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Sociologia, Problemas e Práticas

versão impressa ISSN 0873-6529

Sociologia, Problemas e Práticas  n.63 Oeiras maio 2010

 

A história oral em Portugal

 

Luísa Tiago de Oliveira*

* Docente do Departamento de História do Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL) e investigadora do Centro de Estudos de História Contemporânea Portuguesa (CEHCP, ISCTE-IUL).

E-mail: luisa.tiago@iscte.pt

 

Resumo

Procura-se caracterizar o surgimento da história oral em Portugal nos finais do séc. XX, para o que contribuíram investigadores que trabalharam em contextos académicos estrangeiros e vindos de áreas disciplinares vizinhas da história. Esboça-se a situação da história oral, identificando as suas práticas, em que se salientam as mulheres, investigadores mais recentes, parte dos quais de fora da academia. A partir da análise de obras de Paula Godinho, Luísa Tiago de Oliveira e Dalila Cabrita Mateus, desvendam-se algumas possibilidades e problemas colocados pela sua utilização.

Palavras-chave: história oral, fontes orais, metodologias da história.

 

Oral history in Portugal

Abstract

This article seeks to characterise the rise of the area of oral history in Portugal at the end of the 20th century, a fact to which researchers working in foreign academic contexts and originating from subject areas bordering on history made a contribution. We sketch out the situation of oral history and identify its practices, in which the women, more recent researchers, stand out, including a proportion from outside the academic world. On the basis of an analysis of works published by Paula Godinho, Luísa Tiago de Oliveira and Dalila Cabrita Mateus, some of the possibilities and problems raised by its employment are revealed.

key-words: oral history, oral sources, historical methodologies.

 

L’histoire orale au Portugal

Résumé

Il s’agit de caractériser l’apparition de l’histoire orale au Portugal à la fin du XXe siècle, grâce aux contributions de chercheurs qui ont travaillé dans des contextes universitaires étrangers et issus de champs disciplinaires voisins de l’histoire. La situation de l’histoire orale est ébauchée, en identifiant ses pratiques et en mettant l’accent sur les femmes et sur les chercheurs les plus récents, dont une partie hors de l’académie. À partir d’œuvres de Paula Godinho, Luísa Tiago de Oliveira et Dalila Cabrita Mateus, cet article dévoile quelques possibilités et quelques problèmes soulevés par son utilisation.

Mots-clé: histoire orale, sources orales, méthodologies de l’histoire.

 

La historia oral en Portugal

Resumen

Se procura caracterizar el surgimiento de la historia oral en Portugal a finales del siglo XX, para lo cual contribuyeron investigadores que trabajaron en contextos académicos extranjeros y venidos de áreas disciplinarias vecinas de la historia. Se esboza la situación de la historia oral identificando sus prácticas y destacando a las mujeres, investigadores más recientes, parte de los cuales ajenos a la academia. A partir del análisis de obras de Paula Godinho, Luísa Tiago de Oliveira y Dalila Cabrita Mateus, se revelan algunas posibilidades y problemas colocados por su utilización.

Palabras-clave: historia oral, fuentes orales, metodologias de la historia.

 

Introdução

Aparentemente, a história oral, em Portugal, é recente e não está solidamente institucionalizada. É certo que, desde 1990, tem sido levado a cabo um programa de história oral no Centro de Documentação 25 de Abril, com resultados palpáveis expressos em várias edições de livros de entrevistas e em materiais que estão à consulta, em suporte de papel bem como audiovisual. Podem encontrar-se, também, alguns projectos de história oral ligados a instituições aqui e ali (como, por exemplo, ao Museu da Pessoa na Universidade do Minho, à Escola Superior de Educação de Santarém, à Rede Museológica do Município de Beja, ao Museu da Luz, ao Centro de Estudos de História do Atlântico na Madeira, à Academia de Marinha). Todavia, no ensino superior só desde 2001 existe uma disciplina com esta designação no ISCTE-IUL. Para além disso, os primeiros congressos de história oral decorreram, nos meses de Outubro de 2006 e 2007, o primeiro na Faculdade de Letras da Universidade do Porto e o outro em Arcos de Valdevez, sucedendo-lhes o colóquio “Memória e Testemunhos Orais”, organizado pela Fundação Mário Soares e pelo Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa, em Novembro de 2007, sendo que, em Fevereiro de 2009, a temática volta a ser abordada no seminário “Abordagens Biográficas, Memória, Histórias de Vida”, promovido pelo Centro de Investigação e Estudos em Sociologia (ISCTE-IUL). Ora todos estes exemplos, se nos mostram já uma pluralidade de iniciativas neste âmbito, parecem, acima de tudo, indiciar uma história oral escassa e bastante nova.

Porém, será esta efectivamente a situação?

Para o desvendar de contornos da história oral, e não podendo ser exaustiva, procurarei centrar-me em trabalhos com dimensão, profundidade e perfil adequado a poder apreciar a sua utilização, nomeadamente teses de mestrado e doutoramento defendidas no contexto académico português ou cujos resultados foram publicados em português, beneficiando de uma maior difusão. [1]

Não abordarei, assim, os contributos do programa de história oral do Centro de Documentação 25 de Abril, liderado por Manuela Cruzeiro, designadamente as entrevistas a decisores da conjuntura revolucionária portuguesa reconhecidos como protagonistas principais, como Vasco Lourenço, Ernesto Melo Antunes, Vasco Gonçalves, Francisco Gosta Gomes, entrevistas estas que se caracterizam pelo interesse científico (Cruzeiro, 1998; 2002; 2004; 2009). Da mesma natureza é o trabalho organizado por Boaventura de Sousa Santos, em que Manuela Cruzeiro e Natércia Coimbra participaram, em torno do dia 25 de Abril, no Posto de Comando do MFA da Pontinha, lembrado e comentado por seis dos militares que aí estiveram: Amadeu Garcia dos Santos, José Sanches Osório, Nuno Fisher Lopes Pires, Otelo Saraiva de Carvalho, Vítor Crespo (Santos, 2004). Manuela Cruzeiro veio a alargar os seus trabalhos a entrevistados com um perfil menos público (Cruzeiro, 2003; Cruzeiro e Bebiano, 2006). Porém, ao terem as entrevistas como resultados finais, todas estas obras se caracterizam por uma natureza diferente daqueles trabalhos que recorrem à história oral como uma metodologia entre outras e que constituem o objecto da minha análise.

