 | 85,5 | 105 | 84,0 |
Sim | 10 | 17,9 | 10 | 14,5 | 20 | 16,0 |
Tratamento Substitutivo da Função Renal | ||||||
Não | 43 | 76,8 | 60 | 87,0 | 103 | 82,4 |
Sim | 13 | 23,2 | 9 | 13,0 | 22 | 17,6 |
Ter alguém na família ou conhecido que realize Tratamento Substitutivo função Renal | ||||||
Não | 44 | 78,6 | 60 | 87,0 | 104 | 83,2 |
Sim | 12 | 21,4 | 9 | 13,0 | 21 | 16,8 |
Se sim, qual o Tratamento Substitutivo função Renal | ||||||
Hemodialise | 12 | 100,0 | 8 | 80,0 | 20 | 90,9 |
Transplante renal | 0 | 0,0 | 2 | 20,0 | 2 | 9,1 |
Opção dialítica escolhida | ||||||
Hemodialise | 36 | 64,3 | 48 | 69,6 | 84 | 67,2 |
Dialise peritoneal | 16 | 28,6 | 17 | 24,6 | 33 | 26,4 |
Transplante renal dador vivo | 2 | 3,6 | 1 | 1,4 | 3 | 2,4 |
Tratamento médico conservador | 2 | 3,6 | 3 | 4,3 | 5 | 4,0 |
Total | 56 | 100.0 | 69 | 100,0 | 125 | 100,0 |
Quanto aos níveis de literacia em saúde, os resultados da consistência interna revelam que o instrumento tem um Alpha de Cronbach de 0,98, sendo classificado como muito boa (Pestana, & Gajeiro, 2008). Da análise dos níveis de literacia em saúde constatamos que, no total da amostra, prevalecem os doentes com literacia em saúde problemática (35,5%; n=44), seguindo-se os doentes com literacia em saúde inadequada (31,5%; n=39). Numa análise por género, verifica-se que os percentuais mais elevados de mulheres correspondem às que revelam inadequada (36,4%; n=20) e problemática literacia em saúde (34,5%; n=19). Nos homens, a maioria (36,2%; n=25) apresenta uma literacia em saúde problemática, seguidos pelos que possuem literacia em saúde inadequada ou suficiente, com igual valor percentual (27,5%; n=19, respetivamente) (Tabela 4).
Género | Feminino | Masculino | Total | |||
---|---|---|---|---|---|---|
Literacia em saúde | n (55) | % (44,4) | n (69) | % (55,6) | n (124) | % (100,0) |
Inadequada | 20 | 36,4 | 19 | 27,5 | 39 | 31,5 |
Problemática | 19 | 34,5 | 25 | 36,2 | 44 | 35,5 |
Suficiente | 9 | 16,4 | 19 | 27,5 | 28 | 22,6 |
Excelente | 7 | 12,7 | 6 | 8,7 | 13 | 10,5 |
Em relação aos preditores, o modelo de regressão linear multivariado revelou que as habilitações literárias e o género são preditores da literacia em saúde com efeitos positivos moderados a baixos (β =0,47 e β =13, respetivamente). A idade também é um preditor, mas com efeitos negativos baixos (β =-0,20). No global existe uma percentagem de variância explicada de 47% (R2=0,47). Tabela 5.
3. Discussão
As pessoas com DRC tomam decisões quotidianas sobre como gerir a sua doença. A DRC inclui o risco de progressão para doença renal em estadio terminal e o desenvolvimento de comorbilidades, como a doença cardiovascular, que representa a principal causa de morte entre esta população. (KDIGO, 2012). Nesse sentido e para reduzir esses riscos, as pessoas com DRC são recomendadas a seguir um estilo de vida saudável com atividade física, nutrição adequada e adesão a regimes de medicação complexos em todas as fases da doença. (KDIGO,2012). Para gerir a complexidade desta situação de saúde, a LS é considerada fundamental, uma vez que é um conceito multidimensional e compreende uma gama de aspetos cognitivos, afetivos, habilidades sociais e pessoais que determinam a motivação e a capacidade de aceder, compreender e usar as informações em saúde, o que implica capacitar com mais LS as pessoas com DRC (Stømer et al., 2020).
