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Sociologia, Problemas e Práticas

versão impressa ISSN 0873-6529

Sociologia, Problemas e Práticas  no.74 Oeiras jan. 2014

https://doi.org/10.7458/SPP2014743205 

O Sistema Político Português, Séculos XIX-XXI. Continuidades e Ruturas [André Freire (org.), 2012, Coimbra, Almedina]

 

José Pedro Teixeira Fernandes*

* Professor-coordenador do ISCET-Instituto Superior de Ciências Empresariais e do Turismo. Rua de Cedofeita n.º 285, 4050-180 Porto. E-mail: jfernandes@iscet.pt

 

O Sistema Político Português, Séculos XIX-XXI. Continuidades e Ruturas, é uma obra coletiva, com organização de André Freire, assinando este ainda um capítulo introdutório e os capítulos finais da mesma. O autor/organizador é professor do Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL), investigador do CIES-IUL e um dos mais importantes nomes da atual Ciência Política portuguesa, com vasta obra já publicada. O livro agora editado pela Almedina foi inserido no âmbito da coleção de manuais universitários da editora, sendo baseado nas comunicações efetuadas num ciclo de conferências sobre esta mesma temática. O ciclo decorreu na Biblioteca Museu República e Resistência, em Lisboa, entre outubro de 2008 e fevereiro de 2009, tendo similar título. O objetivo geral da publicação foi traçado pelo autor/organizador como sendo o de fornecer “uma visão geral sobre as continuidades e ruturas do sistema político português ao longo de quatro regimes políticos” (p. 5). Trata-se de um texto de perfil académico-científico, tendo o seu público natural nos cursos de Ciência Política, Sociologia, Direito, Relações Internacionais e outras formações afins na área das Ciências Sociais e Humanidades. Pela sua dimensão de síntese e tipo de abordagem aos assuntos tratados, é também uma obra relevante para diversos públicos fora da academia, como jornalistas e todos aqueles que se interessam pelo sistema político português, seja por motivos de curiosidade intelectual ou por razões políticas práticas.

Os textos foram organizados em quatro partes que correspondem às divisões “naturais” do tema. Abrangem os diferentes períodos da história constitucional portuguesa, numa sequência cronológica, desde o início do século XIX até à atualidade no século XXI. A primeira parte aborda o período da Monarquia Constitucional (1834-1910), a segunda versa a I República (1910-1926), a terceira incide sobre o Estado Novo (1926-1974) e a quarta e última parte refere-se ao período pós-1974, sob título Democracia/II República. A obra tem a participação de vários especialistas no sistema político português e nos diferentes períodos da nossa história constitucional. Inclui textos de Paulo Jorge Fernandes (“O Sistema Político na Monarquia Constitucional, 1834-1910”), de Pedro Tavares de Almeida (”Reformas eleitorais e dinâmica política no Portugal liberal, 1852-1910”), de Fernando Farelo Lopes (“Concorrência partidária e processo político-institucional na I República”), de António de Araújo (“Instituições e poder político na I República”), de Goffredo Adinolfi (“O sistema político do Estado Novo”), de António Costa Pinto (“O Estado Novo e o fascismo europeu”), de André Freire e Manuel Meirinho (“Sistema eleitoral, de partidos e de governo: o caso português em perspetiva comparativa”), e, por último, de André Freire (“A representação das minorias na democracia portuguesa seguido de continuidades e ruturas nos regimes políticos do oitocento e novecento portugueses”).

Conforme faz notar o autor/organizador, a principal novidade do livro no panorama editorial português consiste em reunir, num único texto, “investigações dispersas e atualizadas sobre a natureza e as caraterísticas do sistema político português ao longo de quatro regimes da era contemporânea, ou seja, após as Revoluções Americana e Francesa” (p. 11). Existem, naturalmente, outras obras de referência para o estudo desta temática, sobretudo na perspetiva de aprofundamentos específicos. É esse o caso de Pensamento e Ação Política. Portugal Século XX (1890-1976) da autoria de Fernando Rosas, do livro coordenado por António Costa Pinto e editado em língua inglesa sob o título Contemporary Portugal e do trabalho de Adelino Maltez, Tradição e Revolução. Uma Biografia do Portugal Político do Século XIX ao Século XXI. Todavia, nenhuma dessas obras “que procuram funcionar como síntese compreensiva do Portugal contemporâneo aborda e compara de forma sistemática e igualmente abrangente a natureza, as caraterísticas e o funcionamento dos sistemas políticos modernos em Portugal” (idem). Esta não é uma vantagem despicienda, sobretudo para aqueles cujo objetivo principal é adquirir uma visão de conjunto do tema. Isto ocorre, frequentemente, por razões de tempo, de investimento em bibliografia, ou outras limitações, sendo-se levado a privilegiar um texto com capacidade de transmitir o fundamental, através de uma escrita rigorosa e clara. As conclusões do livro (pp. 291-297) são um bom exemplo desse espírito de síntese e capacidade de transmitir ao leitor, com rigor, em relativamente poucas páginas, um conjunto de ideias-chave sobre as continuidades e ruturas existentes. Outro dos méritos do livro é o estudo dos quatro sistemas políticos portugueses, em frequente ligação com as tendências internacionais do mundo que cultural e politicamente nos é mais próximo. Para o leitor mais interessado na atualidade, são particularmente ricos em informação comparativa os textos finais de André Freire e de André Freire em coautoria com Manuel Meirinho. Neste último, por exemplo, encontra-se bastante informação comparativa das várias soluções da atual Constituição de 1976 com outros países do mundo de perfil democrático, nomeadamente quanto aos poderes do chefe de estado, aos tipos de sistema eleitoral, aos níveis de proporcionalidade da legislação eleitoral, aos tipos de governo existentes (coligação, monopartidário, etc.).