Passo, então, às teses. Note-se, antes do mais, que os testemunhos orais não são significativamente citados ou nomeados como fonte de informação por vários autores de referência da história do Estado Novo e do 25 de Abril. São estes, por exemplo, os casos de César Oliveira, Fernando Rosas, José Medeiros Ferreira ou António Costa Pinto, cujas teses de doutoramento datam respectivamente de 1987, 1990, 1991 e 1992, o que não se pode apenas explicar por as fontes orais poderem escassear, dado boa parte destes investigações cobrirem realidades de há várias décadas (Oliveira, 1987; Rosas, 1990; Ferreira, 1992; Pinto, 1992; 1994). Aliás o último dos autores referidos, António Costa Pinto, foi pioneiro ao realizar uma prova académica sobre a emergência da história oral em 1986, que ficou inédita (Pinto, 1986).

As fontes orais também não estão significativamente presentes em investigações mais recentes. Citem-se as teses de mestrado de Diego Palácios Cerezales e de doutoramento de Irene Pimentel ou José Neves, defendidas em 2001, 2007 e 2008 (Palácios Cerezales, 2003; Pimentel, 2007; Neves, 2008).

Diferentemente, outros trabalhos sobre o Estado Novo ou sobre a conjuntura revolucionária assumem a utilização dos testemunhos orais: pense-se em investigações assinadas por João Freire, João Madeira, João Carlos Urbano Pires, Paula Godinho, Margarida Fernandes, Dalila Cabrita Mateus, José Pacheco Pereira, Luísa Tiago de Oliveira, Vanda Gorjão, Paula Borges Santos, Inácia Rezola, Maria Antónia Pires de Almeida, Susana Martins, Inês Fonseca, Sónia Vespeira de Almeida, Joana Tornada, por exemplo (respectivamente Freire, 1992; Madeira, 1996; Pires, 1997; Godinho, 2001; Fernandes, 2006; Mateus, 1999; 2004; 2006; Pereira, 1999; 2001; 2005; Oliveira, 2004; Gorjão, 2002; Santos, 2005; Rezola, 2006; Almeida, 2006; Martins, 2005; Fonseca, 2007; Almeida, 2009; Tornada, 2009).

Que história oral é então praticada? Quem a pratica? Em que moldes? E qual a sua relação com as ciências humanas e sociais vizinhas, concorrentes e/ou promíscuas, ou seja, que potencialidades comporta e desencadeia? Tentarei esse desvendar de possibilidades da história oral, a partir de três autoras que a praticam e assumem, começando por um trabalho institucionalmente situado em antropologia, sendo os outros dois em história, trabalhos que ilustram sem dúvida as suas potencialidades e os seus problemas.

 

Análise de algumas obras que recorrem à história oral

De Paula Godinho

Argumento: Memórias da Resistência Rural no Sul. Couço (1958-1962) é uma obra que, estudando exaustivamente as resistências e os conflitos nesta localidade entre as eleições presidenciais de 1958 e as lutas pelas oito horas de trabalho diário de 1962, os enquadra e perspectiva numa mais longa duração, constituindo o Couço (Coruche) um caso limite da rebeldia do Sul rural, presente no mapeamento do país, quer em termos de estudos quer de imagem pública da luta contra o Estado Novo (Godinho, 2001).

Sustenta a autora que a construção da memória constitui uma questão de identidade, alicerça uma cultura de resistência (conceito central na obra) e é estruturante da acção. Ora foi o papel desta identidade nos movimentos sociais no Couço que Paula Godinho quis desvendar. A autora defende o lugar essencial da memória nas resistências e lutas ocorridas em contextos históricos diversos, a importância dos quadros culturais nos movimentos sociais, sendo que a cultura não é dissociável das condições de percurso dos movimentos sociais (desencadear, itinerário, desfecho, formas de organização, modos de desempenho, etc., sendo estes posteriormente incorporados e evocados nos quadros culturais, alimentando-os) nem das leituras efectuadas pelos protagonistas sociais destas condições que por eles são transformadas.

Para Paula Godinho, é a classe (e não a comunidade) que constitui a ferramenta operatória essencial para a legibilidade dos movimentos sociais no Sul de Portugal, num quadro marcado pelo latifúndio. A estratificação social assenta sobretudo na posse da terra; é polarizada entre o grupo sem terra ou quase (composto centralmente pelos trabalhadores rurais, mas também pelos seareiros, pequenos rendeiros, artesãos, comerciantes, profissionais dos serviços locais), dum lado, e, do outro, o grupo formado no fundamental pelos grandes detentores de terras, não sendo esta clivagem social substancialmente modificada pelos grupos intermédios que tenderam a aconstelar-se em torno de um dos pólos sociais. Esta clivagem social é verbalizada na dualidade “nós” / “eles”. Outra face desta dicotomia passa pelo trabalho, valorizado positivamente e integrante das representações sociais daquelas categorias: os trabalhadores rurais identificam o “nós” com aqueles que trabalham e o “eles” com aqueles que não o fazem — ou seja, posse da terra e trabalho rural tendem a não ser miscíveis. Porém, a polarização social não esgota a leitura das tensões que, entre outras coisas, também é mediada pelos comportamentos sociais, políticos e culturais dos indivíduos. Assim, configuram-se um “nós” e um “eles” que, radicando em clivagens sociais, as ultrapassam, transformando-se o “nós” naqueles que se opõem ao regime do Estado Novo e o “eles” naqueles que constituem ou colaboram com esse regime.

