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Sociologia, Problemas e Práticas

Print version ISSN 0873-6529

Sociologia, Problemas e Práticas  no.37 Oeiras Nov. 2001

 

GLOBALIZAÇÃO E SOBERANIA DOS ESTADOS

Ivan Nunes*

 

Resumo Este texto discute dois modelos segundo os quais a soberania dos estados tem sido entendida: o “modelo de Vestefália” e o “modelo da Carta”. Os dois modelos são apresentados como tipos-ideais, dicotómicos. Depois de, numa primeira parte, descrever sumariamente as origens históricas destes dois modelos e enunciar os aspectos principais da sua diferenciação, o artigo questiona em seguida as vantagens do “modelo da Carta” sobre o “modelo de Vestefália”. Numa parte final, porém, esboça-se uma crítica da própria dicotomia, sugerindo que, mais do que uma ruptura, há aspectos de continuidade entre o “modelo de Vestefália” e a globalização contemporânea.

Palavras-chave Soberania, modelo da Carta, Vestefália, globalização.

 

Abstract The article discusses two models that have been used to define state sovereignty - the “Westphalian model” and the “Charter model”. Both models are dichotomic ideal-types. The article briefly describes their historical origins and the main differences between them, before going on to question some of the advantages which the Charter model is alleged to possess in relation to its Westphalian counterpart. However, in the final part of the article, the author outlines a critique of the dichotomy itself, suggesting that there are some striking continuities between the “Westphalian model” and today’s globalisation process.

Keywords Sovereignty, Charter model, Westphalian model, globalisation.

 

Résumé Ce texte débat de deux modèles utilisés pour interpréter la souveraineté des États: le “modèle de Westphalie” et le “modèle de la Charte”. Ces deux modèles sont présentés comme des types-idéaux dichotomiques. Après une première partie qui rappelle les origines historiques de ces deux modèles et énonce les principaux aspects qui les distinguent, l’article s’interroge sur les avantages du “modèle de la Charte” par rapport au “modèle de Westphalie”. Cependant, dans la dernière partie, il ébauche une critique de la propre dichotomie, en suggérant que, plus qu’une rupture, il y a des aspects de continuité entre le “modèle de Westphalie” et la mondialisation contemporaine.

Mots-clés Souveraineté, modèle de la Charte, Westphalie, mondialisation.

 

Resúmene Este texto discute dos modelos según los cuales la soberanía de los Estados ha sido entendida: el “modelo de Vestefália” y el “modelo de Carta”. Los dos modelos son presentados como tipos - ideales, dicotómicos. Después de en una primera parte, describir sumariamente los orígenes históricos de estos dos modelos y enunciar los principales aspectos de su diferenciación, el articulo cuestiona enseguida las ventajas del “modelo Carta” sobre el “modelo Vestefália”. En el final, además, se esboza una crítica de la propia dicotomía, sugiriéndose que, más que una ruptura, hay aspectos de continuidad entre el modelo Vestefália y la globalización contemporánea.

Palabras-clave Soberanía, modelo de Carta, Vestefália, globalización.

 

Nuclear weapons can wipe out life on Earth, if used properly. Talking Heads, Stop Making Sense.

Vários acontecimentos na política internacional têm vindo a colocar o princípio da soberania dos estados e a sua legitimidade como um assunto de crescente relevância e discussão nos últimos anos. Basta pensarmos em matérias como a intervenção da NATO na Jugoslávia, em 1999, alegadamente para defender os direitos humanos dos kosovares albaneses; a prisão e o conturbado processo judicial por que passou o general Pinochet; o problema da ratificação do Tribunal Penal Internacional; e ainda, numa perspectiva um pouco diferente, em todas as discussões acerca do conceito de globalização e da possibilidade efectiva de os povos se governarem a si próprios segundo as regras democráticas que instituíram. Em todas estas questões, é a soberania — quer como princípio a limitar em função de outros valores, quer como objectivo que se persegue — que tem estado no centro da agenda.

O problema da soberania tem também vindo a ser particularmente discutido por um conjunto de autores comprometidos com uma visão normativa sobre a política internacional, no campo do direito internacional, da teoria política e das relações internacionais. Autores como o americano Richard Falk, o italiano Antonio Cassese ou o inglês David Held têm recorrido a uma discussão da ordem jurídica internacional em função de dois modelos contrastantes: o modelo de Vestefália, onde se encontraria o fundamento histórico da soberania como princípio de legitimidade fundamental da ordem internacional, e o modelo da Carta das Nações Unidas que, impondo restrições à centralidade da soberania na ordem internacional, configuraria sobretudo a promessa de uma ordem internacional renovada com base em princípios e valores humanitários.