Os resultados do nosso estudo demonstraram um perfil sociodemográfico maioritariamente do sexo masculino (55,2%), com uma idade média de 63,46 anos (±14,64 anos). Este perfil é consistente com os dados apontados por Nolasco et al. (2017), que referem que a incidência da DRC aumenta com a idade, especificamente acima dos 30 anos. Também, outros estudos, corroboram estes dados (Wong et al., 2018; Wassef et al., 2018).
Relativamente à caracterização clínica, apurou-se uma média de 4,63 anos (±4,80 anos) de seguimento dos doentes na consulta de nefrologia. Quanto às doenças associadas, mais de metade dos doentes sofre de hipertensão (60,8%), seguindo-se a diabetes (40,8%), sendo estes dados consistentes com a literatura que sugere que a hipertensão arterial, a diabetes e a glomerulonefrite primária se constituem como as principais doenças associadas à DRC (Marinho et al., 2017; Wong et al., 2018).
Todos os doentes relataram ter sido informados das diferentes técnicas de substituição da função renal na consulta, sendo a opção dialítica mais escolhida a hemodiálise (67,2%) e a sua escolha respeitada. Nolasco et al. (2017) referem que, em Portugal, a hemodiálise continua a representar a principal técnica de substituição da função renal, com 59,7% de doentes prevalentes. Em Portugal, desde 2001, existe uma Norma da Direção-Geral da Saúde (DGS, Norma 017/2011, atualizada a 14/06/2012, que define que em cada serviço hospitalar de nefrologia tem de existir uma consulta para o esclarecimento do doente sobre as diversas modalidades de tratamento DRC5. O doente renal crónico com seguimento prévio em consulta externa de nefrologia deve ser referenciado de forma atempada à consulta de esclarecimento, ou seja, desde o estadio 4 da doença renal. Esta consulta tem como principal objetivo esclarecer o doente e a família acerca das diferentes modalidades de tratamento e técnicas respetivas. Nesta consulta explica-se em que consiste a doença renal, as suas causas, a evolução da mesma, e esclarece-se o doente sobre cada uma das modalidades e o seu procedimento. A implementação da referida Norma da DGS nos serviços hospitalares de nefrologia preconiza que o esclarecimento do tratamento de substituição renal aos doentes tenha a participação do enfermeiro. Neste sentido, a questão de orientação traduz-se na importância do papel do enfermeiro na consulta de esclarecimento e na forma como este profissional de saúde ajuda na escolha que o doente realiza, respeitando a sua opção dialítica. A sua importância é fulcral no momento que o doente é informado e a maneira como se comporta depende muito da sua LS e do conhecimento prévio da doença Strand et al. (2012, pp. 57).
Em relação aos níveis de LS nos doentes com DRC, os resultados do nosso estudo demonstraram que prevalecem os doentes com LS problemática (35,5%), seguindo-se os doentes com LS inadequada (31,5%). Nas mulheres prevalecem as que revelam níveis mais elevados de LS inadequada (36,4%) e, nos homens, LS problemática (36,2%). Estes resultados são corroborados por Stømer et al. (2019), que concluiu que cerca de 25% dos doentes com DRC tinha baixa LS, o que pode reduzir a autogestão do tratamento e predizer piores resultados clínicos. Todavia, vários outros estudos relataram resultados semelhantes (Fraser et al, 2013; Costa-Requena et al., 2017; Taylor et al., 2017). Mackey et al. (2016) verificaram também baixos níveis de LS em saúde nos doentes com DRC, que, segundo os autores, podem afetar os comportamentos necessários para o desenvolvimento de habilidades de autogestão. Wong et al. (2018) registou que grande parte dos doentes com DRC tinham baixo nível de LS, que estão associados a piores resultados de saúde, sobretudo em doentes em estadio terminal. Nesse sentido e apesar das interações muito frequentes com os sistemas de saúde, os doentes com DRC em tratamento dialítico não apresentam níveis satisfatórios de LS, quando comparados com doentes sem esta patologia. Por conseguinte, é necessário implementar mais estratégias que promovam a LS, o que pode modificar favoravelmente os resultados clínicos.