Na perspectiva da autora, é quando a memória grupal dos trabalhadores agrícolas e próximos se universaliza que se passa das rotinas de resistência a tempos de aguda e mesmo violenta conflitualidade.

Adianta ainda que esta transformação pode ocorrer em conjunturas locais específicas ou noutras em que, a nível local, o nacional é lido como significativo e como oportunidade, como é o caso do período estudado em particular.

Práticas de história oral: Paula Godinho efectuou entrevistas não directivas a 46 pessoas, pertencentes ao “nós”, os trabalhadores rurais. Há muitas citações de testemunhos, referidos sem metragem nem temporização, sendo a transcrição muito próxima da oralidade e com regionalismos.

A autora identifica os entrevistados, esclarecendo-nos que a “assinatura” dos depoimentos resulta da sua vontade e do seu desejo de que servissem para “algo”.

Memórias da Resistência Rural no Sul constitui uma obra onde o direito à confidencialidade se levanta no trabalho com vários materiais, incluindo os provenientes da história oral. Efectivamente, esta obra ilustra a dificuldade de estudar movimentos sociais recentes que passaram por prisões, interrogatórios, torturas e palavras dos presos e, simultaneamente, proteger a privacidade de quem foi preso, torturado e falou ou foi visto como tendo falado. Dum modo geral, a autora identifica os participantes; porém, parece optar por evitar nomear quem pudesse ser novamente questionado pelos comportamentos de então. Aliás, numa obra como esta, centrada no Couço cerca de 1960, retirar ou alterar o nome dos envolvidos não resolveria o problema, já que estes seriam facilmente identificados pelos seus pares (dado o conhecimento pessoal) ou por outros (dado o contexto micro). A opção de Paula Godinho, nos diferentes passos desta questão delicada, constitui a forma possível encontrada pela autora para viabilizar a feitura, a publicação e a leitura de Memórias da Resistência Rural no Sul, assegurando a sua pertinência científica.

Contribuição da história oral para a tese: Em Memórias da Resistência Rural no Sul, a autora procurou entrelaçar as realidades de grupo/classe com o individual, o particular, o momento, que não são menorizados. Atende-lhes, entre outras coisas, através de testemunhos pessoais como o seguinte, retirado da análise do regresso dos presos ao Couço enquanto momento de reinserção festiva no meio, testemunho este sobre a mãe e o filho, o grupo e os foguetes:

Quando chegámos aqui, a gente devíamos ser aí umas dez […]. Eles lá disseram à abalada: “Vocês agora vão, e muito caladinhas, senão vocês voltam a ser presas. Não venham de lá com barulhos e festas e a atirarem foguetes, senão voltam outra vez.” A gente fomos. Parece que as pessoas já sabiam mas não sabiam, mas viram tanta gente a chegar nas carreiras que abalou tanta gente a correr a abraçar a gente, a chorar! As famílias desta e daquela, a abraçar e a chorar de contente! E a gente… Ia o meu filhinho de quatro anos a correr: “Eu ainda conheço bem a minha mãe!” “Quando a tua mãe vier já não a conheces…” “Conheço, que ela tem um sinal ao pé de uma orelha…” [chora]. Tive uma pena tão grande, era o meu filho. Chegámos lá ao destino, que era a Varejola, e tudo a correr de encontro à gente, e só que houve uma pessoa que atirou um foguete. Quando atiraram o foguete, a Guarda do Couço foi logo lá, saber qual tinha sido das senhoras que atirou o foguete. “Ai, eu não ouvi cá foguetes nenhuns. Eu não ouvi nada. ” E as outras disseram o mesmo. Mas eu sei que atiraram, quem foi é que não sei, mas eu disse é que não tinha ouvido que atiraram.  [Testemunho de Almerinda Matias, citado em Godinho, 2001: 332]

Esta atenção ao específico estende-se até àquilo que é difícil nomear, estando bem patente no capítulo sobre a tortura. Neste, podem-se ler depoimentos ora de uma factualidade minuciosa, ora pontuados pelo humor (relatando confusões entre tortura da tábua e tortura da estátua), ora ainda testemunhos sobre sentimentos para os quais as palavras parecem escassear. Como neste exemplo:

Quando estava em Caxias, puxávamos um banco, daqueles bancos corridos para o pé da janela, para nos pormos à janela a ver. Vejo a Lua reflectida no Tejo. De facto, aquilo, é maravilhoso, e só ali é que eu vi, era um ponto alto. […] É daquelas pequenas coisas que nos davam um certo ânimo para ir suportando aqueles dias, ali assim, de solidão. Quando eu estava sozinha, eram as moscas e era, à noite, a Lua. […] Também gostava de ver os barcos com as luzes todas acesas, mas a Lua, então, era uma coisa extraordinária. Sente-se qualquer coisa cá dentro, aquela sensação de comoção. [Testemunho de Maria Custódia Chibante, citado em Godinho, 2001: 301]

Aparecendo os testemunhos orais frequentemente imbricados com outros elementos indiciários, possibilitaram, ou viabilizaram de outra forma, o tratamento de alguns temas como o percurso pela prisão e pela tortura, ou os quotidianos de resistência.

De Luísa Tiago de Oliveira

Argumento: Estudantes e Povo na Revolução. O Serviço Cívico Estudantil (1974-1977) é uma obra que partiu do propósito de averiguar se o Serviço Cívico Estudantil teria sido atravessado por uma combinação de lutas políticas e dinâmicas sociais, exprimindo, no seu percurso, diferentes formas de articulação dos discursos políticos e das experiências sociais, permitindo novos olhares/descobertas/confrontos entre estudantes e populações e, em caso afirmativo, em que áreas (Oliveira, 2004).