Ao longo deste texto proponho uma enunciação sumária das características principais desses dois modelos para, por fim, tentar tirar algumas conclusões sobre o assunto.

 

O princípio da soberania

Embora alguns autores reportem os princípios fundamentais do direito internacional moderno a origens históricas diferentes, os tratados de Vestefália, que em 1648 puseram fim à guerra dos trinta anos entre as principais potências da Europa, representam um marco histórico na consagração do princípio da soberania: ao retirarem legitimidade à ideia de uma comunidade política universal, eles reconheceram o estado como detentor da autoridade última sobre o respectivo território.

Na verdade, os pilares do que veio a chamar-se o modelo de Vestefália não surgiram pela primeira vez, nem ficaram inteiramente definidos, em 1648. Algumas das normas do modelo de Vestefália estavam já em uso no direito internacional antes dessa data, e o próprio conceito de soberania — embora sobretudo como princípio de regulação dos conflitos internos — tinha-se tornado corrente desde o fim do séc. XVI, através dos escritos de Jean Bodin. Por outro lado, certas disposições dos tratados de Vestefália nunca chegaram a ser efectivamente aplicadas, e é controverso se não serão mesmo contraditórias com os princípios fundamentais do modelo. Entre estas, o caso mais interessante é o das restrições ao uso da força nas relações internacionais, e sobre ele debruçar-me-ei mais à frente.

Como se sabe, a regra fundamental de Vestefália consiste na atribuição ao estado da autoridade exclusiva sobre o respectivo território, espaço aéreo e três milhas de costa marítima.

A ideia de um mundo dividido em diferentes comunidades políticas representou, à época, uma inovação revolucionária. Os diversos impérios do primeiro milénio não formavam uma comunidade internacional dividida de forma similar ao sistema interestatal do séc. XVII, na medida em que eles eram, cada um, “um universo auto-contido, um sistema único e ‘global’” (Miller, 1993: 21). Para os súbditos de cada um dos impérios, a autoridade política não estava ligada a uma comunidade cultural específica, mas era universal: as fronteiras do império coincidiam com as fronteiras do seu mundo, e o que estava para lá dessas fronteiras não eram comunidades políticas, de forma alguma, semelhantes e equivalentes à sua. Os contactos entre impérios não eram tão intensos que esta ideia de vários mundos fechados se tornasse inverosímil.

A divisão política da Europa feudal, por outro lado, também não é comparável ao sistema de estados moderno, uma vez que ela assentava na coexistência de vários poderes sobre um mesmo espaço, tendo no topo a autoridade espiritual da igreja. Por muito “ilusório” (Miller, 1993: 23) que fosse o ideal da cristandade unida, a legitimidade religiosa que sustentava esta organização do poder só seria superada pela invenção de um princípio de legitimidade completamente diferente, assente na autoridade política do estado, na autonomia e unidade cultural da nação e no ideal da soberania. Ao consagrar estes valores no plano internacional, Vestefália marcou a ruptura com a autoridade política do papa.

De forma algo paradoxal, esta transformação só pôde acontecer após a revolução coperniciana, isto é, só depois de se ter tido consciência de que o mundo era “um só”. Até lá — e às viagens europeias da expansão —, os habitantes dos diversos continentes viviam praticamente em desconhecimento recíproco. Quando as concepções de espaço e de tempo foram reformuladas, identificando-se o planeta como uma entidade delimitada, descontínua em relação ao conjunto do cosmos, tornou-se possível “mapear” o território. O surgimento do estado, como uma autoridade política, administrativa e cultural territorializada, é indissociável desta delimitação de fronteiras.

A nação é concebida como limitada porque mesmo a maior delas, ainda que abarque um bilião de seres humanos, tem fronteiras finitas, embora elásticas, para além das quais se situam outras nações. Nenhuma nação se imagina a si própria como coincidente com o conjunto da Humanidade. Nem os mais messiânicos dos nacionalistas sonham com o dia em que todos os membros da raça humana hão-de juntar-se à sua nação, da forma que, em certas épocas, foi possível aos Cristãos, por exemplo, sonharem com um planeta inteiramente cristão (Anderson, 1991: 7).

O sistema interestatal surgido na Europa na sequência da guerra dos trinta anos é portanto radicalmente novo: aspira a unir cada comunidade territorial — progressivamente, cada comunidade nacional — sob uma autoridade política, diferenciada de outros territórios, outras comunidades, outras autoridades. O “mundo” assim dividido é um mundo de estados, que são as únicas entidades do direito internacional. Mas Vestefália era um sistema falsamente universal, na medida em que a integração das áreas não-europeias no sistema interestatal se fez de forma subordinada, e não através do reconhecimento de outros estados em condições de igualdade formal.

