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Sociologia, Problemas e Práticas

Print version ISSN 0873-6529

Sociologia, Problemas e Práticas  no.38 Oeiras May 2002

 

BECKER, GOFFMAN E A ANTROPOLOGIA NO BRASIL

Gilberto Velho*

Resumo O autor trata da influência das obras de E. Goffman e de Howard S. Becker sobre a ciência social brasileira, particularmente no desenvolvimento da antropologia urbana. Comenta a sua experiência e contatos com a Escola de Chicago, com destaque para esses dois sociólogos, cujas visitas ao Brasil narra. Menciona os seus trabalhos publicados por editoras brasileiras e salienta a sua repercussão. Aponta, também, para algumas diferenças nas duas obras, dentro da tradição interacionista.

Palavras-chave Interacionismo, antropologia urbana e desvio.

 

Abstract The author of this paper looks at the influence that the works of E. Goffman and Howard S. Becker have had on the social sciences in Brazil, particularly in terms of the development of urban anthropology. He comments on his experience and contacts with the Chicago School, especially Goffman and Becker themselves, whose visits to Brazil he recounts. He mentioned those of their works that have been published in Brazil and points out the repercussions they have had. He also notes a few differences between the two of them, albeit within the interactionist tradition.

Keywords Interactionism, urban anthropology, deviance.

 

Résumé L’auteur se penche sur l’influence des travaux de E. Goffman et de Howard S. Becker sur les sciences sociales brésiliennes, en particulier sur le développement de l’anthropologie urbaine. Il commente son expérience et ses contacts à l’École de Chicago, en mettant l’accent sur ces deux sociologues, dont il narre les visites au Brésil. Il cite leurs travaux publiés par des éditeurs brésiliens et souligne leur répercussion. Il met également en évidence quelques différences entre les deux oeuvres, selon l’approche de l’interaction.

Mots-clés Interaction, anthropologie urbaine, déviations.

 

Resúmene El autor trata de la influencia de las obras de E. Goffman y de Horward S. Becker sobre la ciencia social brasileña, sobre todo, el desarrollo de la antropología urbana. Comenta su experiencia y los contactos con la Escuela de Chicago, destacándose estos dos sociólogos y contando sus visitas a Brasil. Cita los trabajos publicados por editoras brasileñas y destaca su repercusión. Apunta también, algunas diferencias entre las dos obras, dentro de la tradición interaccionista.

Palabras-clave Interaccionismo, antropología urbana, desvío.

 

É necessário fazer comentários e observações de ordem pessoal neste trabalho pois, certamente, existe uma clara dimensão de relações interpessoais que explica, em parte, o assunto investigado. Embora trate-se de fenômeno mais generalizado e nada incomum, creio que será útil explicitar alguns fatos e circunstâncias, inevitavelmente ligados à minha trajetória profissional e pessoal.

Filhos de imigrantes judeus, de origem relativamente modesta, Goffman e Becker ascenderam socialmente, através do trabalho intelectual e da vida acadêmica, atingindo grande prestígio e notoriedade. Depois de inícios de carreira em que enfrentaram embaraços e dificuldades de diversas naturezas, Goffman, canadense, e Becker, de Chicago, construíram trajetórias profissionais brilhantes e tornaram-se figuras exponenciais de sua profissão nos Estados Unidos e internacionalmente. Estudantes e colegas do Departamento de Sociologia da Universidade de Chicago no final dos anos 40, começo dos anos 50, tomaram rumos diferenciados, embora mantivessem sempre algum contato.

Os trabalhos de Goffman começam a ser mais conhecidos no Brasil em meados dos anos 60. A ciências sociais no país tinham, na época, como referências principais o marxismo e o estruturalismo, com suas diferentes versões e facções. O nacionalismo antiimperialista e o próprio regime militar, com as radicalizações a ele associadas, não constituíam, propriamente, um estímulo à divulgação de autores norte-americanos, principalmente quando não ligados de modo nítido a uma preocupação de análise mais ampla de processos socio-históricos. Isso correspondeu a uma conjuntura especialmente polarizada, pois na própria formação das ciências sociais no país houvera influência de autores e pesquisadores como Donald Pierson, Emilio Willems, Charles Wagley, entre outros. Mas nos anos que se seguiram ao golpe de 1964, e mesmo no período imediato que o precedeu, houve uma forte tendência de rejeição à produção norte-americana, classificada de empiricista e pouco sofisticada. Uma exceção era C. Wright Mills, cuja obra, influenciada por Marx e Weber, apresentava forte componente crítico em relação à sociedade capitalista, particularmente aos próprios Estados Unidos (Mills, 1956).

No entanto, já mais perto do final da década de 60, o crescente interesse por uma análise e política do cotidiano permite uma abertura maior em relação a estudos classificados, às vezes de forma um tanto pejorativa, como “micro”. Essa mudança ocorre com a valorização de outros tipos de preocupação como, significativamente, a obra de Michel Foucault (1961). É época da contracultura, de maio de 1968, de estilos de vida alternativos. É dentro desse quadro que, sobretudo, antropólogos e profissionais da área psi passam a se interessar por Goffman. Embora com um certo atraso, começam a ser publicados alguns de seus textos. A Representação do Eu na Vida Cotidiana (1959, 1975),1 Manicômios, Prisões e Conventos (1961, 1974) e Estigma (1963, 1975) são lançados por editoras diferentes com boa receptividade. A Representação do Eu e Estigma foram publicados em coleções dirigidas por antropólogos, Roberto DaMatta e Castro Faria na editora Vozes, e por mim na Zahar. Nos anos 70, portanto, cresce, progressivamente, o interesse por Goffman, acompanhando de modo claro a aproximação entre antropólogos e a área psi (ver Duarte, 2000). A análise do cotidiano e das relações interpessoais, em uma perspectiva sócioantropológica, estimulou o desenvolvimento de trabalhos e investigações com preocupação interdisciplinar.

Em 1971, depois de ter concluído o meu mestrado no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) do Museu Nacional, fui, como special student, para o Departamento de Antropologia da Universidade do Texas, em Austin. Lá fiz seis cursos, entre os quais, um ministrado pelo Dr. Ira Buchler sobre “Etnografia dos hospitais psiquiátricos e prisões”. A minha dissertação de mestrado, posteriormente publicada, foi uma pesquisa sobre o bairro de Copacabana, em que já lidara com o livro Estigma de Goffman (Velho, 1973). Lera alguns outros textos dele. Mas foi nesse curso no Texas que tive a oportunidade de aprofundar e ampliar meu conhecimento não só sobre sua obra mas, em geral, sobre a tradição interacionista associada à Escola de Chicago e descobrir, particularmente, Howard S. Becker, que tornou-se uma referência fundamental para o meu trabalho posterior. O foco na problemática do desvio associada à labelling theory já tinha em Becker um dos seus principais expoentes, destacando-se o seu livro, hoje clássico, Outsiders (1963).

Ao voltar para o Brasil, em 1972, passei a lecionar no PPGAS do Museu Nacional, onde, entre outros empreendimentos, divulguei de modo mais sistemático a produção da tradição interacionista, com ênfase em Goffman e Becker. Em 1974, publiquei a coletânea Desvio e Divergência: Uma Crítica da Patologia Social, com artigos meus e de alunos de um curso sobre essa temática, onde os dois autores são centrais e recorrentes. Um dos meus textos era “Estigma e comportamento desviante em Copacabana”, publicado, primeiramente, na revista América Latina e, mais tarde, traduzido na Social Problems (Velho, 1978). Nele, busquei articular as perspectivas de Goffman e Becker em torno de parte de meu material de pesquisa que dera origem ao livro A Utopia Urbana. Na minha introdução a Desvio e Divergência, procurei estabelecer relações complementares entre a abordagem interacionista e autores da antropologia social britânica, como Evans-Pritchard e Mary Douglas, especificamente através da temática das acusações.

Nessa época, se Goffman já era razoavelmente conhecido no Brasil, o mesmo não se podia dizer de Becker. Há uma curiosa história na linha de uma reflexão sobre o acaso (ver Peirano, 1995) que vale à pena relembrar. O próprio Becker viria a comentá-la (Becker, 1998). Algum tempo depois da publicação de Desvio e Divergência, conheci um membro do staff da Fundação Ford no Rio de Janeiro, Richard Krasno, numa reunião social. Ele tinha lido o livro, gostara muito, contou-me ser amigo pessoal de Becker e pediu-me um exemplar para enviar-lhe. Assim foi feito, e estabeleceu-se uma ponte entre nós. Fiquei surpreso quando recebi, meses depois, carta de Becker com comentários e observações elogiosos a Desvio e Divergência. Conhecia espanhol e dedicara-se a estudar português para ler o livro e, depois, para ler outros trabalhos que lhe enviei. Mais tarde, aliás, ele publicaria uma estimulante resenha em Contemporary Sociology sobre Desvio e Divergência e sobre Garotas de Programa, de Maria Dulce Gaspar (Becker, 1986).

Foi, portanto, em 1976 que estabelecemos relações mais efetivas. No início do ano, recém-doutor, fui, como visiting-scholar, para o Departamento de Sociologia da Northwestern University em Evanston, Illinois, onde Becker lecionava. Ali fiquei durante um mês e meio, gozando as delícias do inverno da área de Chicago, além de dedicar-me a conhecer mais a Escola de Chicago, particularmente os trabalhos de Everett Hughes e Herbert Blumer, antigos professores de Becker e Goffman. A partir dessa estadia, fui me aproximando e amadurecendo meu conhecimento sobre estes autores e sobre a linhagem acadêmica a que pertenciam. Retomei minhas leituras de G. Simmel, referência original da dita linhagem e autor chave para todo o desenvolvimento do interacionismo, assim como de Thomas, Park, Mead, Wirth, etc. No segundo semestre de 1976, foi a vez de Becker vir ao Brasil como professor-visitante no Museu Nacional, consolidando o nosso intercâmbio individual e institucional. Deu um curso junto comigo e proferiu conferências no Museu Nacional, no Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, nas Universidades de Brasília, São Paulo e Campinas. Conversou com professores e alunos, travou contato mais diversificado com a ciência social brasileira, devorando livros e artigos. A partir daí, até hoje mantém contato regular comigo e com outros colegas brasileiros. Veio ao Brasil mais duas vezes em 1978 e 1990. Recebeu alunos nossos que orientou em doutorado completo ou em “bolsa-sanduíche”. Divulgou nos Estados Unidos trabalhos de autores brasileiros, como Antonio Candido de Mello e Souza, cuja obra despertou-lhe grande interesse e admiração, inclusive, traduzindo e publicando uma coletânea de textos seus (Becker, 1998 e Candido, 1995). Em 1992, publicou na revista Sociological Theory um simpósio com textos de autores brasileiros onde valorizava, com ênfase, a ciência social do nosso país.

Além dos trabalhos sobre desvio, outras vertentes da obra de Becker estimularam a sua interlocução com cientistas sociais brasileiros. Seus textos sobre arte, fotografia, ocupações e trabalho de campo despertaram grande atenção. Tive oportunidade de apresentar duas coletâneas suas no Brasil — Uma Teoria da Ação Coletiva e Métodos de Pesquisa em Ciências Sociais, publicados respectivamente pela Zahar em 1977 e pela Hucitec em 1993.

Sua segunda visita foi em outubro de 1978, por ocasião do I Simpósio Internacional de Psicanálise, Grupos e Instituições, realizado no Copacabana Palace. Alguns meses antes, eu fora procurado por um dos organizadores do simpósio, Luis Fernando de Mello Campos, a quem já conhecia através de meu diálogo com a área psi e, especificamente, de Sérvulo Figueira (ver Duarte, 2000). Convidava-me a participar e pediu que ajudasse na intermediação do convite para que Becker e Goffman viessem. O primeiro não só logo aceitou o nosso convite como foi intermediário junto a Goffman, de quem fora colega como estudante no Departamento de Sociologia da Universidade de Chicago e a quem tinha acesso direto. Os dois já eram, provavelmente, os sociólogos mais conhecidos de um grupo particularmente brilhante que incluía, entre outros, Anselm Strauss, Eliott Freidson, Tomatsu Shibutani, William Kornhanseur. Em 1978, Goffman estava no auge de sua carreira, com 56 anos. Becker, embora contemporâneo seu, era mais moço, nascido em 1928. Quatro anos depois, em 1982, Goffman viria a falecer. Portanto, a sua estadia de quatro ou cinco dias, em 1978, no Rio de Janeiro, foi a única ocasião em que esteve no Brasil. Estava no auge da fama e era conhecido por ser pessoa excêntrica, difícil e imprevisível. Provavelmente não teria vindo se não fosse o interesse que Becker lhe despertou sobre o Brasil e o Rio, assim como a certeza da companhia de um velho amigo e colega. O simpósio foi um grande evento, com a presença de várias estrelas. Além dos dois amigos, vieram Franco Basaglia, Robert Castel, Thomas Szasz e diversos psicanalistas de variadas orientações. Veio também Shere Hite que publicara, recentemente, um livro feminista de denúncia que se tornara best-seller internacional: o Relatório Hite. Entre palestras, refeições e festas foram dias muito animados e curiosos. Goffman proferiu uma brilhante conferência que interrompeu ao ser fotografado por uma estudante na platéia. Não tolerava ser fotografado sem autorizar previamente. Afirmou que tratava-se de uma invasão de privacidade. Foi preciso a ajuda de Becker para que ele retomasse e levasse ao final a conferência que, juntando tudo, foi um enorme sucesso. Falou sobre performances, frames, teoria dos jogos e interação. Participou também comigo e com Becker de uma mesa-redonda que versou sobre psicanálise e ciências sociais. Becker, em sua segunda visita, já conhecia muitas pessoas, falava razoavelmente o português, impressionando muito o seu colega de Chicago. Em geral, Goffman foi cordial, embora confirmasse, como na conferência, uma imagem de pessoa um tanto excêntrica. Preocupava-se sempre em manter-se atualizado com a bolsa de Nova Iorque, através do sistema de comunicação do hotel. Declarou-se impressionado com o gestual dos brasileiros que comparou com o dos italianos. Preocupava-se com etiqueta e “rituais de interação” para não cometer gafes e impropriedades. Implicou com Shere Hite que despertava grande interesse da mídia. Sua passagem foi rápida, saindo antes do final do simpósio mas deixando uma forte impressão como intelectual e personagem. A relação entre ele e Becker era de proximidade mas mantendo estilos bem distintos. Enquanto Goffman fazia, claramente, o gênero difícil e excêntrico, Becker era afável e acessível, embora, às vezes, se irritasse um pouco com as bizarrices do colega. Foi, sem dúvida, uma situação das mais interessantes, sob o ponto de vista interdisciplinar, pois além dos profissionais da área psi, participaram do simpósio como expositores ou assistentes vários cientistas sociais brasileiros, assim como estudantes.

A presença de Goffman e Becker valorizou a contribuição da ciência social norte-americana para a temática indivíduo e sociedade, através da Escola de Chicago e, especificamente da linha interacionista. Ambos não viam como barreiras os limites acadêmicos entre sociologia e antropologia. Atravessavam-nos e consideravam-nos desnecessários ou até como fonte de mal-entendidos. Convém lembrar que na Universidade de Chicago, durante quase 40 anos, até 1929, havia um único departamento com antropólogos e sociólogos. Autores como Park, Thomas e Hughes lidaram com as bibliografias de sociedades tribais, tradicionais, assim como modernas, urbanas (ver Velho, 1999). Becker e Goffman foram alunos de Lloyd Warner, antropólogo que estudou sociedades tribais e a moderna sociedade norte-americana (Warner, 1964 e 1968) e que, inclusive, orientou Goffman. Becker era mais ligado a Hughes, que realizara um estudo de comunidade no Canadá francês e se dedicava a pesquisas sobre ocupações e relações raciais. A par de diferenças de estilo e ênfase, todos valorizavam pesquisa e trabalho de campo. O contato e o diálogo com Hughes foram, reconhecidamente, muito importantes para a formação dos dois colegas.

Goffman realizou duas pesquisas básicas que informaram toda a sua carreira, nas ilhas Shetland e num hospital psiquiátrico. Becker trabalhou com estudantes de medicina, com usuários de drogas, com músicos de jazz, entre outros. Fizeram entrevistas e observação direta, além de pesquisas bibliográficas. Uma das últimas posições que Goffman ocupou foi de professor de antropologia e sociologia na Universidade da Pennsilvania. Sua carreira foi menor no tempo, morrendo aos 60 anos. Becker continua ativo e produtivo aos 73, embora já não lecione mais regularmente, o que fazia há pouco tempo. Faz conferências e palestras, viajando freqüentemente para a França, onde os seus trabalhos, como os de Goffman e da Escola de Chicago, em geral, têm sido mais valorizados nos últimos 20 anos, depois de muito tempo de desconhecimento e relativa indiferença. Becker, tanto na Northwestern, onde trabalhou durante longo tempo, como na Universidade de Washington, em Seattle, recebeu, como já foi mencionado, alunos brasileiros e manteve intercâmbio permanente com o Brasil, por cartas, telefone e, nos últimos anos, e-mail. Sua última visita foi em 1990, quando demos juntos um curso de “Sociologia da arte” no Museu Nacional, onde proferiu memorável conferência sobre a Escola de Chicago (Becker, 1996). Deu entrevistas para as revistas Ciência Hoje e Estudos Históricos, falando de sua carreira, obra e de seus mestres e colegas, explorando o seu modo de ver e fazer sociologia.