Defende-se que o Serviço Cívico Estudantil não foi uma criação politicamente homogénea. Surgiu (e, em larga medida sobreviveu) no cruzamento de sectores de três áreas políticas fundamentais, ao tempo conhecidas como republicana-socialista, comunista e católica-progressista, áreas estas aliás cujos membros nem sempre tinham posições homogéneas. As personalidades e forças relevantes para a formação da opinião pública e os responsáveis pela concretização do Serviço Cívico Estudantil socorreram-se dos reportórios possíveis. Alguns destes remetiam para o universo pessoal dos envolvidos (indo, por exemplo, das experiências dos cursos militares de Vendas Novas e de acção psicológico-militar na Guiné de Spínola, à de trabalho numa cadeia de montagem industrial na França dos anos 60 ou à da apicultura em Itália); outros reportórios tinham como referências maiores as Campanhas de Alfabetização e Educação Sanitária efectuadas pelos estudantes no Verão de 1974 e as acções estudantis de apoio às vítimas das cheias em 1967; lembre-se ainda o prestígio, entre alguns sectores, da campanha de alfabetização cubana de 1961. Contudo a invocação das referências individuais e colectivas foi desencadeada por um problema de impossível solução: a incapacidade estrutural de o ensino superior absorver todos os candidatos à sua frequência no regresso às aulas do Outono de 1974, candidatos estes cujo número era estimado no dobro do ano anterior.

Exercendo-se em escolas, hospitais e centros de saúde, aldeias e bairros pobres, ou noutros espaços identificados como carenciados ou problemáticos, as acções do Serviço Cívico Estudantil permitiram aos estudantes contactar populações e instituições de alguma forma novas, sobretudo no âmbito social e cultural, possibilitando novos confrontos, descobertas e olhares.

Os confrontos culturais exprimiram-se na área da política, dos comportamentos e das identidades de género, da religião, da alimentação, da habitação e da higiene. Porém, enquanto no campo da política, das identidades e comportamentos de género, e até certo ponto da religião, houve uma mudança na forma de equacionar os problemas, já nas últimas áreas referidas (alimentação, habitação e higiene) as descobertas foram sobretudo no sentido da apreensão pelos estudantes do alcance das carências populares.

Sentidos como problemas das populações foram ainda a situação de saúde, de educação, o alcoolismo, a violência, a falta de electrificação, as dificuldades no acesso à água, a ausência de saneamento básico, a distância e o isolamento, a falta de informação, a escassez de espaços de sociabilidade, as deficiências de organização popular, o atraso económico (devido ao atraso da agricultura e à configuração dos mercados). Os novos olhares, descobertas e confrontos culturais possibilitados pelo Serviço Cívico Estudantil ocorreram numa conjuntura de mudanças políticas, mas também mudanças sociais rápidas (embora com ritmos diferentes), profundas (e aliás posteriormente aprofundadas), desiguais, sobrepostas e entrecruzadas, sendo o nível de partida, nos anos 60, muito baixo e atrasado face aos países desenvolvidos — como vem mostrando a generalidade dos trabalhos coordenados por António Barreto, Boaventura de Sousa Santos, ou José Manuel Leite Viegas e António Firmino da Costa.

Em experiências internacionais com algum tipo de semelhanças com o Serviço Cívico Estudantil, constatou-se a importância da nova socialização, quer dos sujeitos da acção (estudantes frequentemente provenientes de meios urbanos), quer dos seus destinatários, que teria possibilitado a criação de identidades revolucionárias.

Sustenta-se que, para a abordagem da problemática da identidade revolucionária no Portugal de então se revela pertinente utilizar o conceito de espoir, usando uma expressão de André Malraux (1937).Aquando da explosão de movimentos sociais que caracterizou este período, terá havido, na vivência dos seus participantes, uma esperança, que lhes parecia alcançável, de ultrapassar hierarquias sociais anteriores e de construir uma outra sociedade mais igualitária e solidária, esperança esta que aproximou pessoas diferentes, ainda que em tempos de duração bem diversa e, por vezes, entrecortados pelas mais duras constatações. Dito de outro modo, terão acontecido espaços de fraternização, com uma dimensão de esperança colectiva, que informaram e foram geradores de múltiplas acções. O espoir contribuiria, assim, para explicar o arrebatamento dos indivíduos, das famílias e dos grupos sociais, assim como a amplitude e a profundidade dos movimentos sociais, salientados por Boaventura de Sousa Santos (1990), ou a dimensão da mobilização e o radicalismo das reivindicações, mencionados por Philippe Schmitter (1999), ocorridos num contexto percepcionado pelos actores sociais como uma “nova janela de oportunidades”, de acordo com Duran Muñoz (1997; 2000; 2001) e Palacios Cerezales (2003).

Práticas de história oral: O tipo de entrevistas foi semidirectivo. Os entrevistados são de três tipos: três altos funcionários, que foram entrevistados em profundidade; 25 estudantes, que também o foram; e 45 depoimentos pontuais, citados ou não.

A transcrição é muito próxima da oralidade e as citações são referidas com metragem.

A utilização de letras para identificar os decisores (com uma excepção, desejada pelo próprio) e de pseudónimos para estudantes constituiu a via da resolução do problema da confidencialidade dos informantes que foi mantida.

Contribuição da história oral para a tese: Para a análise do itinerário do Serviço Cívico Estudantil (gestação, decurso e extinção), foi importante a recolha de memória oral dos decisores e funcionários que testemunharam sobre as suas vivências no interior desta nova experiência, com as suas complexidades e contradições, objecto de inúmeras pressões, assim como de empenhos e iniciativas individuais cujas marcas, no itinerário de uma inovação, a memória oral é particularmente apta para fazer emergir. Assim, apareceram questões ao tempo não enunciadas nos textos escritos. Como, por exemplo, a heterogeneidade no campo comunista, que é indiciada pela “pedrada na cabeça” sentida pelo director-geral do Ensino Superior, comunista, quando a União dos Estudantes Comunistas lhe apresentou a proposta de criação do Serviço Cívico Estudantil, em substituição do primeiro ano das universidades, precisamente na altura em que estava a tentar viabilizar esse mesmo primeiro ano. Também estavam ausentes dos textos da época as referências norteadoras já citadas, dos responsáveis pela organização do Serviço Cívico, como a apicultura em Itália, a prática de trabalho industrial em França, as experiências na Guiné de Spínola e nos cursos militares de Vendas Novas, e mesmo as memórias de viagens com o avô através das serranias nuas, passíveis de reflorestação, de Trás-os-Montes com as suas povoações de difícil acessibilidade, a necessitar de pontes e estradas, de alfabetização e em cujas festas populares os estudantes poderiam participar.

O suscitar da memória oral contribuiu indiscutivelmente para a emergência das configurações dos confrontos culturais entre os estudantes e as populações de acolhimento, bem como dos modos de desempenho do Serviço Cívico Estudantil.

O espoir perpassou entre os responsáveis pela organização do Serviço Cívico Estudantil bem como em inúmeros desempenhos de estudantes. Entre muitos exemplos possíveis, refira-se a fala de Clara, estudante colocada na campanha contra a cólera no centro histórico do Porto.

Espoir na organização popular, nas comissões de moradores em geral (que detectavam os casos de cólera) e, em especial, na comissão de moradores da Rua da Banharia e na sua capacidade de estruturar a vida de outra forma, foi aquilo que permitiu a Clara explicar o contraste entre essa rua e as outras ruas do mesmo bairro do centro histórico do Porto:

É um Verão. A zona da Sé, […] habitualmente designada por Sé embora aquilo abranja várias freguesias, […] é uma zona muito degradada, é a urbe antiga, são ruelinhas assim, onde o carro não chega, há escadarias […], as escadinhas é que levam às várias ruelas. Estamos numa fase de consolidação das Comissões de Moradores. E é uma zona muito suja, muito degradada. E eu recordo-me que há uma rua típica dessa zona, que é a Rua da Banharia, […] entrava-se noutro país quando se chegava lá, tinha uma Comissão de Moradores extremamente activa, e era um mimo de limpeza e de asseio. [Testemunho de Clara, Lisboa, 30/11/1993, cassete 1, lado A: 600-624, citado em Oliveira 2004: 286]

Considerando Clara que as coisas depois voltaram para trás, aquando da entrevista, nos anos 90, afirmou:

Uma das coisas que me chocou foi ter voltado à Rua da Banharia que está um nojo outra vez, toda aquela movimentação, aquele esboço […] foi-se esbatendo, foi-se esboroando. [Testemunho de Clara, Lisboa, 30/11/1993, cassete 1, lado B: 471-478, citado em Oliveira 2004: 286]

Mais à frente, Clara revelou:

É complicado, ainda hoje é um bocado complicado. Por exemplo, eu não consigo passar por aquela zona […] sem me apetecer às vezes tocar a uma campainha ou outra de algumas das casas para ver se aquilo está na mesma, se mudou se não mudou, nem sei se lá moram as mesmas pessoas, se não moram… Eu diria que não há vez nenhuma que desça a Rua Mouzinho, a Mouzinho mais do que as outras, a Mouzinho porque eu acho que é uma rua que engana, acho que ninguém diz o que aquilo é por dentro. Não conheço as casas todas, é evidente, mas quem passa lá não tem a noção do que [está] lá dentro, que é uma coisa… […] cada andar é capaz de ter 30 a 40 pessoas, com a degradação que depois isso dá ao edifício. É […] uma rua que engana, foi uma rua que me chocou por causa de um miúdo que ficou lá dependurado. Eu acho que deve ter sido uma coisa… eu não vi a situação, vi depois quando aquilo já estava tudo ruído, vi o buraco… É uma coisa que me assusta, ainda hoje imaginar que uma criança dos seus 6/7 anos esteve ali dependurada não sei quanto tempo à espera que os bombeiros o conseguissem tirar e o drama que deve ter sido o gajo imaginar que ia cair a qualquer momento porque a canalização não ia aguentar o peso dele e olhar para baixo e aguentar-se. E pensar naqueles buracos nas escadas… Estas duas imagens são duas imagens que eu acho que sempre que falo a alguém, não é propriamente do Serviço Cívico, mas [sempre] que falo a alguém… Eu se falo a alguém, por exemplo, pessoas […] que vão ao Porto, actualmente é quase obrigatória a ida à Ribeira, passa-se ali […]. Se eu vou com alguém [a] quem ainda não expliquei, explico que aquela [rua] engana. Foram os dois casos que eu me lembro mais. Lembro-me de uma velha que não conseguia sair de casa, e não tinha a ver com o facto […] de estar na cama, tinha a ver […] com os dois degraus, mas os dois degraus era o essencial… tinha a ver [com] os degraus… ela morava num andar lá em cima de tudo e os degraus eram todos carcomidos e havia sítios em que não tinha corrimão e ela era trôpega. Andar… andava, mas era trôpega. Uma coisa tão horrível, alguém não vir à rua porque pode cair pelas escadas abaixo ou [porque] as escadas podem rebentar a qualquer altura, que eu não consigo passar ali sem mexer comigo. [Testemunho de Clara, Lisboa, 30/11/1993, cassete 2, lado A: 3-32, citado em Oliveira, 2004: 287]

Para várias conclusões desta investigação foram relevantes as memórias orais da conjuntura revolucionária portuguesa, entre outras coisas porque propiciaram a matização, a complexificação, a atenção ao vivido, o cruzar do individual com o colectivo.

Em Estudantes e Povo na Revolução, os testemunhos orais são nucleares e surgem cruzados com outros elementos de suporte das conclusões da investigação

De Dalila Cabrita Mateus

Argumento: Serão abordadas três obras consagradas à questão colonial. Na primeira das suas obras, A Luta pela Independência. A Formação das Elites Fundadoras da FRELIMO, MPLA e PAIGC, defende Dalila Cabrita Mateus que a formação destas elites, marcadas por convicções socialistas, ainda que mais ou menos consistentes, contribuiu para o percurso de luta e para a opção por uma via económico-social socialista de tipo marxista-leninista em Angola e Moçambique. Porém, para esta escolha concorreram ainda mais decisivamente os apoios externos, tornando o modelo muito dependente do exterior, apoios estes nos campos militar, diplomático e político, com impacto no itinerário de vida, atitudes e comportamentos dos dirigentes independentistas (Mateus, 1999).

Na sua tese de doutoramento, Dalila Cabrita Mateus continuou a dedicar-se à história colonial, centrando-se no papel da PIDE/DGS na guerra colonial, que considera essencial (Mateus, 2004; 2006).

O aparelho da PIDE/DGS caracterizava-se por possuir menos de 1400 efectivos, dos quais cerca de 1000 polícias que constituíam o seu corpo nuclear, sendo que mais de metade dos envolvidos tinham uma instrução reduzida (4.ª classe). Porém, em Angola, Guiné e Moçambique, revelou-se de uma grande eficácia na luta contra os independentistas africanos. Actuando nos campos da repressão directa, em acções abrangentes ou específicas e sobretudo agindo no plano da prevenção, através do sistema de informações políticas e militares, com uma vasta rede de relações externas e internas, a PIDE/DGS colaborou intimamente com as Forças Armadas, o que explica a sua eficácia.

Esta tese de doutoramento originou, em termos de edição, dois livros: A PIDE/DGS na Guerra Colonial (1961-1974) e Memórias do Colonialismo e da Guerra, composto pelos testemunhos constantes dos anexos da tese.

Práticas de história oral: Também esta autora caracteriza as suas entrevistas como “semidirectivas”. Como informantes, temos, na obra A Luta pela Independência, sete testemunhos orais e dois escritos, e em A PIDE/DGS na Guerra Colonial, 43 entrevistados.

Dalila Cabrita Mateus usou entrevistas que foram “transcritas e confirmadas ou mesmo escritas pelos próprios” entrevistados, no primeiro caso, e, no segundo, “transcritas e corrigidas”, sendo as afirmações confirmadas por outros registos. Para além da correcção propriamente dita das entrevistas, a própria perspectiva de haver correcção implicou que a transcrição final tivesse uma maior intervenção.

Quanto à questão da confidencialidade, os testemunhos são assumidos nas várias obras. No caso da A PIDE/DGS na Guerra Colonial, são identificados quer os dirigentes independentistas quer o salazarista, o ex-PIDE/DGS e participante no massacre de Wiryiamu. Para se perceber a opção efectuada, é necessário ter em conta a natureza da investigação que recai sobre história das elites, sobretudo no primeiro texto. Assim, utilizar pseudónimos para muitos informantes seria difícil ou eventualmente impossível e inviabilizaria em larga medida o seu uso para a reconstituição histórica. Estas características dos depoimentos concorreram também provavelmente para a decisão de que fossem confirmados e corrigidos pelos próprios, o que possibilitou a sua citação.

Contribuição da história oral para a tese: Dalila Mateus afirma, na obra sobre as elites fundadoras do MPLA, da Frelimo e do PAIGC, que os testemunhos orais são de grande riqueza informativa, mas coloca-lhes muitas reservas, advindas do “possível efeito de paixões” ao falar de realidades temporalmente próximas. Apesar de alguma relutância, há citações sobretudo em informações pontuais (por exemplo, sobre percursos e encontros), identificações e por vezes reconstituição de climas. Aliás, também são citados depoimentos por outros recolhidos.

Na obra seguinte, A PIDE/DGS na Guerra Colonial, a autora continua a realçar os limites do testemunho oral, por ser uma “reconstrução da memória” e não “um simples reflexo do real como qualquer arquivo”.

Porém, quando equaciona explicitamente o papel da história oral na introdução, Dalila Cabrita Mateus manifesta maior abertura, salientando a sua importância no capítulo sobre a repressão. Efectivamente, nesta obra, a relevância da história oral é maior, sobretudo neste capítulo, mas também noutro sobre as representações, em que são mais abundantes as citações e estão frequentemente em discurso directo. São exemplos os testemunhos sobre as práticas da tortura ou o quotidiano alimentar das prisões, ou ainda as histórias singulares e quase anedóticas, tópicos de que a história oral é particularmente apta a dar voz.

Concretize-se com uma citação respeitante à alimentação na cadeia de Machava:

[…] farinha podre com água salgada que, de vez em quando, lavava ossos […]. E com isto é que comíamos a farinha. Farinha “ardida”, como diziam os técnicos de saúde. Era farinha podre. E comíamos, também, uma mistura de insectos com feijão. [Testemunho de Ângelo Chichava citado em Mateus 2004: 140]

Ou ainda sobre assistência médica prestada a um preso, na mesma cadeia, pelo enfermeiro Manhiça e por um médico, que acabou por ter como alcunha o 116:

— Ó Manhiça, pergunta lá o que tem.
O doente dizia:
— Dói-me o ouvido.
— Dá-lhe lá o 116.
Entrava outro doente:
— O que é que tens?
— Ai, senhor doutor, dói-me a barriga.
— Ó Manhiça, dá-lhe o 116.
O 116 eram comprimidos para todas dores e doenças.
[Testemunho de Muheti Mbazima citado em Mateus 2004: 141]

Ao longo do seu percurso de investigação, Dalila Cabrita Mateus passou de uma história oral mais supletiva para uma história mais encorpada, como já se vê nestes dois exemplos.