Dentro do sistema de Vestefália, como cada estado é a única autoridade legítima sobre o respectivo território, os estados são todos iguais no plano internacional. Assim sendo, o direito internacional de Vestefália assenta numa reciprocidade entre os estados, ou melhor, ele não pode ser nada senão esta reciprocidade, visto que não existe qualquer outra fonte para a sua produção. O direito internacional consiste nas normas que o conjunto dos estados individuais conceberam para regular as relações entre si; é universalista na medida em que assenta neste princípio de reciprocidade, e não porque emane de uma autoridade única superior.

A existência desta forma de direito internacional torna porém notório que a separação política dos estados não deve ser levada à letra. Hans Kelsen, por exemplo, defendeu:

a própria “ideia da igualdade de todos os estados só pode ser mantida se basearmos a nossa interpretação dos fenómenos jurídicos na primazia do direito internacional”, chegando a afirmar que “os estados, enquanto ordens jurídicas, só podem ser considerados iguais se abdicarmos do pressuposto da soberania, uma vez que eles só são iguais na medida em que estão igualmente sujeitos a uma ordem jurídica internacional única.” (Kelsen, 1967, Principles of International Law, citado por Zolo, 1997: 123).

Mais recentemente, Andrew Hurrell (1995: 139) colocou esta ideia em termos particularmente clarificadores; diz ele:

a soberania sempre foi um direito socialmente construído: não apenas algo que podia ser reivindicado simplesmente na base do poder, mas uma qualidade assente num conjunto de entendimentos comuns, e em evolução, entre um grupo de estados.

Vestefália tem por isso esta paradoxal qualidade de conciliar a intensificação das relações internacionais com a autonomia política de cada uma das suas unidades.

Assim, as relações internacionais no modelo de Vestefália, geralmente caracterizadas como anárquicas, podem talvez mais precisamente ser descritas como obedecendo a um sistema de ordem descentralizada. Tendo por base a reciprocidade, criaram-se no direito internacional princípios bastante desenvolvidos de regulação do relacionamento entre os estados. Mesmo a guerra foi progressivamente submetida a um conjunto mínimo de normas, designadamente relativas ao tratamento de feridos e prisioneiros.

 

O “modelo da Carta”

A evolução no sentido da constituição de uma autoridade centralizada no plano internacional, pondo em causa princípios básicos do modelo de Vestefália, conheceu duas grandes etapas — a constituição da Sociedade das Nações e a da ONU —, que correspondem também a dois momentos históricos do declínio da hegemonia europeia sobre a ordem internacional. O modelo de Vestefália tinha assentado num conjunto de países que não eram apenas estados, mas também o centro de um império. Os estados da Europa constituíam entre si uma espécie de “família” do ponto de vista cultural e ideológico, com grandes similitudes na forma de organização social e política. Esta “família” de nações era aliás, até ao séc. XIX, em parte, uma família em sentido próprio, dados os laços que ligavam várias casas reais europeias. Não deixa de ser curioso que, neste quadro, a soberania vá sendo conquistada por cada vez mais povos do mesmo passo em que se vai “desvalorizando”, por via da emergência de princípios alternativos na ordem jurídica internacional.

 

A Sociedade das Nações

A Sociedade das Nações traz consigo duas novidades no sentido de contrariar o modelo de ordem jurídica descentralizada de Vestefália: impõe restrições ao uso da força pelos estados e procede a um esforço de codificação das normas do direito internacional.

Quanto à utilização da força, o Convénio da Sociedade das Nações estipula que os estados-membros passam a ser obrigados a submeter as respectivas disputas à apreciação do Conselho da Sociedade das Nações. No caso de o conselho chegar a uma deliberação unânime, as partes devem acatá-la. Se, por outro lado, aquele não fosse capaz de produzir um veredicto unânime — e, portanto, não fosse capaz de decidir qual das partes tinha razão —, os estados em disputa passavam a só estar autorizados a entrar em guerra depois de decorrido um período de três meses. Durante esse período, a Sociedade das Nações procuraria esgotar os meios diplomáticos ao seu alcance para obter uma solução pacífica. Fazer guerra fora das circunstâncias previstas acarretaria sanções económicas e mesmo militares (no caso de o conselho assim recomendar), aplicadas pelos estados membros da organização contra o país agressor.

Quanto à codificação normativa: foi criado, também no âmbito da Sociedade das Nações, um Tribunal Internacional de Justiça, destinado a arbitrar disputas entre estados. A aceitação pelas partes das opiniões do tribunal era em última análise voluntária, mas a simples intervenção do tribunal num número alargado de casos permitiu a formalização de normas do direito internacional, bem como a elaboração de doutrina. O direito internacional daí resultante tornou-se mais coerente enquanto sistema e portanto mais autónomo face às circunstâncias particulares de cada caso.