Adicionalmente baixas pontuações em LS estão associadas a fracos resultados em saúde e à progressão da doença, com baixas médias em filtração glomerular e maior probabilidade de história prévia de distúrbios cardiovasculares associados à hipertensão e à diabetes. Paradoxalmente, as pontuações mais altas em LS estão associadas a comportamentos que aumentam a adesão e menores custos a nível de tratamento (Devraj Borrego et al., 2015; Taylor et al, 2016; Costa-Requena et al., 2017). A relação entre a LS e adesão ao tratamento é mediada pelo conhecimento que o doente tem sobre a doença, ou seja, a uma LS adequada promove um maior conhecimento sobre a doença renal e favorece comportamentos de adesão e de tratamento (Costa-Requena et al., 2017).
Para além do exposto, os nossos resultados também demonstraram que as habilitações literárias e o género são preditores da LS com efeitos positivos moderados a baixos (β=0,47 e β=0,13, respetivamente) e a idade com efeitos negativos baixos (β=-0,20). Estes dados foram corroborados pelo estudo de Stømer et al. (2019), que conclui que o sexo feminino e uma menor escolaridade foram preditores de menor LS, tendo sido o grupo dos doentes com menor nível de LS, os que coabitavam sozinhos e possuem mais comorbilidades. De igual modo, no estudo de Lambert et al. (2015), o sexo masculino e menor habilitações literárias foram preditores de inadequada LS.
Por fim, importa referir que este estudo possui algumas limitações. Ainda que a amostra tenha obedecido a rigorosos critérios de seleção, os seus resultados não são passíveis de generalização. Nesse sentido, sugere-se a sua replicação em outros contextos nacionais e internacionais. Por outro lado e apesar de todos os esforços, apenas tivemos uma representatividade populacional de 30,48%. Por motivos de ordem temporal não nos foi possível prolongar o período de colheita de dados e consequentemente melhorar este dado
Conclusão
O presente estudo permitiu, concluir que a amostra estudada possui um perfil demográfico e clinico, em linha com a população portuguesa; todos os doentes foram informados, em contexto de consulta de esclarecimento, o que traduz um nível elevado de cumprimento da Norma DGS 017/2011, atualizada a 14/06/2012; não obstante este resultado muito positivo, contatou-se que os doentes apresentam níveis de literacia na DRC, muito reduzidos, facto que, de acordo com a literatura, pode condicionar uma fraca autogestão do tratamento e predizer piores resultados clínicos; em adição, conclui-se que os doentes com maiores habilitações literárias e os do género masculino, detêm melhores níveis de literacia associada à DRC.
Em termos de implicações para a prática clínica, estes resultados sugerem a necessidade de investimento em programas que fomentem a aquisição de maior literacia em saúde, vocacionados para os doentes renais crónicos, promovendo o seu empowerment. Neste sentido, consideramos que os enfermeiros poderão ter papel determinante na operacionalização destas iniciativas, dado o caracter de grande proximidade, e continuidade no tempo, que carateriza a sua interação com estes doentes.
Deste modo, poderão acrescentar mais efetividade à sua intervenção ao nível desta dimensão da enfermagem em nefrologia, promovendo uma melhor aceitação da doença, melhores comportamentos de adesão e, por consequência, maiores ganhos em saúde, traduzidos maior autonomia na escolha da TSFR, em acréscimo da longevidade e qualidade de vida.
Por fim e tendo por base as implicações para a investigação sugerimos a realização de mais estudos nacionais que permitam dados mais generalizados da população portuguesa.
Agradecimentos
Os autores agradecem a contribuição do CHTV e dos doentes que integraram o estudo. De igual forma, agradecem o apoio da Escola Superior de Saúde de Viseu (ESSV) e da Unidade de Investigação em Ciências da Saúde: Enfermagem (UICISA: E), acolhida pela Escola Superior de Enfermagem de Coimbra (ESEnfC) e financiada pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT).