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Sociologia, Problemas e Práticas

versão impressa ISSN 0873-6529

Sociologia, Problemas e Práticas  n.59 Oeiras jan. 2009

 

Microestudo sociológico de um centro novas oportunidades

João Freire*

 

 

Resumo

Este artigo analisa um Centro Novas Oportunidades, de natureza associativa, situado na província. Num primeiro tempo, relembra-se a origem deste programa e precisa-se o quadro local onde o estudo foi realizado. Depois, desenvolve-se a análise das práticas e representações dos adultos e dos técnicos acerca do programa. Finalmente, ensaiam-se algumas reflexões sobre as orientações, os objectivos e os métodos utilizados.

Palavras-chave dinamismo local, profissionalismo envolvente, liderança forte e participativa.

 

Abstract

Sociological micro-study of a New Opportunities Centre

This article analyses a particular New Opportunities Centre in the provinces, one that organises its activities on an association basis. At the beginning, the text recalls the origin of this programme and details the local framework in which the study was carried out. It then makes an analysis of the practices and representations of the adults and specialised staff connected with the programme. Finally, it seeks to offer a number of reflections on the orientation, goals and methods used.

Key-words local dynamism, engaged professionalism, strong and participating leadership.

 

Résumé

Micro-étude sociologique d’un Centro Novas Oportunidades

Cet article analyse un Centro Novas Oportunidades, de type associatif, situé en province. Dans un premier temps, on rappelle l’origine de ce programme et l’on precise la cadre local où l’étude a été réalisée. Ensuite, l’on développe l’analyse des pratiques et représentations des adultes et des techniciens sur le programme. Enfin, on essaie quelques reflexions sur les orientations, les objectifs et les méthodes utilisées.

Mots-clés dinamisme local, professionnalisme engagé, leadership fort et participatif.

 

Resumen

Micro-estudio sociológico de un Centro Novas Oportunidades

Este artículo analiza un Centro Novas Oportunidades, de naturaleza asociativa, situado en la provincia. En primer lugar, se revisa el origen de este programa y se describe el entorno local donde el estudio fue realizado. Después, se lleva a cabo el análisis de las prácticas y representaciones de los adultos y de los técnicos acerca del programa. Finalmente, se proponen algunas reflexiones sobre las orientaciones, los objetivos y los métodos utilizados.

Palabras-llave dinamismo local, profesionalismo envolvente, liderazgo fuerte y participativo.

 

 

Apresentação

O processo, em curso, de reconhecimento e certificação de competências adquiridas informalmente ao longo da vida e o programa governamental Novas Oportunidades têm suscitado reacções controversas na opinião pública e também no seio de alguns círculos de especialistas mais qualificados.

Tendo surgido de uma oportunidade fortuita que pôde ser aproveitada, o presente trabalho pretende ser um microestudo que, analisando ponderadamente um caso pontual de concretização daqueles processos, possa ajudar a uma melhor compreensão dos mesmos e, eventualmente, ao aprofundamento de algumas questões críticas que resultem numa melhoria da sua aplicação prática e dos seus resultados.

Nestes termos, o que vai seguir-se é um “relatório” analítico de um Centro Novas Oportunidades localizado na província, que o autor teve a possibilidade de acompanhar durante alguns meses na qualidade de “consultor”,1 entre finais de 2007 e meados de 2008. O estudo foi decidido por iniciativa própria, com conhecimento do pessoal técnico da instituição e sem qualquer destinatário encomendador. Foi, em primeira mão, entregue àqueles técnicos, para que o discutissem e dele retirassem o que melhor lhes servisse, e é agora publicado por se julgar poder eventualmente interessar públicos mais alargados.

Metodologicamente, trata-se de um estudo de caso. As fontes de informação foram documentais (um acervo de papéis, os mais importantes dos quais figuram na bibliografia final) e um “trabalho de campo” algo intermitente, consistindo numa “observação participante” realizada ao longo daqueles meses — de facto, uma percepção visual-compreensiva dos locais, actores e processos (participação do autor em reuniões mensais das equipas técnicas, conversas informais, actos públicos formais, etc.) — e num conjunto de entrevistas semidirectivas. Desejando manter-se o sigilo sobre a identidade do objecto de estudo e dos “interlocutores privilegiados”, denominamos os técnicos/as entrevistados/as pelos nomes fictícios de “Sónia”, “Andreia”, “Leocádia”, “Zulmira” e “Isolda”, e os adultos/formandos pelos nomes de “Antónia”, “Beatriz”, “Carlos” e “Dália”.

A todos os membros da “Bagatela” — nome também fictício pelo qual designámos o centro estudado — deixamos o nosso agradecimento pela colaboração prestada a este nosso intento e os votos dos melhores sucessos para o futuro.

A organização e o quadro local

Os instrumentos de uma política

A Iniciativa Novas Oportunidades (NO) foi lançada pelo governo chefiado por José Sócrates, constituído após a vitória com maioria absoluta do Partido Socialista nas eleições legislativas de Março de 2005.

Com a criação em 2007 de uma nova instituição central de controlo e coordenação de todo o processo — a Agência Nacional para a Qualificação (ANQ) —, o programa integrou parte do dispositivo regulamentar anterior existente no campo da educação de adultos, em particular o processo de reconhecimento, validação e certificação de competências (RVCC), destinado a equiparar formalmente as capacidades eventualmente adquiridas pelos indivíduos ao longo da sua vida (profissional, familiar, social, etc.) às qualificações académicas concedidas pelo sistema formal de ensino, nos níveis básico e secundário. Outra área de intervenção importante, prosseguida desde cerca de 2001 e agora também integrada no mesmo dispositivo, é a dos cursos de educação e formação de adultos (EFA, para maiores de 23 anos) e dos cursos de educação e formação (CEF, para jovens dos 15 aos 25 anos), destinados principalmente a formar e a atribuir um grau de qualificação profissional — dentro do quadro sancionado pela União Europeia (UE) — numa determinada especialidade técnica.

Por outro lado, tentando superar um obstáculo bem conhecido de há décadas, procurou-se articular institucionalmente estes programas de qualificação (e requalificação) dos portugueses adultos (geralmente já inseridos na vida activa) submetendo-os à dupla tutela dos Ministérios da Educação e do Trabalho.2

Além disso, o dispositivo operacional desta nova tentativa de formação de adultos estabeleceu-se debaixo da concepção de mais uma modalidade de “parceria público-privada”, que tem caracterizado a evolução das políticas estatais dos últimos anos em diversos países, incluindo Portugal. Deste modo, a rede territorial de instituições onde têm lugar os processos de RVCC e outros agora integrados neste programa é constituída por uma pluralidade de entidades autónomas (escolas públicas e profissionais, centros de formação profissional, autarquias, associações, empresas, etc.) certificadas pela ANQ sob a designação de Centros Novas Oportunidades (CNO). Segundo informação oficial do programa, em finais de 2007 existiam 269 CNO no Continente e R.A. da Madeira, estando neles inscritos cerca de 350 mil indivíduos adultos (maiores de 18 anos de idade), dos quais 200 mil no nível básico e 150 mil no secundário.3 Desde 2001, ano em que se iniciaram estes processos (RVCC e EFA), terão já sido certificados cerca de 143 mil indivíduos.4

Os documentos estruturadores e operativos da doutrina e da estratégica pedagógica em que assenta o RVCC são, sobretudo, os seguintes:

- referencial de competências-chave para o nível básico;5

- referencial de competências-chave para o nível secundário;6

- catálogo nacional de qualificações;

- carta de qualidade dos CNO.

 

Segundo aquele primeiro documento, o conteúdo das “competências” (isto é, conhecimentos exigidos e atitudes desejáveis) correspondentes ao ensino básico distribui-se por quatro áreas: linguagem e comunicação; tecnologias da informação e comunicação; matemática para a vida; e cidadania e empregabilidade, perfazendo um volume de 200 a 600 horas de “trabalho escolar”. Para o ensino secundário, as áreas são três: cultura, língua e comunicação; sociedade, tecnologia e ciência; e cidadania e profissionalidade; com um total de 88 créditos e um volume de trabalho de 530 a 1060 horas, havendo necessidade de cumprir 44 créditos para o grau ser validado.

A pedagogia é activa, mais assente num conceito de auto-aprendizagem apoiada do que em ensino, individualizada mas aproveitando algumas dinâmicas grupais, e estruturada em torno da construção, reflectida e enriquecida pelo conhecimento, de uma história de vida autobiográfica intitulada portefólio reflexivo de aprendizagem (PRA) que, no final do processo, é discutida perante um júri de validação que inclui um avaliador externo.

Este processo — que não tem uma duração fixa, outrossim depende da capacidade e ritmo de progressão demonstrado pelo adulto — desenvolve-se ao longo de uma série de etapas, a saber: o acolhimento, o diagnóstico/triagem e o encaminhamento (conduzidos por profissionais e técnicos superiores de RVCC); depois, em alternativa, o adulto pode prosseguir o processo de RVCC, entrando na fase de reconhecimento das suas competências e de aquisição da formação complementar considerada necessária (com intervenção do profissional de RVCC e de formadores, eventualmente externos) concluindo com a “ida a júri”, ou então ser dirigido para outras ofertas educativas e formativas disponíveis para os sujeitos maiores de 18 anos (que incluem agora uma vasta gama de possibilidades: cursos EFA, cursos profissionais, CET, CEF, ensino recorrente, vias alternativas de conclusão do secundário); em todos os casos, o processo deve terminar pela certificação da qualificação obtida pelo adulto, de carácter escolar e/ou profissional.

A Carta de Qualidade dos CNO7 foi concebida como um instrumento, essencial, para a avaliação externa dos centros, para o seu acompanhamento e monitorização pela ANQ, e para constituir um referencial para o financiamento público.

O controlo administrativo destes processos é assegurado pela normalização dos formulários e outros procedimentos de candidatura, pela apresentação de relatórios anuais e por meios informáticos, nomeadamente o Sistema de Informação e Gestão da Oferta Educativa e Formativa (SIGO).

O financiamento e respectivo controlo financeiro seguem os procedimentos oficialmente estabelecidos pelo estado, envolvendo a mobilização de fundos europeus, em particular os “quadros de apoio septenais” extraordinários.

Um centro de dinamismo local

O estudo de caso desenvolveu-se num CNO de natureza associativa, situado numa vila da Região Centro de Portugal, mais adossada ao litoral do que ao interior e próxima de importantes vias de comunicação Norte-Sul.

A povoação é antiga, com profundas influências católicas e um típico padrão económico empresarial-industrial, que já suscitou estudos académicos recentes sobre essa específica sociocultura local, favorável ao trabalho e à empresarialidade. Ecologicamente, encontra-se inserida num meio natural onde predominam as formações geológicas calcárias, a montanha e as planícies onduladas, com um clima marítimo; por virtude da acção humana, subsistem as florestas e alguma actividade agrícola, pecuária e extractiva, um tecido empresarial de pequenas e médias unidades industriais de “mão-de-obra intensiva”,8 uma rede já significativa de instituições educativas9 e um povoamento disperso com bons núcleos populacionais modernizados (no património edificado e nos equipamentos comerciais e colectivos) e algumas pequenas cidades com vida própria.

O CNO em estudo constitui uma (e a mais recente) das valências da actividade desenvolvida por uma associação de direito privado sem fins lucrativos a que aqui atribuímos o nome fictício de “Bagatela”, fundada em 1982 com o complemento denominativo de Associação Juvenil de Cultura e Solidariedade Social (AJCSS), e que veio a ser reconhecida pelo Instituto Português da Juventude como “associação juvenil” (em 1997), pela Direcção-Geral do Emprego e das Relações de Trabalho como “entidade formadora credenciada” em 1997 e, finalmente, como CNO pela ANQ em 2006. São estas instituições públicas que, no essencial, através de diversos programas, constituem as fontes de financiamento da associação. Além disto, esta tem protocolos de colaboração estabelecidos desde há longos anos com a Câmara Municipal e a Junta de Freguesia em que se integra, com a Associação de Desenvolvimento Empresarial local, com o Agrupamento de Escolas, a Associação dos Bombeiros Voluntários e muitas outras entidades locais, colaborações estas que viabilizam a utilização graciosa de instalações, a circulação de informação e outras pequenas ajudas pontuais.

As principais valências de actuação da associação são:

- o ATL (Actividades de Tempos Livres), para crianças e jovens, que funciona no espaço e edifício próprios da associação (também sua sede social);

- a ATF (Academia de Trabalho e Formação), que promove essencialmente acções de formação profissional, geralmente realizadas na sede e em instalações da Associação de Desenvolvimento Empresarial da Benedita;

- e o Projecto Percursos Alternativos, integrado no Programa Escolhas — 2.ª Geração, em vigor desde 2004 e com duração prevista até 2009, que se destina prioritariamente a crianças e jovens entre os 6 e os 18 anos oriundos de contextos socioeconómicos desfavorecidos e problemáticos.

O programa abrange ainda, a título extraordinário, jovens com idades compreendidas entre os 19 e os 24 anos, famílias e outros elementos da comunidade, como professores, auxiliares educativos, etc.10 Este projecto (aqui desenvolvido nas suas quatro medidas11) permitiu ampliar consideravelmente o impacto local das actividades da associação, atingindo cerca de 200 adultos e de 1300 crianças e jovens. Destes, uma centena eram casos de insucesso escolar, 60 estavam identificados na escola como casos de “necessidades educativas especiais” (NEE) e 160 como tendo “problemas familiares”, num contexto local considerado como marcado por situações de “negligência familiar” e jovens sujeitos a “ambientes de risco e comportamentos desviantes”, com consumos nefastos de “álcool, tabaco e drogas ilícitas”, geralmente associados a “casos de abandono e insucesso escolar”.12 As principais actividades desenvolvidas pela associação no âmbito deste projecto incluem: o “Espaço Encontro”, localizado no centro da vila (em edifício público), com diversos usos e finalidades; o Centro de Inclusão Digital (CID), com equipamento informático e frequentado por cerca de mil pessoas/ano (e 40 formandos certificados em diversas competências em TIC); o Jornal Jovem, de publicação trimestral; o apoio social (a imigrantes estrangeiros); a mediação familiar e a formação parental (apoio psicossocial a famílias em dificuldade); as “oficinas do empreendedorismo” e o projecto “Erva Daninha” (quinta agro-bio-turístico-ecológica, também com tarefas como a limpeza de matas, protocolizada com a Associação de Produtores Florestais), sobretudo destinados a adolescentes; e ainda outras, como o “grupo de Hip-Hop”, as sessões de cinema, as visitas e intercâmbios, etc.

De entre as ideias de novas valências em fase de preparação ou incubação devem citar-se a da creche (que implica obras construtivas de vulto no espaço sede da associação, já com projecto de arquitectura aprovado) e a de uma Cooperativa de Estudos e Intervenção em Projectos Sócio-Económicos (CEIPSO), de “ciência-intensiva”, capaz de se emparceirar com entidades qualificadas (e de âmbito nacional) de investigação e desenvolvimento.

A associação dispõe, como seu principal “activo”, de uma equipa técnico-pedagógica muito qualificada, constituída por uma vintena de colaboradores, quase todos mulheres com menos de 30 anos de idade, todas residentes na zona (e a maior parte dela naturais) mas não necessariamente no concelho, licenciadas em várias áreas científicas, sobretudo nos domínios da educação e das ciências sociais e humanas. Este manancial — porque se verificam também algumas saídas — é alimentado por um recrutamento selectivo num “nicho social” bem qualificado, sobretudo mediante a escolha judiciosa de alguns dos estagiários (de diverso tipo, sobretudo recém-licenciados) generosamente acolhidos pela “Bagatela” e que constituem mais um volante de “mão-de-obra” com que a associação conta para a execução de todos os seus projectos e actividades.

Embora a zona seja favorável à existência de um tecido associativo popular com alguma tradição e dinamismo, a associação “Bagatela” constitui provavelmente o caso mais relevante existente na freguesia (e mesmo no concelho e outras áreas limítrofes) de iniciativa particular virada para a intervenção social, sem intuitos lucrativos, políticos ou religiosos.

Análise dos recursos disponíveis

Já dissemos acima que estamos perante uma associação de pessoas, de direito privado, isto é, que se baseia, à partida, no voluntariado e no contributo que os seus membros lhe queiram prestar. No entanto, como acontece hoje num número crescente de casos, parece tratar-se de uma associação “que não precisa de sócios”;13 de facto, a angariação de novos associados não surge como uma preocupação dos seus responsáveis (ao contrário do que é habitual no associativismo popular), os recursos financeiros que permitem o desenvolvimento das actividades provêm principalmente de outras fontes que não da quotização dos membros e o funcionamento dos órgãos sociais estatutários restringir-se-á ao cumprimento dos actos formais indispensáveis e à tomada de grandes decisões estratégicas para a sobrevivência da associação (bem diferente das reuniões de rotina que imperam geralmente nestas instituições).

O número de associados terá variado ao longo dos anos, cifrando-se agora em cerca de 400, mas nas assembleias gerais é habitual comparecerem apenas 20, embora quase todos tenham em dia o pagamento das suas quotizações administrativas. De notar a particularidade de todos os colaboradores remunerados das actividades da “Bagatela” serem convidados e aceitarem ser membros da associação (alguns deles integrando mesmo os órgãos sociais e a direcção), facto que, visto do exterior, poderá levantar dúvidas quanto ao grau de sincero envolvimento ou, pelo contrário, de constrangimento ou coacção, que levará os colaboradores (de vínculo ainda frágil, p. ex. período experimental do contrato de trabalho) a essa adesão — o que não parece ser o caso.

Também se constata que as reuniões da direcção são escassas e sem periodicidade regular (menos de uma vez por mês), apenas quando há assuntos importantes a decidir, e que um dos seus membros se mantém oficialmente em funções apesar de há mais de dois anos estar profissionalmente desligado da “Bagatela” e a residir a mais de cem quilómetros de distância, não podendo por isso participar na generalidade das reuniões do órgão.

Em contraste com estes entorses ou anomalias do funcionamento formal da vida associativa, a “Bagatela” revela-se e caracteriza-se por uma cultura organizacional de grande envolvimento, participação e responsabilidade. Quem se envolve?, quem participa? e quem assume responsabilidades? São os elementos activos desta instituição, a saber, os colaboradores remunerados (alguns dos quais são também titulares de cargos formais da associação), o líder/animador desta entidade e mais alguns (poucos) voluntários benévolos.

Estas características da cultura interna da “Bagatela” podem ser registadas por um observador atento e preparado, mesmo exterior à instituição. Mas são também confirmadas pela generalidade dos colaboradores remunerados: por exemplo, “Sónia” considera que “o maior desafio é o grande grau de exigência, sempre a melhorar” e que “é decisiva a entrega, o envolvimento”; “Andreia” pensa que “é crucial o clima existente”e que “o envolvimento das pessoas é o aspecto mais significativo e importante, e só isso permite superar as dificuldades dos atrasos nos salários”; e “Leocádia” acha que “o amor-à-camisola e a juventude da equipa explicam o clima de envolvimento reinante”e também opina que “as reuniões de equipa são fundamentais”.14 É também esta última, profissional de RVCC, quem refere que a disponibilidade para os horários praticados (pela maior parte dos técnicos, das 14h às 23h) é facilitada pelo facto de quase todas não terem ainda filhos. Por outro lado, a itinerância exigida pelo acompanhamento dos grupos de adultos fora da sede da freguesia torna quase indispensável a posse de um automóvel: “a carta de condução é uma condição para a admissão”— dizem-nos.

É compreensível, nestas condições, que alguns abandonem a associação e o projecto. Segundo o relatório de actividades da “Bagatela” de 2007, três dos técnicos do RVCC do ensino básico abandonaram a equipa.15 Mas também estes parecem levar uma marca impressiva positiva da experiência: “Zico”, que coordenou o projecto “Escolhas” durante vários anos, afirma em entrevista jornalística que sai “porque estava também um pouco cansado das minhas funções. Como sabes, a coordenação de um projecto destes é bastante desgastante e exige uma motivação total, a toda a hora”, concluindo que leva lembranças “positivas, muitas; e alguns cabelos brancos precoces, também”.16 A própria presidente da associação nos afirmou em tom irónico que quem não gosta ou não aguenta afasta-se: por exemplo, os homens…

Registe-se que os momentos de reunião (sentados à volta de uma mesa), discussão e deliberação (sob a forma de uma orientação consensualizada, a ser posteriormente operacionalizada por um grupo mais restrito ou por um responsável) parecem ser instrumentos de trabalho colectivo fundamentais das equipas de activos da “Bagatela”. Aqui se auscultam as opiniões e sensibilidades individuais perante um problema, se sugerem e equacionam medidas de actuação, e se decidem (ou adiam, ou delegam) grandes e pequenos assuntos. Deste modo se compreende melhor a redução do papel da direcção associativa que já referimos acima: as pessoas estão sempre em contacto e as decisões vão-se construindo desse modo, num processo de informação, auscultação e consensualização permanentes que envolve toda a equipa técnica e não apenas os membros da direcção.

Depois, observa-se um elevado espírito de profissionalismo entre todos os membros da equipa, o qual se manifesta através de vários sintomas: a linguagem técnica com que discutem entre si; o à-vontade e segurança com que relatam o desempenho das suas tarefas e equacionam os problemas surgidos; a forma como confrontam os desempenhos dos colegas e assumem o trabalho em grupo e a polivalência ou rotação de tarefas; aparentemente, um sentimento de realização pessoal e um sentido de utilidade social por participarem nesta missão. De enfatizar o facto de cada técnico ocupar geralmente mais de uma função, com tarefas bem definidas, mas não havendo separações rígidas e definitivas entre departamentos, antes adequadas rotações de encargos e conjugação de esforços em task-groups temporários. Por fim, pela maneira como todos, e cada um, se empenham na compreensão e interiorização das normas e procedimentos adoptados pela ANQ e pela maneira regular e inteligente como apresentam as candidaturas e aproveitam as oportunidades de utilização máxima de recursos públicos disponíveis, pode dizer-se que também faz parte desta cultura organizacional a aquisição da melhor competência de expertise, com intuitos de utilidade geral.

Acresce o papel fundamental (e insubstituível, nesta dinâmica) do líder/animador do grupo, ou melhor, da líder, a que atribuímos o nome fictício de “Isolda”. Todos os sinais apontam com evidência o seu tipo de liderança forte, embora de estilo participativo: nas reuniões, suscita questões, sintetiza os termos fragmentados de um debate, sugere linhas de saída para um impasse, tira conclusões de maneira prática e objectiva; nas conversações directas, pode ser frontal, persuasora, negociadora ou calorosa, sempre inteligente. Fundadora da “Bagatela” e dirigente formal de várias das suas estruturas funcionais, também prestigiada por um elevado título académico, “Isolda” cumpre essencialmente um papel de animadora do grupo, de estimulação crítica das iniciativas e de “rosto” ou porta-voz da associação para a comunidade envolvente.

Estes são os “activos” principais e os “trunfos” do CNO em análise. Mas devem referir-se também outros recursos, importantes ou complementares: o património imobiliário e o conjunto de equipamentos tecnológicos possuídos; o reconhecimento angariado ao longo de já bastantes anos junto dos responsáveis públicos e privados de entidades sediadas na região; a confiança institucional dos entes estatais que superintendem nas suas áreas de actuação; os recursos financeiros prodigalizados pelos fundos públicos mediante processos de concursos e candidaturas burocráticas; e até o estímulo constituído pelos problemas sociais existentes na comunidade de proximidade, nomeadamente no seio das populações infantis e juvenis, dos desempregados e mal-inseridos e dos cidadãos activos portadores de baixas qualificações escolares e profissionais.