No plano especificamente político, a Assembleia Geral da Sociedade das Nações adquiriu o poder de emitir declarações e recomendações, embora sem carácter imperativo sobre o comportamento dos estados. Ainda assim, estas ajudaram a criar um corpo doutrinário em relação ao qual as atitudes dos estados tinham, pelo menos, de ser justificadas. Em consequência, uma referência explícita aos princípios do direito internacional teve acolhimento nas constituições de diversos países. A “remoralização” da esfera internacional foi ao ponto de a Sociedade das Nações condenar o imperador da Alemanha pelas suas responsabilidades no desencadear da guerra, bem como aprovar resoluções proibindo a escravatura ou reconhecendo direitos às minorias étnicas — sobrepondo-se assim, teoricamente, à relação, até então exclusiva, estabelecida entre indivíduos e estado.

Deste modo, a sociedade internacional passa a ser uma entidade corporizada de forma autónoma no direito internacional e numa organização que é simultaneamente fonte de direito e seu intérprete legítimo. O direito internacional já não se resume a um princípio de reciprocidade entre os estados como forma de regular as relações entre eles. Em circunstâncias particulares, a organização internacional pode impor a sua vontade à de estados individuais.

O fracasso da Sociedade das Nações é bem conhecido. A organização não chegou sequer a integrar grande parte dos estados, designadamente não integrou uma parte importante das principais potências da altura. De resto, a SN nunca dispôs de meios próprios para fazer cumprir as suas decisões e estava, por isso, dependente da colaboração dos estados individuais para aplicar sanções militares (que tinha apenas o poder de “recomendar”, e não de impor). A aplicação do direito internacional permaneceu irregular e inconsistente. No decorrer dos anos 30, o contraste entre as normas formalmente inscritas no direito internacional e a realidade das relações de poder tornou-se demasiado evidente.

 

A Carta das Nações Unidas

Com poderes muito mais vastos do que os da sua predecessora, a Carta das Nações Unidas, assinada em 1945 por 51 países, proíbe o uso da força pelos estados no plano internacional, salvo no estritamente necessário para se defenderem de uma agressão externa até que a ONU intervenha, com forças militares próprias. Cria-se assim uma espécie de monopólio da violência legítima no plano internacional. As decisões do Conselho de Segurança das Nações Unidas podem ser aplicadas mesmo contra a vontade de estados individuais, reservando-se a ONU o direito de agir sempre e por toda a parte — incluindo em países que não sejam membros da organização — onde considere existirem ameaças à paz e à segurança internacionais.

A legitimidade desta intervenção remete para um conceito de direitos mínimos de todos os seres humanos. Sendo os indivíduos os sujeitos últimos do direito internacional, eles estabelecem uma relação directa com a comunidade humana, tendo direitos e deveres independentes dos estados. Esta ideia teve a sua primeira consagração jurídica no tribunal internacional que, por iniciativa das potências vencedoras da II Guerra Mundial, julgou, em Nuremberga e em Tóquio, os crimes praticados pelas potências do Eixo. O tribunal, constituído por juízes dos quatro países que o instituem, não se limita a julgar crimes de guerra, mas também o que chama “crimes contra a paz” e “crimes contra a humanidade”. Tais figuras jurídicas são particularmente inovadoras por dois motivos: por um lado, criam uma lei penal retroactiva (ex post facto), permitindo julgar indivíduos por acções que, à data em que foram praticadas, não estavam previstas como crime; por outro lado, o tribunal recusa o argumento de que os réus, na prática de tais actos, só estavam a cumprir ordens superiores, consagrando assim o princípio de que, entre a obediência ao estado e a obediência a normas fundamentais do direito internacional, os indivíduos estão obrigados a optar pelas últimas. Houve assim, pela primeira vez, indivíduos condenados por actos praticados no exercício das suas prerrogativas soberanas, enquanto agentes de um estado. Ao integrar os princípios consagrados em Nuremberga e Tóquio na sua carta fundadora, a ONU está a impor limites novos à soberania dos estados.

Na prática, a capacidade decisória do Conselho de Segurança da ONU viu-se bloqueada pelo chamado “direito de veto”: nenhuma resolução podia ser aprovada no conselho com o voto contrário de qualquer dos seus membros permanentes. Ao contrário do que acontecia na Sociedade das Nações, nada impedia agora os membros permanentes de votarem em questões em que eles próprios estivessem directamente envolvidos. A ONU ficou assim impedida de aplicar o direito internacional contra os interesses de qualquer dos membros permanentes e, portanto, de resolver qualquer disputa emergente entre as principais potências do sistema.