Becker e Goffman são hoje autores fundamentais dentro da antropologia que se faz no Brasil, particularmente nos trabalhos voltados para os estudos urbanos e para a temática ampla de indivíduo e sociedade. No entanto, são citados em trabalhos das mais variadas naturezas que, de algum modo, se aproximam ou dialogam com o interacionismo e, mais particularmente, que se referem à singularidade da contribuição de cada um deles. Em se tratando de trabalho de campo, as pesquisas de Becker com músicos do jazz e com usuários de maconha, e a de Goffman em hospital psiquiátrico, com suas reflexões sobre instituições totais, são referências constantes. As observações de Becker sobre o trabalho do pesquisador, aspectos científicos e éticos, são citadas com grande freqüência. A discussão sobre outsiders, desvio e rotulação em Becker e o tema do estigma em Goffman são instrumentos estratégicos da literatura sobre desvio, divergência e acusações. Ambos são herdeiros de uma rica tradição. A idéia de uma ação coletiva (doing things together) é chave na obra de Becker, seja estudando desvio, seja estudando arte, retomando Park e Hughes, entre outros. A reflexão de Goffman sobre interação tem explícitas raízes em Simmel, Mead e Thomas. Deste, a noção de definição de situação constitui-se em âncora para todo o desenvolvimento das idéias goffmanianas. Já ficou evidente que as diferenças entre os dois, em termos de interesses e estilos, só enriquecem as ciências sociais. Correndo o risco de ser esquemático, diria que Becker focaliza com insistência a construção e o desempenho, propriamente dito, da ação coletiva, através da interação entre indivíduos, enquanto Goffman centra suas preocupações no próprio processo de definição de situação e construção da própria interação. Assim faz o que Isaac Joseph define como microssociologia, aí sem nenhuma conotação pejorativa, mas como um dimensionamento da preocupação com as interações interpessoais, com suas regras, negociação, desencontros, reformulações ou, em geral, com a análise de situações (Joseph, 1998). Os rituais e estratégias de interação, nessa perspectiva, são preciosos elementos para a compreensão de processos de construção social de realidade, nos termos de A. Schutz, autor com cuja obra Goffman dialogou, especialmente em Frame Analysis (1974). Na realidade, a sua relação com a fenomenologia já vinha desde seu tempo de estudante, quando entrara em contato com a obra de Ichheiser (1949/50), juntamente com outros colegas seus. Estabelece, portanto, estimulante diálogo entre o interacionismo e a fenomenologia, preocupação que também tem sido central para o meu trabalho e de ex-alunos e colegas que lidam com a problemática das sociedades complexas, há mais de 20 anos. Vale acentuar que Simmel, por sua vez, tem sido determinante influência na antropologia urbana que fazemos, como já fora em Chicago desde o final do século XIX. Ao estabelecer pontes entre Simmel e Schutz, temos assim encontrado forte estímulo em algumas reflexões de Goffman que, de algum modo, liga-se também a uma sociologia do conhecimento.

Becker, por sua vez, com seu trabalho sobre arte, reforçou mais ainda seu diálogo com antropólogos brasileiros que pesquisam a relação artística sob os mais diversos aspectos sociológicos e culturais, retomando questões clássicas de Simmel (1964, 1971 e 1988), inovando a temática e os métodos da sociologia da arte (Becker, 1982).

Ambos os autores desenvolveram obras ricas, mudando ênfases, focos e preocupações ao longo de suas carreiras. Há fases de grande proximidade nas suas abordagens. Em outras, há distanciamentos em função de experiências particulares e preferências pessoais.

Goffman começou estudando química, trabalhou com cinema documentário e foi ser cientista social (ver Winkin, 1988). Becker foi pianista profissional de jazz e, depois de hesitar, assumiu a sociologia como profissão (ver Becker, 1977).

Os dois sempre foram heterodoxos em seus gostos e opções, não se enquadrando em rígidos modelos acadêmicos e existenciais. Suas obras expressam essa riqueza de experiência e curiosidade intelectuais. As muitas frentes que abriram e perguntas que fizeram foram incorporadas em boa parte da ciência social brasileira, particularmente nos trabalhos dos antropólogos que lidam com a sociedade moderno-contemporânea. O estudo da própria sociedade, trilha percorrida por alguns dos pioneiros da Escola de Chicago, é retomado no Brasil com novas questões e outras configurações teóricas. O trabalho de campo e a pesquisa em geral têm, certamente, em Becker e Goffman poderosas inspirações.

Notas

1 A primeira data entre parênteses corresponde à publicação original e a segunda, à primeira edição em português.

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* Gilberto Velho. Professor Titular de Antropologia Social. Museu Nacional/UFRJ. Quinta da Boa Vista, s/n, Rio de Janeiro, RJ 20940-040, Brasil. Tel. (21) 568-9642,
fax (21) 568-9642 ramal: 228. E-mail: gvelho@alternex.com.br

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