A conjugação destes diversos factores traduz-se in fine num caso (quiçá pouco frequente, ou mesmo de alguma singularidade) de uma organização muito flexível, com grande homogeneidade, profissionalidade e forte envolvimento dos seus membros activos, e uma liderança pessoal estimulante e indutora de atitudes participativas e auto-responsabilizadoras. Isto aproxima-se do modelo que Mintzberg designa por “adhocracia”, com uma coordenação por “ajustamento mútuo”17 — porém, mais estranho no que toca à sua forma de liderança.

Alguns constrangimentos e fragilidades

Segundo “Isolda”, a animadora da associação, a sociocultura local é bastante apelativa para os valores do trabalho e do empreendedorismo. Contudo, também ela nos fez entrever, em diversas oportunidades e circunstâncias, os compromissos, as negociações e pequenas cedências que igualmente era obrigada a fazer com o meio local para levar avante os seus projectos. O gosto pelo poder e as lógicas partidárias dos políticos, os bairrismos e “querelas paroquiais”, os prazeres experimentados pelo acesso a bens caros e pelo reconhecimento de maiores — eis alguns traços do tecido social local com os quais uma entidade como a “Bagatela” (para mais com o título que ostenta) tem de saber conviver para não se marginalizar e deixar fechar num gueto. Deste modo, a associação (e “Isolda”, com quem, para o exterior, frequentemente é confundida) pôde ir sobrevivendo e, ao longo dos anos, conquistando respeito e admiração, mesmo por parte daqueles que a acham excêntrica.

Da análise e da reflexão por nós intentada acabou por sobressair a ideia de que alguns dos “trunfos” e das peculiaridades mais interessantes do caso “Bagatela” trazem associadas outras tantas fragilidades que pairam sobre o futuro da instituição. Com efeito, foram três as fraquezas que principalmente identificámos:

- o tipo de liderança, que não é intercambiável e, se consegue adesões fortíssimas e sinceras, também é susceptível de gerar resistências pessoalizadas (por sentimentos de inveja, suspeições de nepotismo, etc.);

- o eventual esgotamento ou dificuldade de preservação do espírito da equipa técnica actual — referimo-nos à sua forte mobilização e envolvimento, permitidos também pelas características de baixa idade, fase primária da carreira profissional e poucos encargos familiares, que tem ido ao ponto de aceitar conscientemente atrasos no pagamento de salários —, a partir da gradual mas inexorável modificação daquelas condições sociográficas;

- e a dependência quase total em que a associação se encontra dos financiamentos públicos directos, provenientes dos programas de apoio à juventude e de qualificação dos portugueses, na previsão de que eles possam ter uma forte redução no futuro, sobretudo a partir do fim do actual QREN, em 2013.

Porém, é possível também formular três correspondentes linhas de orientação para mitigar estas fragilidades. Ei-las:

- em primeiro lugar, será avisado que a “Bagatela” vá preparando (para o médio/longo prazo) uma solução alternativa de modelo de liderança, já que, se é verdade que não se trata de um problema para amanhã, também não é pensável a simples substituição de uma pessoa por outra, pois o papel construído pela actual líder é inseparável dela própria, e com qualquer outro na liderança imediatamente será afectada a cultura desta organização;

- para a segunda questão, sugere-se a procura de um melhor equilíbrio no seio da equipa técnica, diversificando o perfil sociográfico dos futuros recrutados, em termos de idade (e, por arrastamento, situação familiar);

- finalmente, é conveniente que a associações procure fontes de receita alternativas, aumentando os recursos próprios obtidos no mercado ou por via de emparceiramento com entidades de investigação e desenvolvimento (I&D), porfiando para a venda de serviços, técnica e cientificamente qualificados, com base na qualificação pessoal de alguns dos seus colaboradores, e talvez potenciada com o lançamento da já referida cooperativa CEPSI de “estudos e projectos”.

Já depois de produzida a análise supra, tomámos conhecimento dos resultados de um diagnóstico de avaliação SWOT18 realizado colectivamente pelos membros da equipa técnica da “Bagatela”, sob a forma de uma discussão brainstorming, no âmbito de uma sessão de formação conduzida por especialistas da ANQ.19 Curiosamente, no capítulo da “organização”,20 as conclusões a que chegaram encontram-se praticamente todas referenciadas, explícita ou implicitamente, nos desenvolvimentos anteriores. Eis um bom indício de que estas nossas observações serão perfeitamente entendidas por estes actores principais da organização, que delas poderão apropriar-se para melhorarem ainda mais os seus desempenhos individuais e colectivos.

As práticas e as representações sobre o RVCC e as Novas Oportunidades

As percepções dos adultos beneficiários

De acordo com os dados registados no relatório elaborado pela “Bagatela” relativo ao ano de 2007, a população de adultos inscritos nas NO para o nível básico atingiu 607 pessoas, e para o nível secundário 723 pessoas, sempre com uma pequena maioria de mulheres (a rondar os 58%). Já quanto à idade se notam acentuadas diferenças entre os dois grupos, pois no básico a média andará pelos 40 anos e no secundário pelos 30, sendo sempre residuais (5 a 10%) as pessoas com mais de 50 anos de idade.

O mesmo relatório apresenta os resultados de um inquérito feito pela “Bagatela” de avaliação do processo de RVCC de nível básico e respondido pelos adultos que o concluíram com sucesso, e de um outro inquérito à mesma população realizado seis meses depois. Os resultados da aplicação do primeiro destes instrumentos (com 195 respondentes) dão-nos a indicação geral de um franco agrado com a experiência acabada de viver. Juntando as categorias classificativas de Bom e Muito bom,21 obtemos o score de 92%22 para a avaliação do processo em geral; 97% para as informações prestadas pela equipa; 100% para o relacionamento com (o)a profissional de RVCC; 97% para as actividades realizadas durante o processo de reconhecimento; e 99% para a forma como decorreu a sessão de júri de validação.

As avaliações feitas a três aspectos do processo — instrumentos utilizados, relacionamento com o(a) formador(a) e duração da formação complementar — em cada uma das quatro áreas de competências-chave em que está estruturado o “programa pedagógico” mostram já algumas variações entre elas e alguns indícios de maiores dificuldades ou insatisfações. O quadro 1 apresenta os valores apurados. A dúvida objectiva deixada pelos números menos favoráveis acerca da duração das formações complementares deve ser interpretada — à luz das nossas inquirições individuais a formadores e formandos — como de constatação de uma insuficiência do tempo dedicado a estas formações, para colmatar os défices de conhecimento que os próprios adultos reconhecem ter. De resto, correspondendo a esta apreciação, o número de horas de formação complementar foi já duplicado desde então, cifrando-se agora em 50 horas. De igual modo, a equipa foi levada a estudar e adoptar novos instrumentos pedagógicos, para os adaptar melhor às carências e às características do público-alvo.

Quadro 1

Avaliação do RVCC pelos adultos — 2007 (% de respostas Bom + Muito bom)

Quanto aos resultados apurados pelo segundo inquérito por questionário aplicado a uma amostra da mesma população (agora já só com 56 respondentes) seis meses depois do primeiro, as conclusões são menos nítidas e não tão entusiásticas. Dos dados disponíveis, pode-se perceber que estes sujeitos que obtiveram a certificação escolar do 9.º ano consideram que a sua valorização foi sobretudo de ordem pessoal, com algum incentivo para o prosseguimento de estudos (para obter a certificação do 12.º ano, imagina-se) e algo menos em termos profissionais (ainda que sempre do lado da positividade), como mostra o quadro 2.

Quadro 2

Avaliação do RVCC pelos adultos, seis meses depois — 2007 (% horizontais)

A resposta a um outro quesito acerca da importância de “apostar na sua formação” (com 57% a considerarem que é “muitíssimo importante”) é menos significativa do que a percentagem de 25% dos respondentes que indicam que a sua primeira opção de futuras formações iria para “assistente de acção educativa” (fragmentam-se as restantes respostas por grande número de outras alternativas). Por outro lado, 11% dos que definiram eles próprios uma “outra formação” escolheram a da “hotelaria”. Sabendo que as ocupações presentes dos inquiridos mais referenciadas eram as de “empregado(a) fabril” (18%), “vendedor/comerciante”, “hotelaria” e “auxiliar de acção educativa” (com 7% de casos, cada), estas respostas revelam uma racionalidade, um realismo prático e uma consistência muito assinaláveis.