Embora a ONU disponha de forças militares próprias, a possibilidade de elas serem usadas de acordo com os princípios da carta acabou por cair em desuso, não sendo retomada nem mesmo depois de, com o fim da guerra fria, ter passado a ser possível estabelecer consensos entre os membros permanentes do Conselho de Segurança. É geralmente reconhecido que a ONU não adquiriu a legitimidade necessária para poder desempenhar directamente o papel de polícia do direito internacional. Desde 1964 (Chipre), as forças militares das Nações Unidas foram “reconvertidas” em funções consensualmente aceites pelas partes, de pacificação e mediação de conflitos no terreno, incluindo o policiamento de declarações de cessar-fogo, a criação de condições para a provisão de auxílio humanitário ou a supervisão de processos eleitorais.

Sem a constituição de uma autoridade efectiva para interpretar e aplicar legitimamente o direito internacional, a disponibilidade dos estados para cumprir as normas internacionais continua a depender essencialmente de considerações políticas. Como constata Cassese (1986: 17):

Muitos estados permanecem especialmente relutantes em aplicar tratados multilaterais que não se baseiem na reciprocidade, como os relativos aos direitos humanos, assim como (…) deveres que na prática incidam apenas sobre certas categorias de estados.

 

O modelo cosmopolita da Santa Aliança

Será que a Carta das Nações Unidas representa na verdade um desenvolvimento face ao Convénio da Sociedade das Nações? Será que ambas podem ser agrupadas dentro de um mesmo “modelo da Carta”, como propõe, entre outros, Cassese? Será, em suma, que convénio e carta representam aproximações a um novo modelo de ordem jurídica internacional, capaz de fazer respeitar alguns princípios básicos por todo o planeta?

A estas várias perguntas o politólogo, de origem croata, Danilo Zolo responde claramente que não, sustentando que a proibição do uso da força, inscrita no modelo da Carta, representa uma transformação “drástica” e mesmo subversiva em relação às limitadas restrições impostas pelo Convénio da Sociedade das Nações (Zolo, 1997: 111). Impor apenas restrições aos meios utilizáveis significa partir do princípio de que a guerra nunca poderá ser abolida; corresponde a estabelecer um consenso entre as partes sobre os procedimentos; implica ignorar o problema das “razões” de cada estado. De forma aparentemente paradoxal, é o reconhecimento do direito dos estados a fazerem guerra que possibilita o estabelecimento de normas que limitam os danos causados pela guerra.

Deste ponto de vista, o Convénio da Sociedade das Nações está em continuidade com o modelo de Vestefália. Foi o facto de, neste modelo, ter sido “abolida” qualquer autoridade moral única e superior no plano internacional que obrigou a prescindir da ideia de que uma guerra podia ser universalmente declarada como justa (e a outra parte “injusta”), e que assim permitiu a elaboração entre os estados de um conjunto de regras, estritamente procedimentais, destinadas a evitar as consequências mais danosas.

De facto, as restrições criadas pela Sociedade das Nações inspiram-se em disposições já previstas nos tratados de Vestefália. Estes previam um período de três anos entre o início de um conflito e o desencadear legítimo de uma guerra, sendo que, no caso de esta norma ser infringida, todos os estados teriam o dever de auxiliar aquele que fosse agredido. No Convénio da SN, a regra é a mesma, mas apenas de três meses.

Outras restrições ao uso da força — distinção entre alvos militares e civis, condições de tratamento de feridos e prisioneiros, etc. — foram objecto de consagração consuetudinária progressiva; não tiveram de esperar pelo Convénio da Sociedade das Nações para entrarem em vigor.

Portanto, para Zolo, a Carta das Nações Unidas não representa qualquer doutrina mais avançada de paz. Pelo contrário: “a Carta está exclusivamente empenhada em elaborar um mecanismo de concentração do poder militar nas mãos do Conselho de Segurança” (Zolo, 1997: 111). Proibir a guerra significa atribuir o direito exclusivo a fazê-la a um organismo com poder absoluto — “ilimitado, discricionário e incontrolável” (idem: 112).

Zolo sustenta também que a pretensa criação, pela Carta das Nações Unidas, de direitos e deveres universais deve ser encarada com desconfiança (idem: 120). O conceito de direitos fundamentais, na tradição política ocidental, onde nasceu, está estreitamente ligado a uma estrutura institucional assente na divisão de poderes: os direitos fundamentais são protegidos pela separação entre o judiciário e o executivo. Ora, o que caracteriza a ONU é exactamente a concentração de poderes. Na ausência de uma estrutura institucional que submeta as principais potências ao mesmo escrutínio a que são submetidos os restantes países, os direitos humanos são um mero pretexto para a intervenção indiscriminada dos membros permanentes do conselho na política dos outros estados. A lógica de Nuremberga e Tóquio alastra a todo o sistema jurídico internacional: “são os ‘vencedores’ e, em qualquer caso, as grandes potências que organizam estes tribunais” (Zolo, 1997: 111).