 

Conclusões

Antes do mais, saliente-se que a produção de conhecimento a partir de informações orais recolhidas em contextos de menor ou maior informalidade, de simples conversas a entrevistas gravadas, está presente mesmo naqueles estudiosos que não as citam ou quase não o fazem. Obviamente que os investigadores não se podiam desfazer de testemunhos que tivessem obtido. Porém, ao não os invocar ou fazendo-o pouco, nomeadamente no corpo do texto, dispensam a sua discussão e mesmo a consciencialização da importância do testemunho oral como meio de aproximação ao objecto de estudo. Ora esta postura não contribui para aquilo que Michael Pollak (1987) chama a “vigilância epistemológica”.

Os anos 90 constituem um marco na emergência da história oral em Portugal.

Todavia, anteriormente, já circulavam no país teses de autores como, por exemplo, Nancy Bermeo, Charles Downs ou Sánchez Cervelló, defendidas em contextos académicos estrangeiros, sobre a conjuntura revolucionária portuguesa, nomeadamente sobre as movimentações sociais e a transição política, teses estas que utilizavam e citavam fontes orais (Bermeo, 1986; Downs, 1989; Sánchez Cervelló, 1993). O seu contributo para a legitimação do testemunho oral deve ser realçado nessa década de 1980 em que, em Portugal, na historiografia, o Estado Novo apenas se começava a afirmar como objecto de estudo e o 25 de Abril ainda estava omisso. Houve “história oral sobre Portugal” antes de haver “história oral em Portugal”. Tal como a produção sobre a conjuntura revolucionária portuguesa, a história oral veio de fora e foi cultivada por quem aí estava institucionalmente enquadrado embora trabalhando sobre o terreno português.

Nessa década, marcada pelo parco uso deste tipo de documentos em teses com dimensão histórica, a inovação veio de outras áreas disciplinares. Alguns sociólogos materializam o aparecimento do oral em teses sobre objectos passíveis de também serem estudados pela história. São, por exemplo, os casos das teses de António Barreto sobre a Reforma Agrária no Alentejo, apresentada em Genève em 1984, e de Afonso de Barros sobre este mesmo processo, analisado à escala duma freguesia, defendida já em Portugal em 1986 (Barreto, 1987; Barros, 1986). Saliente-se também, em 1988, o pioneirismo de João Freire na sua tese de doutoramento sobre um contexto empírico cronologicamente bem mais distante, a saber, o anarquismo e o operariado em Portugal nos primeiros 40 anos do século XX, contexto cronológico em que se situam outros objectos estudados por historiadores que, porém, ao contrário deste autor, não citaram fontes orais (Freire, 1992).

Para este surgimento da história oral nos anos 90, contribuiu a publicação, em 1990, da investigação sobre a resistência antifascista em Portugal após a Segunda Guerra Mundial, de Dawn Linda Raby, bem como, em 1993, a edição portuguesa da tese de Josep Sánchez Cervelló sobre os efeitos da revolução portuguesa na transição espanhola (Raby, 1990; Sánchez Cervelló, 1993).

No contexto académico português, assinale-se o carácter precursor de João Madeira, na sua tese sobre o Partido Comunista e os intelectuais dos anos 30 a inícios de 60, defendida em 1995: este autor utiliza muito mais testemunhos orais do que promete na Introdução do seu texto, aliás em concordância com o papel atribuído aos espólios pessoais e aos depoimentos escritos que considera indispensável valorizar, dadas as necessárias limitações da documentação dos arquivos das instituições da repressão (Madeira, 1996). Pioneiro foi também, em 1997, sem dúvida, João Carlos Urbano Pires, numa tese em história sobre a memória da Guerra Civil de Espanha no Baixo Alentejo raiano, com larga utilização e análise das entrevistas, e que, como o título indicia, encara a memória como objecto central de estudo (Pires, 1997).

A utilização substantiva por bastantes mais investigadores ocorre a partir desta segunda metade dos anos 90 e acelera-se com a viragem do século. Exprimem-no teses como, por exemplo, as de Rafael Duran Muñoz em 1997, Paula Godinho em 1998, Dalila Cabrita Mateus em 1998 e 2004, Jaime Pinho em 1999, Luísa Tiago de Oliveira e Vanda Gorjão em 2000, José António Bandeirinha em 2002, Paula Borges Santos em 2003, Inácia Rezola e Antónia Pires de Almeida em 2004, Susana Martins e Inês Fonseca em 2005, Sónia Vespeira de Almeida em 2008, Joana Tornada em 2008 (Duran Muñoz, 1997; Godinho, 2001; Mateus, 1999; 2004; 2006; Pinho, 2002; Oliveira, 2004; Gorjão, 2002; Bandeirinha, 2007; Santos, 2005; Rezola, 2006; Almeida, 2006; Martins, 2005; Fonseca, 2007; Almeida, 2009; Tornada, 2009). Mesmo assim, em história, a tese de doutoramento de Luísa Tiago de Oliveira, em 2000, denota um comportamento defensivo, como é visível pela citação com metragem, atribuindo às falas citadas uma localização muito precisa, o que é característico e usual no trabalho com documentos escritos. Larga utilização do testemunho oral ocorre também em teses defendidas no mestrado em Estudos sobre as Mulheres da Universidade Aberta, como, por exemplo, a de Lúcia Serralheiro, em 2002, sobre a delegação do Porto da Associação Feminina Portuguesa para a Paz (1942-1952) e, em 2003, a de Antónia Balsinha sobre a resistência das mulheres de Alhandra também nos anos 40, mais uma vez escritas por mulheres que não estão ligadas ao ensino superior e cuja área de partida não é a história (Serralheiro, 2002; Balsinha, 2005). As informações obtidas em entrevistas constituem também uma parte da fundamentação em obras de indiscutível impacto público, que saíram a partir de 1999, como são os volumes da biografia de Álvaro Cunhal da autoria de José Pacheco Pereira (1999; 2001; 2005).