Vale a pena ainda reter que 23% destes adultos tinham já frequentado alguma acção de formação depois do RVCC, mas apenas 7,1% tinham arranjado um emprego e 1, 8% tinham mudado de emprego, tantos como aqueles que tinham entretanto perdido o seu emprego.

Usando agora os dados qualitativos recolhidos aquando das nossas entrevistas a adultos, complementados com outras fontes,23 podemos expor o seguinte leque de motivações principais para a inscrição no processo de RVCC e prosseguimento da frequência do mesmo:

- gosto pessoal de aprender e progredir, e ver reconhecidos esses progressos;

- aprender de maneira diferente sem “voltar a repetir a escola”;

- maior rapidez na obtenção do diploma escolar do que na escola “normal”, mas também em outros CNO (que não na “Bagatela”);

- flexibilidade e ajustamento pessoal do processo;

- oportunidade de conhecer outras pessoas com percursos e motivações semelhantes;

- conhecer pessoas que já fizeram (ou estão a fazer) o RVCC e ter boas referências do mesmo (feito na “Bagatela”);

- o apoio de familiares (filhos, em particular) na execução dos trabalhos do RVCC;

- ter novas oportunidades no mercado de trabalho;

- obter um diploma escolar que lhe é legalmente indispensável para uma actividade profissional já exercida ou projectada.24

Como se percebe, parece haver aqui quatro tipos de factores decisivos: a) satisfação intrínseca de realizar novas aprendizagens, como adulto; b) vantagens instrumentais, para consolidação ou melhoria da situação profissional; c) novas experiências de sociabilidade; d) condições favoráveis para a realização deste projecto.

Em segundo lugar, exibimos os principais aspectos de avaliação positiva do processo, no que toca ao “método pedagógico”, de acordo com as opiniões expressas pelos adultos:

- o método da “história de vida” é interessante, motiva e revigora os adultos;

- a “ida a júri” é assumida como um verdadeiro teste;

- a individualização da progressão é uma característica importante;

- a rapidez na obtenção de um diploma escolar (em relação à escola “normal”) também conta;

- facilita a compreensão mútua o facto de os técnicos e formadores serem quase sempre mulheres (sendo mulheres também a maioria dos adultos e dos nossos entrevistados).

Finalmente, identificámos — na opinião dos entrevistados — os aspectos de avaliação negativa do “método pedagógico” (sendo que, em sentido geral, todo o processo é visto de forma claramente positiva):

- o método da “história de vida” acrescenta pouco aos saberes existentes; seria preferível terem aulas, ensino e testes tradicionais;

- os trabalhos feitos em casa prestam-se a fraudes;

- há épocas do ano (geralmente no Verão) em que o processo do RVCC se torna mais difícil de prosseguir, devido a um maior empenho dos adultos na sua actividade profissional.

As opiniões dos colaboradores

Depois dos adultos envolvidos no processo, vamos agora virar a nossa atenção para os colaboradores remunerados da associação, que desempenham as várias funções técnicas da equipa de RVCC. Analisamos sucessivamente a organização institucionalizada do processo (dirigido pela ANQ), as condições oferecidas pela “Bagatela”, os méritos do processo RVCC, as vantagens e os pontos negativos do “método pedagógico” e, finalmente, algumas sugestões de melhoria. As fontes de informação aqui utilizadas foram as entrevistas que realizámos com alguns destes actores e também as notas tomadas nas reuniões de coordenação da equipa a que fomos assistindo ao longo de cerca de um semestre.

No que toca à organização institucionalizada do processo, é a coordenadora “Sónia” quem nos assinala as seguintes apreciações:

- Em geral, as normas e instruções dimanadas da ANQ são de boa qualidade e têm sido assimiladas pela equipa. A ANQ funciona bem, acompanhando de perto os CNO e esclarecendo as suas dúvidas (por telefone e e-mail). Contudo, o SIGO tem tido problemas técnicos (bloqueios, etc.) e as transferências de dinheiros estão com atraso de vários meses, o que se reflecte no pagamento dos salários e obriga a “Bagatela” a uma complicada “ginástica” financeira.

- Por outro lado, as alterações que, com alguma frequência, têm sido introduzidas causam sempre dificuldades e constituem talvez os principais obstáculos que têm de ser superados pela “Bagatela”. A principal alteração recente foi a nova ênfase posta na valência de “diagnóstico-encaminhamento” (apenas a parte RVC), que parece tender a superar o próprio processo RVCC, orientando desde logo os adultos para os cursos EFA, com dupla certificação, escolar (9.º ou 12.º anos) e profissional (níveis II ou III), realizados pelo próprio (alguns) ou numa rede de instituições certificadas para o efeito. Esta alteração trouxe também a nova figura dos “técnicos superiores de RVCC”, que se ocupa da referida valência e se acrescenta às figuras já existentes do “coordenador” (do CNO), dos “profissionais de RVCC” (vulgo “técnicos”) e dos “formadores de RVCC”, que constituem, no conjunto, a chamada “equipa técnica”. A segunda importante mudança foi a entrada em vigor do RVCC do “secundário”, que arrancou efectivamente em Janeiro de 2008, ainda não certificou ninguém e está numa fase de algum tacteamento e experimentação, com alguns adultos com processo já concluído e que estão a aguardar júri.

- O âmbito territorial de acção de cada CNO é a NUT III em que está inserido. Dentro desta, pode haver concorrência entre vários CNO; a ANQ procura ter uma cobertura equilibrada de todo o território nacional em termos de CNO, sem agudização da concorrência entre eles, mas como a iniciativa é dos próprios CNO que se candidatam a sê-lo, isso pode sempre acontecer. Por exemplo, na zona da “Bagatela” há outros CNO em concelhos vizinhos, a menos de 30 km ao redor, e o próprio concelho tem mais dois.

Quanto às condições oferecidas pelo CNO em análise, segundo a mesma entrevistada e também “Isolda”, a grande animadora da associação, esta apresenta algumas peculiaridades (além das já descritas anteriormente), tais como:

- os vínculos laborais dos colaboradores são sempre estabelecidos com a “Bagatela” e consistem em contratos de trabalho sem termo certo, mas são sempre explicadas as “normas da casa”, incluindo a hipótese de atrasos nos salários, a flexibilidade de horários, a não existência de separações estanques entre as diversas “valências”, a rotação de encargos, etc.;

- a captação dos públicos adultos privilegia dois métodos: os contactos colectivos locais, nos lugares e aldeias da zona (sobretudo com associações; mais raramente autarquias, paróquias ou empresas) e o método do “passa-palavra”;

- as salas onde se realizam as sessões (geralmente cedidas por entidades que estabeleceram protocolos com o CNO) têm geralmente condições mínimas, mas estas são suficientes; os equipamentos também satisfazem, embora por vezes falte um simples “quadro preto”, haja escassez de escritórios para o trabalho dos técnicos e atendimentos individualizados dos adultos, e alguns formadores registem a falta de certos dispositivos pedagógicos específicos.

Passando agora à avaliação dos processos de RVCC, citamos algumas das principais vantagens que os técnicos da equipa da “Bagatela” encontram na sua aplicação:

- o processo é especialmente adequado às populações-alvo e às suas condições de vida;

- o processo é exigente e, ao contrário do que alguns afirmam, não é verdade que seja “facilitista”;

- são muito importantes as sessões de reconhecimento das competências, cujos instrumentos técnicos deverão ser ainda aperfeiçoados, no sentido da exigência;

- é patente a evolução pessoal dos adultos ao longo do tempo do processo e, por outro lado, os adultos que já fizeram o RVCC do básico distinguem-se dos restantes quando fazem o secundário;

- os objectivos das competências-base exigidas são atingíveis e eficazes, por exemplo, na área de comunicação e linguagem (do básico) os adultos têm que ler um livro e artigos de jornais e são-lhes prescritas tarefas como a de redigir textos, exprimir-se oralmente, etc.; nota-se perfeitamente, quando há casos de fraude, tais como ajudas de familiares na escrita feita em casa.

Mais especificamente sobre o método pedagógico prescrito e a importância de este ser estruturado com referência à “história de vida” dos sujeitos, as opiniões dos técnicos e formadores vão no sentido da sua validação: “o método é bom” (“Sónia”); “é um instrumento importante” (”Zulmira”); “o mais difícil é pôr as pessoas a reflectir, a criticar, a escrever” (“Sónia”); “permite detectar lacunas importantes na ortografia, pontuação, estruturação de um texto” (“Leocádia”); “é um instrumento fundamental, tanto para o próprio, como para o formador e o técnico, pelas indicações que lhes fornece” (“Andreia”); “é um instrumento muito positivo e de grandes potencialidades: fornece auto-estima, e faz o formador aprender…” (“Leocádia”). Permitimo-nos, pelo nosso lado, chamar a atenção para a vantagem final apontada por estes dois últimos testemunhos: o método é importante para o técnico/formador conhecer melhor o adulto e orientar a sua intervenção. É, sem dúvida, uma qualidade importante, mas que não responde à questão de saber se será o método mais adequado para a formação do adulto.

Vejamos agora os aspectos negativos que, na opinião dos técnicos da “Bagatela”, afectam o rendimento do processo de RVCC:

- Há uma certa imagem pública de “facilitismo” neste sistema de formação de adultos que, embora não correspondendo à verdade — pelo menos neste CNO —, afecta sempre as atitudes das pessoas, dos adultos candidatos ou envolvidos, dos empregadores, etc. “Sandra” e “Zulmira”, por exemplo, enfatizam este fenómeno. E “Andreia” considera mesmo que “o diploma RVCC é menosprezado pela sociedade em geral”.

- Por outro lado, os técnicos conhecem bem algumas atitudes negativas que se encontram no seio das populações que frequentam o RVCC. Entre elas, a daqueles “que acham que não precisam de formação e julgam que só lá vão  ‘buscar o papel’  e alguns mesmo ameaçam mudar para um outro centro, onde as coisas são mais fáceis” (“Leocádia”); as “diferenças de expectativas entre adultos empregados e os desempregados (entre estes, alguns até escondem as suas reais competências para não perderam os subsídios que recebem pelas formações que vão frequentando —  e alguns até ganham mais com esses subsídios do que estando empregados…)”(“Andreia”); “há comportamentos de machismo e atitudes sobranceiras em alguns adultos” (“Isolda”); verificam-se ausências, abandonos ou desistências sem que os próprios forneçam qualquer aviso ou explicação; outros tentam transferência de centro, por uma ou outra razão e explorando eventuais concorrências ou rivalidades entre CNO vizinhos; há adultos que vêm com a ideia fixa de “fazer a escolaridade em três meses” (vários testemunhos, inclusive dos próprios); muitos atribuem um estatuto menor aos técnicos e formadores de RVCC, não os equiparando aos professores do ensino regular e julgando-os subqualificados em relação a estes; e, finalmente, segundo o juízo de “Sónia” para explicar certos comportamentos minoritários indesejáveis, “há sempre pessoas inadaptadas”.

- Quanto às necessidades de formação reveladas pelos adultos e aos meios utilizados para lhes responder, “Zulmira”, por exemplo, considera que “existem lacunas na formação científica de base que é preciso colmatar, com pedagogias adequadas” e que  “50 horas de formação são ainda insuficientes, nomeadamente para a língua estrangeira”; “Leocádia” e outras confirmam a necessidade de mais horas de formação, sendo difícil organizar grupos homogéneos (de 15 pessoas) para estes efeitos; e “Sónia”, como coordenadora do CNO, considera ter falta de respostas para as formações externas, havendo por outro lado alguma “caça aos públicos de formandos” por empresas de formação da região. Este facto parece estar a agravar-se com o surgimento de maior número de adultos jovens que buscam uma forma de conclusão dos estudos secundários.

- As sessões de júri também deixam insatisfeitos alguns formadores, nuns casos porque acham que deviam ser mais exigentes (“Leocádia”); noutros casos, observados em CNO vizinhos, porque se percebe que os jurados nem sempre leram devidamente os dossiês em discussão (“Zulmira”).

- Finalmente, a pressão institucional (externa, mas assumida também pela liderança da “Bagatela”) para o cumprimento de metas pode ter por efeito indesejável um abaixamento da qualidade de exigência dos processos de RVCC. “Sónia”, a coordenadora, é particularmente sensível a este perigo, mas o tema é verbalizado nas reuniões da equipa. De facto, embora em 2007 tivessem sido atingidas praticamente todas as metas contratualizadas entre a “Bagatela” e a ANQ,25 para 2008 estava a registar-se algum atraso ao nível do secundário e realçava-se a importância de efectivar júris de certificação nos próximos meses.

Na sequência destas avaliações, algumas recomendações ou propostas de alteração surgem da parte de elementos da equipa técnica. Todos subscrevem a conveniência de formações complementares mais longas ou intensas. Mas, mais agudamente, “Andreia” preconiza que“o modelo do certificado devia ser igual ao dado na escola, para não ser menosprezado pela sociedade”. E no exercício colectivo de avaliação SWOT (capítulo 2, processos de RVCC) que já referenciámos,26 existem algumas outras sugestões, é certo que genéricas e mais implícitas do que explícitas, entre as quais podemos referir o envolvimento e mobilização das populações e das diferentes entidades locais, a promoção do empreendedorismo, uma maior oferta no terreno de cursos EFA, a melhoria (quantitativa) de equipamentos ou as vantagens do amadurecimento etário da equipa técnica.

As concepções: ensaio de conclusão

Orientações e mobilização geral de vontades e interesses

Tal como foi concebido e tem vindo a ser implementado, o dispositivo de RVCC e as NO configuram, a nosso ver, um sistema social bastante aberto, com uma pluralidade de actores, interesses e lógicas, e resultados finais (em termos de balanço input/output) incertos e ainda indeterminados.

Com efeito, pode considerar-se positivo e encorajador o esforço (orçamental e de ajustamento administrativo) desenvolvido pelo estado para fazer conjugar numa mesma dinâmica os intentos (antigos) de educação de adultos (justificados pelo elevado grau de iliteracia da população), melhorar o aproveitamento dos recursos despendidos na formação profissional dos activos (que diversas fontes apontam como tendo sido muito desperdiçados, desde a nossa entrada na CEE) e ajudar a tornar mais eficiente o desempenho do sistema de ensino regular (em particular no seu segmento secundário, conferindo-lhe melhores potencialidades para a inserção dos jovens na vida activa) — tudo isto devendo traduzir-se numa elevação do nível de qualificação dos portugueses, de molde a permitir a sustentação de outras ambições na competição económica internacional. Esta dimensão da acção política governamental, apesar de dispor de condições gerais favoráveis (maioria absoluta no parlamento, horizonte de estabilidade governativa a quatro anos, equipa ministerial coesa e ainda recursos financeiros externos extraordinários, de baixo custo), não deixa de enfrentar obstáculos e adversidades: acções de oposição partidária e de resistências sociais; adesões mais ou menos mitigadas das autarquias locais; deficiências no funcionamento da máquina administrativa pública para “pôr as políticas no terreno”; limitações orçamentais; e a prova de fogo da bondade das próprias concepções e políticas decididas “no topo”.

Devido à natureza de “parceria público-privada” da iniciativa NO, a execução dos processos de RVCC compete à (e depende fundamentalmente da) tal rede diversificada de instituições disseminadas pelo território que adquirem a certificação de Centros NO. Ora, se esta diversidade de parceiros (privados, públicos, associativos, empresariais, etc.) constitui uma aposta muito interessante no envolvimento da sociedade civil e de algumas elites locais/territoriais, ela está longe de poder evitar contradições e deturpações dos objectivos maiores do programa ou de prevenir contra o surgimento de efeitos perversos. É certo que o estado fixa as regras do jogo, controla o financiamento e deve inspeccionar a qualidade das execuções, na base do sistema. Mas pode ser incapaz de impedir aproveitamentos ilícitos ou de detectar disfuncionamentos que ocorram ao nível dos CNO e das populações de adultos envolvidas. Ou então, pelo contrário, agir de tal forma inepta que os centros (privados) se sintam abusados ou violados na sua independência e passem de uma atitude de colaboração para uma outra, de “aproveitamento de oportunidades, enquanto possível…” Tudo aqui parece jogar-se na inteligência e na sageza do equilíbrio conseguido entre autonomia/responsabilidade (dos CNO) e centralização/eficiência (da administração pública), e na preservação desse equilíbrio face ao decorrer do tempo, à evolução (inevitável) do sistema e às estratégias dos outros actores participantes.

Um outro tipo de actor central neste processo é constituído pelos profissionais e formadores que formam as equipas técnico-pedagógicas dos CNO. Trata-se de uma nova profissionalidade, desenhada e alimentada em doses reforçadas por este programa público, sem contudo se perfilar como mais uma categoria aspirando a integrar-se no funcionalismo do estado. Tal como os observados por nós no caso da “Bagatela”, acreditamos tratar-se, na sua generalidade, de um segmento de técnicos superiores bem qualificados, jovens e muito empenhados na suas funções e actividades, embora também admitamos poder existir, em paralelo, todo um outro conjunto de situações, em especial em escolas, centros de formação, empresas e autarquias, onde o perfil destes técnicos e formadores de RVCC seja bem diferente, e a actividade seja assumida de forma quase supletiva ou temporária, em relação a desempenhos profissionais anteriores e prevalecentes. É, porém, sobre os primeiros que queremos debruçar-nos, destacando a inovação profissional que eles estarão progressivamente configurando (ao desempenharem as suas funções com interesse e proficiência), mas também chamando a atenção para a frustração de expectativas que poderá advir de uma menor atenção prestada pelos responsáveis quanto às condições laborais actuais (remuneração, etc.) e ao seu futuro profissional, com previsíveis efeitos de turn-over e menor investimento pessoal nos desempenhos — o que teria certamente as piores consequências para os objectivos sociais do programa.

E temos, finalmente, as populações-alvo, que constituem o destinatário final de todo este investimento, mas igualmente são um “actor do sistema”, embora não orgânico e disperso por milhares de comportamentos e discursos individuais, todavia inteligíveis, nas suas grandes linhas, através dos procedimentos adequados de pesquisa social. A resposta destas populações aos “convites” do programa NO e à informação publicitária que tem sido divulgada parece ser globalmente encorajadora. No entanto, na falta de conhecimento rigoroso sobre os volumes, as motivações e os comportamentos desta “procura”, não deixamos de chamar a atenção para a especificidade de grupos sociais com “necessidades” bem diferenciadas e que por isso devem ser atendidas de maneira diferente: os jovens adultos que não se destinam a estudos superiores mas devem ser qualificados profissionalmente; os jovens adultos que “falharam o sistema de ensino” mas, mesmo assim, precisam de ser encaminhados para uma actividade útil e sustentável; os activos empregados carentes de melhor qualificação; os desempregados e activos ameaçados de desemprego, que precisam de se reconverter; os não-activos(as) desejosos(as) de uma inserção tardia; etc. Aqui, no quadro económico e social existente, deverão ser decisivas as condições da “oferta” (formativa, qualificativa e requalificativa), nomeadamente: diversidade de possibilidades oferecidas; condições legais de contratualização entre o estado e o interessado; subsidiação (ou não) dos sujeitos; contemplação das suas trajectórias pessoais, escolares e profissionais; grau de empregabilidade, sustentabilidade e autonomia dos perfis profissionais e das qualificações adquiridas no final do percurso proposto.

Estas são, em síntese, as principais variáveis que provavelmente estarão presentes neste jogo aberto entre grandes actores sociais, posto em movimento a propósito do programa NO.

O que se quer reconhecer, validar e certificar? E para quê (com que efeitos)?

Os objectivos do processo de RVCC pareciam suficientemente claros: reconhecer, validar e certificar (como equivalentes aos graus e diplomas do ensino geral) os saberes e capacidades adquiridos ao longo da vida activa pelos cidadãos, nas diversas vertentes da sua vida social.

Contudo, a iniciativa NO alargou estes objectivos, integrando neles toda a educação e formação de adultos e indo ainda mais além  — porém, de uma forma que não prima pela clareza. Por um lado, encontra-se agora na sua documentação referência a um “RVCC profissional”, paralelo ao “RVCC escolar”.27 Por outro lado, começa a falar-se mais seriamente na “dupla certificação” (entenda-se, escolar e profissional).28 Por último, num documento de 2008 de responsabilidade governamental,29 depois de uma primeira parte intitulada “I — Uma nova oportunidade para os adultos”, surge uma segunda designada por “II — Uma oportunidade nova para os jovens”, sendo que aqui se está falando, não em de sujeitos com mais de 18 anos de idade (ou seja, jovens adultos), mas realmente de classes etárias com menos de 18 anos que parece terem agora mais esta possibilidade (em NO) de obter uma certificação escolar equivalente ao 12.º ano.

Nestas circunstâncias, é legítimo questionarmo-nos sobre se não estaremos a criar uma nova passerelle que permitirá o acesso a um diploma formal (o do ensino secundário), e eventualmente à universidade, de uma forma menos exigente do que o ensino formal,30 desencorajando este (e fazendo baixar o seu nível de qualidade médio), e inexistindo o pressuposto fundamental do RVCC de que se trata de reconhecer as competências adquiridas ao longo da experiência de vida activa do cidadão, que, neste caso, ainda não ocorreu.

É certo que estes processos são complexos e só podem ser tratados pelos especialistas de forma complexa; mas, para serem eficazes, têm de surgir no espaço público devidamente traduzidos (por técnicos capazes) para uma versão simples e acessível ao maior número. Geralmente, a complexidade não-traduzida que chega directamente aos destinatários finais é recebida por estes como confusão. E, em casos deste tipo, a inteligência dos sujeitos comuns será tentada a explorar estrategicamente os caminhos de-mais-baixo-custo para aceder aos bens (imateriais) que almejam possuir; provavelmente, com ganhos racionais para os próprios, no curto prazo, mas mais falíveis no médio/longo prazo; e certamente com perdas e desperdícios para o conjunto da colectividade que, justamente, se queria promover.

Nestas circunstâncias, julgamos importante sublinhar aqui dois pontos concretos:

- apesar da sua ligação sistémica (e problemática), parece-nos que os dispositivos operacionais deveriam separar mais claramente os programas de educação de adultos (de um lado) dos programas do ensino geral, incluindo o nível secundário (de outra banda), a despeito de estes últimos deverem continuar a evoluir para modalidades que contemplem de uma forma mais evidente a formação de cunho profissional;

- os processos de RVCC deveriam avançar a um ritmo rápido no sentido ultimamente apontado pelas NO, isto é, para uma muito mais estreita ligação entre a certificação escolar e a certificação profissional (a tal “dupla certificação”), e para um maior papel da formação profissional (cursos EFA, etc.) para requalificar e fazer elevar o nível de qualificação dos sujeitos activos.

Nas condições actuais, permanece duvidoso o resultado do balanço que num momento posterior se venha a apurar entre o esforço consentido pela colectividade nacional (e as expectativas postas neste “sistema” por tantos agentes sociais), e os seus reais efeitos sentidos na economia e na sociedade (e mediatamente percebidos pelas pessoas), nos seus cotejos internos e internacionais.

O “método”

Não está aqui em causa discutir o modelo pedagógico e o método de aprendizagem que suportam os processos de RVCC31 e as NO. Por isso — e tendo sempre presente as constatações dos investigadores acerca dos factores condicionantes das trajectórias biográficas dos sujeitos32 —, nos limitamos a indicar sinteticamente alguns pontos que nos surgiram como cruciais ou problemáticos, ao longo do exercício de observação e da análise a que procedemos num CNO particular:

- A estratégia de aprendizagem proposta aos adultos a partir do eixo da sua própria biografia, com base nas áreas de competências-chave e na exploração de temas de vida — tão evidenciada na bibliografia especializada surgida em anos recentes —, parece ter potencialidades efectivas, mas é também muitíssimo exigente para os técnicos e formadores, e pode prestar-se a aplicações deturpadoras dos seus melhores sentidos.

- A formação complementar nos processos RVCC ganhará porventura em ser mais desenvolvida e eventualmente combinada com módulos temáticos e técnicas pedagógicas em uso no ensino regular. Referimo-nos não apenas às áreas das matemáticas e da língua portuguesa (aqui acrescentadas com a informática, indispensável), mas também à “segunda língua”, a uma base mínima de conhecimento das “ciências naturais”, à geografia e à história, que poderão constituir lacunas maiores da formação humanista destes adultos, não preenchidas pelos actuais conteúdos curriculares das áreas da “cidadania” (todavia importantes e significativos), e talvez não suficientemente cobertas pelas “formações modulares”.

- O papel da “sessão de júri” e, mais em particular, do avaliador externo no processo de validação e certificação de competências parece dever ser objecto de um escrutínio avaliativo muito detalhado, para concluir fundamentadamente acerca da sua eficiência no processo, procedendo depois às correcções julgadas necessárias.

- Finamente, tal como tem sido apontado por alguns especialistas, a “organização e funcionamento da equipa pedagógica [é] um factor decisivo para a concretização do modelo curricular”.33 Desta avaliação deveriam, pois, ser tiradas todas as consequências operativas relevantes, no que toca ao seu estatuto, enquadramento, formação, etc.

Tópicos conclusivos

A primeira recapitulação conclusiva que aqui devemos fazer é a da elevada qualidade do desempenho do CNO analisado, ou mesmo da sua excepcionalidade. Pela própria natureza deste estudo, não é possível afirmar que idêntica qualidade (ou até superior) não exista em muitos outros CNO, mas vários sinais sugerem que este seja um caso de primeira linha. De todo o modo, deixámos atrás algumas pistas analíticas sobre os seus pontos de fraqueza e sobre o modo de lhes responder com suficiente antecipação e eficácia.

Em segundo lugar, parece-nos que o sucesso do modelo pedagógico aplicado depende em muito (quiçá demasiadamente) da qualidade das instituições locais que o aplicam. Neste sentido, as instâncias nacionais envolvidas (ANQ e departamentos ministeriais) deveriam empenhar grande atenção e recursos no acolhimento e certificação, seguimento, apoio, controlo e avaliação do trabalho desenvolvido pelos CNO, bem como na formação das suas equipas técnicas, sem hesitações nem complacências sempre que se verifiquem quebras ou baixas de qualidade.

Terceiro: a organização do dispositivo e a eficiência do método de aprendizagem devem ser sujeitas oportunamente a uma rigorosa e criteriosa revisão crítica, em todos os seus segmentos e factores condicionantes. Não com o intuito de os invalidar globalmente e substituir por outros, alternativos, mas para eventualmente reformar algumas das suas componentes e readequar os procedimentos julgados menos satisfatórios.

Finalmente, parece ser desejável que o empenho político posto no programa de melhoria da qualificação escolar e profissional dos portugueses seja prosseguido e não desmantelado ou deturpado ao sabor das conjunturas e dos protagonistas políticos do momento, a despeito da permanente necessidade de o ajustar às condições presentes e melhorar sempre que possível.

 

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1 E, formalmente, como director deste Centro Novas Oportunidades.

2 Aqui assim designados, para obviar às bizarras mudanças de designação a que têm sido sujeitos.

3 [NO] (2008: 9 e 2).

4 [NO] (2008: 7).

5 Alonso (2002).

6 Gomes (2006).

7 Canelas (2007).

8 Sobretudo nos sectores do calçado, cutelaria e marroquinaria, da pedra e do barro vermelho.

9 Mais de 30 estabelecimentos de ensino básico coordenados num “Agrupamento de Escolas” com uma população de cerca de 1500 alunos e umestabelecimento de ensino básico e secundário de natureza cooperativa e boa reputação local integrando cerca de 1300 estudantes.

10 Marques (2006: 9).

11 A saber: promoção da inclusão escolar e formação profissional; ocupação dos tempos livres e participação comunitária; plena integração na sociedade, dirigida especialmente a filhos e familiares de imigrantes e minorias étnicas; e inclusão digital das crianças e jovens envolvidos nos projectos, e formação e enquadramento de técnicos para a criação de CID (Centros de Inclusão Digital). 12 Marques (2006: 124).

12 Marques (2006: 124).

13 Ver Freire (s.d.)

14 As entrevistas não foram gravadas e, por isso, não podem ser transcritas. Os extractos aqui exibidos não são, pois, expressões ipsis verbis utilizadas pelos entrevistados e, naturalmente, não são utilizadas como “citações”: apenas pretendem indicar o sentido geral da opinião expressa pelo depoente.

15 CNO “B” AJCSS (2008: 49).

16 Jornal Jovem — Percursos Alternativos, 12, Junho de 2008: 11.

17 Ver Minztberg (1999: 19-53 e 457-491).

18 Asigla significa strenght-weakness-opportunities-threats, isto é, “forças e fraquezas” (como factores próprios, endógenos) e “oportunidades e ameaças” (como factores externos, exógenos).

19 [ANQ] (2008).

20 Adiante nos referiremos ao segundo tema do exercício: o da análise dos “processos de RVCC”.

21 As outras alternativas eram de Satisfaz ou Insatisfaz, contabilizando-se também as não-respostas. As respostas de Muito bom foram sempre claramente superiores às de Bom.

22 Estes números (e os que se seguirem deste tipo de fontes) foram por nós arredondados à unidade mais próxima.

23 Conversas informais, intervenções de adultos em actos públicos e outros testemunhos reportados pelos membros da equipa técnica.

24 Casos da actividade de cabeleireiro, da candidatura a financiamentos de “projectos agrícolas”, etc.

25 Por exemplo, 700 inscritos em cada um dos níveis e 250 certificados no básico (ver CNO “B” AJCSS, 2008: 79).

26 [ANQ] (2008: 6).

27 Ver Canelas (2007).

28 Veja-se [NO] (2008).

29 Ibidem.

30 É aqui quase inevitável que se faça o paralelismo com o novo regime especial de entrada no ensino superior por pessoas com 23 anos de idade sem terem feito o 12.º ano. Na verdade, os jovens certificados pelo RVCC que queiram aceder ao ensino superior deverão ter de o fazer através deste mecanismo especial (ex-exames ad hoc), por não disporem de classificações particulares nas disciplinas que lhes permitam apresentar-se ao concurso geral de acesso.

31 Referência a vários documentos enviados ao autor por Alberto Melo, nomeadamente os seguintes: Maria Priscila Soares, “Algumas reflexões em torno do processo de RVCC”, São Brás de Alportel, CRVCC In Loco, 31 de Outubro de 2006; Alberto Melo, “Parecer global sobre as propostas para um referencial de competências-chave para equivalência ao 12.º ano de escolaridade para pessoas adultas”, s.l., s.e., Fevereiro de 2006; Alberto Melo (relator), “Debate nacional sobre educação—Área4—Aaprendizagem ao longo da vida e os desafios do emprego—Audição: Reconhecimento, validação e certificação de competências adquiridas—Relato síntese da sessão, Lisboa, Conselho Nacional de Educação, 11 (31) de Outubro de 2006; Alberto Melo, ”Da serra algarvia à secretária do ministro”, comunicação apresentada na sessão comemorativa do 30.º aniversário da Unidade de Educação de Adultos da Universidade do Minho, Braga, UN, 10 de Outubro de 2006.

32 Entre outros, ver a tese académica de Luísa Maria da Silva Delgado sobre “Motivações e projectos de adultos que ‘regressam à escola’: estudo de caso”, em finalização no ISCTE em 2008, orientada pelo autor.

33 Ávila (2004: 135).

 

* João Freire. Sociólogo, investigador no CIES, ISCTE-IUL.

E-mail: joao.freire@iscte.pt.

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