Para este autor, conceber a Carta das Nações Unidas como o embrião de um modelo constitucional global é um erro à luz do modelo histórico em que ela se inspira. Na sequência das várias guerras mundiais (entre as quais Zolo inclui também as guerras napoleónicas), as potências vencedoras têm invariavelmente aspirado à centralização da força, procurando manter a paz através do “congelamento” das relações de poder obtidas pela guerra.

De resto, qualquer centralização dos meios de violência no plano internacional só pode envolver, necessariamente, uma dependência face às principais potências, uma vez que não pode ser organizada contra a vontade dos estados mais fortes e é irrealista acreditar que o possa ser através do seu desarmamento voluntário. Assim, a organização internacional que formalmente centraliza os meios de violência é por definição uma entidade com poderes delegados pelas potências que, ao mesmo tempo, se colocam fora da sua jurisdição. O direito de veto de que gozam os membros permanentes do Conselho de Segurança não é um acidente histórico que seja reformável.1

Todas as versões do “modelo cosmopolita” acabaram, além do mais, por fracassar historicamente, e esse fracasso não se deve, no entender de Zolo (1997: 14), à incapacidade para estabelecer um monopólio suficiente do uso da força no plano internacional, mas à deficiência do próprio objectivo. A assimilação da paz à cristalização das relações de poder entre os estados impede a acomodação de qualquer transformação social e política relevante.

Ao mesmo tempo, como o modelo, por definição, não prevê quaisquer mecanismos para a resolução de conflitos entre as potências que partilham a gestão do sistema, a rivalidade entre os estados mais fortes tende a desembocar na preparação para a guerra. A existência de organizações internacionais formalmente destinadas a preservar a paz tem sido assim compatível com a proliferação maciça de armamento (cf. Zolo, 1997: 11), e as guerras que marcam a substituição de uma ordem hegemónica por outra tendem a ser cada vez mais destrutivas.

 

Conclusões

Neste texto comecei por traçar sumariamente a evolução do sistema interestatal desde a consagração do princípio da soberania. O princípio da soberania configura-se, a partir da assinatura dos tratados de Vestefália, como o elemento fulcral da ordem jurídica internacional: cada estado detém a autoridade última sobre o respectivo território e não existe qualquer entidade acima dos estados no plano internacional. Mas isto significa que o princípio da soberania não tem um conteúdo substantivo relativo à capacidade de cada estado para determinar autonomamente o seu próprio destino; a maioria dos estados não são aquilo a que habitualmente chamamos “soberanos”. A igualdade formal dos estados, no quadro do princípio da soberania, consubstancia uma desigualdade real entre eles: mesmo no plano estritamente militar, a soberania da maioria dos estados esteve sempre ameaçada pela possibilidade de uma intervenção dos estados mais fortes. Esta vulnerabilidade da maioria dos estados aos mais fortes tornou-se particularmente patente no séc. XX, com a invenção de meios de destruição total e, designadamente, da bomba atómica. O intervalo de tempo em que, em última análise, têm de ser tomadas decisões relativas a um conflito nuclear torna inviáveis quaisquer procedimentos clássicos de diplomacia entre estados; “a diplomacia é substituída pela gestão de crises e pela comunicação directa entre as lideranças políticas das superpotências e seus aliados” (McGrew, 1992: 113). Por outro lado, visto que as consequências destrutivas da bomba atómica ultrapassam fronteiras e podem comprometer a sobrevivência de toda a humanidade, a distinção entre beligerantes, aliados e estados neutrais tende a esbater-se: potencialmente ninguém fica à margem. Assim, a concentração do poder na ordem internacional ocorre independentemente do quadro jurídico e mesmo dentro do respeito formal do princípio da soberania.

Terminada a guerra fria, as zonas “periféricas” do sistema foram alvo de um relativo desinteresse por parte das grandes potências, o que veio pôr a nu a enorme dependência de muitos estados face aos apoios externos e a sua fragilidade interna — propiciando designadamente a emergência de um número crescente de guerras civis, hoje muito mais numerosas do que os conflitos entre estados. Mas a distinção entre desordens internas e ordem no plano internacional não deve ser exagerada. Na medida em que os estados mais fracos se revelam incapazes para gerir de forma “eficiente” recursos de alcance global (como o petróleo ou a água), as grandes potências mostram um interesse renovado em intervir na ordem interna destes estados. Estamos hoje perante a emergência de novas formas de intervenção — designadamente militar — dirigidas não tanto contra as capacidades militares dos estados mais fortes, mas sobretudo contra a “fraqueza” dos estados fracos. Como os problemas que lhe estão na origem são socialmente amplos, esta intervenção tende a ser extensiva.