Em várias ciências sociais, sendo o testemunho oral valorizado, a sua utilização nem sempre é justificada ou sequer reclamada: a história oral é praticada e o investigador não sente necessidade de a legitimar como metodologia. No caso da antropologia, a oralidade surge com maior frequência nas investigações que usam a chamada perspectiva emic, em que a palavra do antropólogo não substitui o discurso directo das populações, cujas citações são usadas quer no corpo do texto quer no aparelho crítico. Diversamente, os historiadores, em geral trabalhando a partir dos documentos escritos e sendo esta a face mais visível do aparelho crítico dos seus estudos, quando querem recorrer substancialmente ao testemunho oral, sentem-se obrigados a reivindicar a história oral.

Justificam-se algumas palavras sobre os praticantes da história oral.

Centrando-se na França dos anos 70, mostrou Michael Pollak que os pioneiros da história oral foram frequentemente investigadores marginalizados, entre os quais bastantes mulheres e jovens, com trajectórias atípicas, vindos de outras áreas que não a história. Afirmaram-se numa conjuntura caracterizada pela crise de saídas profissionais em ciências humanas e pelo declínio dos grandes paradigmas teóricos, aos quais é respondido com uma valorização das aproximações qualitativas, dos métodos e modos de interpretação vindos de outras ciências sociais, a atenção ao detalhe, o gosto pelas nuances subtis, a empiria (Pollak, 1987: 11-12). Estes investigadores são enquadrados, nomeadamente na universidade, na década de 1980, legitimando-se pela história oral e legitimando-a. É aliás o processo da institucionalização, acompanhada pela internacionalização, que caracteriza a história oral em muitos países europeus nessa década.

E em Portugal?

Comparativamente com outras áreas da história, parece haver uma clara presença de mulheres, de investigadores mais novos e de fora de academia, sendo que aqueles que são docentes do ensino superior não estão no topo da hierarquia académica. Frequentemente, os investigadores que valorizam o testemunho oral situam-se entre a história, a sociologia, as ciências políticas, a antropologia e mesmo a arquitectura, verificando-se, assim, também em Portugal, que estes espaços de fronteira, ora concorrentes ora promíscuos, se revelam propícios à inovação. O processo de emergência da história oral, mais tardio em Portugal do que em bastantes outros países, antecedido pela conjuntura revolucionária do 25 de Abril, concorre para que a questão da institucionalização, dos paradigmas e da crise de saídas profissionais se coloque de outra forma.

Os percursos de quem recorre à história oral são vários.

Que história oral se faz?

Uma história oral ornamental?

Uma história oral supletiva e pontual, de apoio às fontes escritas usadas como material preferencial do historiador (como na primeira obra referida de Dalila Mateus)?

Ou uma história oral como metodologia essencial mas uma entre várias (tal como aparece em Paula Godinho e em Luísa Tiago de Oliveira)?

Ou uma história oral analítica que permite o recensear de elementos constitutivos da memória e em que a própria discussão dos processos da construção da memória se torna um problema central no texto dos investigadores (como em Urbano Pires e, em parte, em Paula Godinho)?

Certamente que problemas ou perspectivas de enfoque diferentes exigem respostas diferentes na história oral num tempo em que, também em Portugal, se estão a ensaiar e a trilhar os seus caminhos.

Apesar dos passos dados, continua a justificar-se a luta pela utilização assumida dos testemunhos orais no trabalho historiográfico, o combate pela história oral enquanto metodologia fértil, embora ressalvando-se obviamente que não representa uma panaceia universal.

O desafio fundamental consiste sobretudo em conseguir desencadear testemunhos orais ricos e efectuar uma crítica rigorosa e pertinente das fontes orais.

Aquilo que alguns consideram os limites dos testemunhos orais devem, sim, ser perspectivados como especificidades a merecer uma utilização adequada, como as de qualquer outro tipo de fontes. Aliás algumas destas características são partilhadas com muita da documentação de natureza pessoal, cujo uso é sobejamente defendido na investigação em ciências sociais.

Na crítica das memórias enquanto fonte, exige-se a atenção às suas características próprias. Em primeiro lugar, deve atender-se à contemporaneidade da sua produção com a investigação e não com a factualidade estudada. Depois, é preciso equacionar sempre os efeitos da interacção entrevistador-entrevistado. Em seguida, urge ultrapassar aquilo que tem sido chamado o “handicap do a posteriori”, o conhecimento daquilo que sucedeu em seguida, que contribui para a reconstrução do passado em função dum sentido que dá legibilidade à realidade recordada, bem como àquilo que posteriormente aconteceu. Esta expressão, hoje consagrada, impôs-se a partir do texto matricial de Becker (1987; ver também Descamps, 2001; Ritchie, 2003).

Suscitadas, sujeitas à crítica do testemunho e cruzadas com outro tipo de fontes, as memórias representam um contributo essencial e, muitas vezes, insubstituível para a análise dos problemas históricos, permitindo investigar novas questões, formular novas hipóteses e chegar a novos resultados. Com a utilização da história oral, é uma outra história que é possível.

 

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[1] Nestas obras, não há naturalmente coincidência entre o ano de defesa da tese e o de edição. Nas referências bibliográficas, utilizarei obviamente o ano de edição das teses quando tal se verificou; porém, sempre que necessário, mencionarei o ano da sua defesa.

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