A intervenção dos estados mais poderosos assenta sistematicamente em “duplos padrões” na aplicação das regras. Falk (1995: 75; 139) fornece vários exemplos: descarregamento de detritos tóxicos e realização de testes nucleares em locais supostamente “remotos” do sul do planeta; criminalização do tráfico de droga (cujas fontes de fornecimento se situam em países do sul), ao passo que o tráfico de armas (predominantemente produzidas no norte) permanece legítimo; etc. Na opinião deste autor, “o que se antevê é uma série de esforços no sentido de passar responsabilidades pelo ajustamento ambiental para o sul, e o avanço progressivo no sentido da aplicação coerciva no sul de medidas destinadas a evitar certas formas de colapso ecológico” (Idem: 75). Uma relação desigual deste tipo não poderá ser mantida sem o exercício frequente da força.

Uma forma de regulação da ordem internacional, exclusivamente assente no princípio da soberania, tem vindo a ser progressivamente substituída — ou, pelo menos, contraditada — pela emergência de princípios alternativos no direito internacional, que apontam para a constituição de uma autoridade comum, capaz de impor o respeito por princípios universais. O surgimento de entidades supra-estatais deste tipo pareceria permitir uma gestão global das relações sociais, particularmente consentânea com uma era em que as interconexões à escala do planeta atingem grande intensidade. Na perspectiva de alguns autores, o surgimento de entidades supra-estatais poderia também ter consequências muito positivas no sentido da democratização — na medida em que a influência exercida, sem legitimidade democrática, por uns estados sobre outros passaria a ser controlada por uma autoridade universal passível de ser legitimada directamente por todos os cidadãos do planeta.

Penso que há razões para ser céptico face a esta interpretação. Por um lado, porque todos os modelos que apontam no sentido da constituição de uma autoridade supra-estatal no plano internacional, ainda que promovidos em nome do interesse universal, têm sido, não apenas, conduzidos pelos estados mais poderosos, como tendem à institucionalização formal do seu predomínio. Assim, não apontam para a criação de uma estrutura de poder com a capacidade para criar, interpretar e aplicar legitimamente a lei de forma imparcial, tratando de forma igual todos os sujeitos (estados). Pelo contrário: resultando de relações de força muito desiguais, a estrutura institucional emergente tende a legitimar a desigualdade.

Por outro lado, não parece correcto associar a possibilidade de gerir relações sociais transnacionais com a criação de formas políticas supra-estatais. De facto, o princípio da soberania, criando uma ordem internacional assente na “separação” política do território por estados, emergiu num momento histórico em que as relações sociais estavam a globalizar-se já numa escala sem precedentes. O modelo de Vestefália configura uma forma específica de gerir as relações sociais à escala mundial; é uma resposta específica a esse problema. E em abstracto não parece ser nem mais nem menos eficaz, nem mais nem menos democrática, do que a criação de entidades supra-estatais.

Na verdade, mais do que uma ruptura, parece haver fortes continuidades entre a organização das relações de poder à escala mundial sustentada no princípio da soberania e a actual, em parte sustentada na superação do princípio da soberania. A superação da soberania não constitui um processo “natural”, a acomodação mais ou menos inevitável das formas políticas à globalização das relações sociais. A questão da soberania não pode ser vista fora do contexto específico em que é colocada. Quer as relações sociais, quer as relações físicas sempre atravessaram as fronteiras entre os estados do planeta.

A superação do princípio da soberania é defendida, para alguns aspectos, pelos mesmos grupos sociais que se lhe opõem noutros. De facto, não podemos compreender o carácter selectivo que a superação do princípio da soberania sempre tem se não tivermos consciência dos conflitos de interesses que lhe subjazem. Na verdade, tudo é globalizável. Mas, como diz Boaventura de Sousa Santos (1997: 14), sempre que algo se globaliza há outra coisa qualquer que é “localizada”, definida como não-global: assim, a globalização não é mais que “o processo pelo qual determinada condição ou entidade local estende a sua influência a todo o globo e, ao fazê-lo, desenvolve a capacidade de designar como local outra condição social ou entidade rival”. Não se pode compreender a globalização que efectivamente ocorre sem uma consciência dos interesses específicos que a promovem e dos que se lhe opõem. Dir-se-ia que a preservação do princípio da soberania parece hoje, sobretudo, servir o estabelecimento de fronteiras físicas entre ricos e pobres, tendo perdido qualquer conotação com uma capacidade substantiva das comunidades nacionais para gerirem o seu próprio destino.

Uma perspectiva de conjunto sobre a ordem internacional emergente dá-nos um quadro que pode ser adequadamente comparado ao apartheid. É o que sustenta, por exemplo, Thomas Schelling:

Se pensássemos numa “nova ordem mundial” que desse início ao desenvolvimento progressivo de um enquadramento constitucional dentro do qual todos os povos do planeta viessem a partilhar responsabilidades colectivas e obrigações recíprocas, de alguma forma análogas às que em geral caracterizam um estado-nação tradicional (…), que entidade política conhecida poderia servir-nos como base de comparação? A minha resposta é para mim próprio chocante e deprimente: a África do Sul. (…) Vivemos num mundo com um quinto de ricos e quatro quintos de pobres; os ricos estão segregados nos países ricos e os pobres nos países pobres; os ricos têm na sua maioria pele clara, ao passo que os pobres têm pele escura; os pobres habitam territórios fisicamente remotos, separados muitas vezes por oceanos, a enormes distâncias dos ricos. A migração em qualquer escala assinalável não é permitida e não existe qualquer forma sistemática de redistribuição do rendimento. (Schelling, 1992: 200, citado por Falk, 1995: 51-52).2

 

 

Nota

1 “Mesmo a forma mais liberal e democrática de ‘constitucionalismo mundial’ permanecerá uma pura ficção institucional na medida em que os órgãos de aplicação coerciva da ordem internacional coincidam com o aparelho militar de um pequeno número de potências, formalmente isentas de qualquer controlo jurisdicional graças ao seu poder esmagador nos planos económico e militar” (Zolo 1997: 121).

2 Sublinhados meus.

3 A investigação feita para este texto decorreu praticamente toda durante o ano de 1997. Há obras importantes nesta área entretanto publicadas que merecem, a meu ver, especial atenção. Apesar da epidemia de livros sobre “globalização” dados à estampa no mercado português no final dos anos 90, nenhuma das obras que aqui assinalo conheceu edição entre nós. O estudo mais completo, do ponto de vista teórico e empírico, sobre o processo de globalização em diversas áreas é David Held, Anthony McGrew, David Goldblatt e Jonathan Perraton (1999), Global Transformations: Politics, Economics and Culture, Cambridge, Polity Press. Um ensaio particularmente lúcido sobre o tema é: Zygmunt Bauman (1998), Globalization: The Human Consequences, Cambridge, Polity Press. Para uma crítica bastante arrasadora sobre as teorias da globalização, veja-se Justin Rosenberg (2000), The Follies of Globalization Theory: Polemical Essays, Londres, Verso. Embora não me refira a ele neste artigo, penso que também é altamente recomendável Steven Yearley (1996), Sociology, Environmentalism, Globalization: Reinventing the Globe, Londres, Sage. Do campo da teoria das relações internacionais, E. H. Carr (1946) (2.ª edição), The Twenty Years’ Crisis: An Introduction to International Relations, Londres, Macmillan e Hedley Bull (1977), The Anarchical Society: A Study of Order in World Politics, Londres, Macmillan, continuam a ser referências muito úteis na discussão de alguns dos temas aqui focados.

 

 

Referências bibliográficas3

Anderson, Benedict (1991), Imagined Communities: Reflections on the Origin and Spread of Nationalism, Londres, Verso (2.ª edição).         [ Links ]

Cassese, Antonio (1986), International Law in a Divided World, Oxford, Clarendon Press.         [ Links ]

Falk, Richard (1995), On Humane Governance: Toward a New Global Politics, Cambridge, Polity Press.         [ Links ]

Held, David (1995), Democracy and the Global Order, Cambridge, Polity Press.         [ Links ]

Hurrell, Andrew (1995), “International political theory and the global environment”, em Ken Booth e Steve Smith (orgs.), International Relations Theory Today, Cambridge, Polity Press.         [ Links ]

McGrew, Anthony (1992), “Military technology and the dynamics of global militarization”, em Anthony McGrew, Paul G. Lewis e outros, Global Politics, Cambridge, Polity Press.         [ Links ]

Miller, Lynn (1993), Global Order: Values and Power in International Relations, Oxford, Westview Press (3.ª edição).         [ Links ]

Santos, Boaventura de Sousa (1997), “Por uma concepção multicultural de direitos humanos”, Revista Crítica de Ciências Sociais, 48, pp. 11-32.         [ Links ]

Schelling, Thomas (1992), “The global dimension”, em Allison Graham e F. Treverton Gregory (orgs.), Rethinking America’s Security, Nova Iorque, Norton.         [ Links ]

Zolo, Danilo (1997), Cosmopolis, Cambridge, Polity Press.         [ Links ]

 

 

*Ivan Nunes. Licenciado em Sociologia pelo ISCTE. Docente da licenciatura em Relações Internacionais da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. E-mail: ivan@sonata.fe.uc.pt

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