É quase inevitável, quando lemos uma obra deste género, não interagirmos com o presente. Quando pensamos nas atuais dificuldades da sociedade portuguesa, no desencanto com os partidos políticos e na desagradável sensação de falta de resposta das instituições aos problemas do cidadão, tudo isto associado a um sentimento de grande incerteza económica e instabilidade político-social, uma interrogação mentalmente ocorre. Será que estamos perante uma anomalia histórica ou este desencanto com o presente configura um padrão enraizado no passado? Como mostram os sucessivos textos, a história do sistema político português na era contemporânea é, numa parte significativa, uma história de instabilidade política. Apesar de tudo, essa perceção talvez possa dar ao leitor de hoje algum conforto intelectual. Quando comparados os problemas do presente com os do passado, as debilidades do atual sistema político, e mesmo a grave crise económico-financeira, até saem relativizadas. Na era política contemporânea não faltaram períodos de luta política intensa e por vezes mesmo violenta. O estado português esteve, por mais do que uma vez, perigosamente à beira do default ou bancarrota. Na tumultuosa fase final da Monarquia Constitucional, a bancarrota parcial foi declarada em 1891. Na (ainda mais) turbulenta e violenta I República, de há cem anos atrás, o descalabro das contas públicas foi quase uma constante. Na altura não existia sequer um lender-of-last resort, como o FMI, ao qual os estados soberanos, ainda que a contragosto e sob condições duras, pudessem recorrer.

Uma visão diacrónica ajuda também a compreender como, para o bem ou para o mal, consoante as perspetivas, a influência europeia na vida política portuguesa — sobretudo pela via daquilo que no século das Luzes se chamavam os “estrangeirados” —, tem sido uma constante. Claro que depois da adesão às Comunidades Europeias/União Europeia, em 1986, esta influência adquiriu uma outra intensidade. Agora tem um cunho institucional ligado às políticas de integração e aos mecanismos de partilha de soberania da União. Os sucessivos sistemas políticos do país são reflexos de tendências europeias, por vezes também mundiais, mas sempre matizadas com componentes locais importantes. É possível constatar isso na instituição da Monarquia Constitucional (um reflexo das ideias das Revoluções Americana e Francesa e das revoluções liberais); na proclamação da I República (projeção das ideias de secularização/laicização do estado e do reforço do papel do parlamento, entre outras); na emergência do Estado Novo (em sintonia com o refluxo das democracias, a partir da década de 20 do século XX e da ascensão do fascismo italiano e dos diversos autoritarismos); e na Democracia/II República (apesar do atraso, por padrões europeus, na introdução da democracia em Portugal, aqui houve, paradoxalmente, um certo pioneirismo no sentido em que a revolução de 25 de abril de 1974 inaugurou uma “terceira vaga de democratização” a nível mundial).

Diferentes leitores poderão também encontrar nesta obra diversos motivos de interesse. Para aqueles mais curiosos sobre o passado histórico-constitucional e político, são particularmente interessantes as partes sobre a Monarquia Constitucional, a I República e o Estado Novo, neste caso ainda com memórias vividas de muitos portugueses, sobretudo da geração acima dos cinquenta anos. Sobre a Monarquia Constitucional, e apesar de todos os problemas e insuficiências democráticas, Paulo Jorge Fernandes (p. 25), lembra que “à entrada do último quartel de novecentos” podia-se já encontrar uma “tão longa quanto esquecida tradição em termos de parlamentarismo, de liberdade de imprensa, de respeito pela separação de poderes, assim como pelos direitos e garantias individuais”. Teve igualmente origem nesse período a “criação de um sistema partidário plural e de um regime eletivo concorrencial, embora não democrático”. Em relação à I República, e embora esteja longe de ser um exclusivo desta, não deixa de nos espantar, ainda hoje, a sua enorme instabilidade e turbulência. O texto de António de Araújo sobre as instituições e o poder político durante a sua vigência gera-nos a sensação de uma quase hobbesiana luta pelo poder, de todos contra todos, no Portugal de há cem anos atrás. Interessante é também a discussão sobre saber se a instabilidade crónica desse período pode ser imputada a deficientes soluções constitucionais, nomeadamente a um excessivo peso do Parlamento face ao Presidente da República. Sobre esta questão, ainda hoje muito discutida e polémica, António de Araújo (p. 114) sustenta que “ao contrário do que tantas vezes se supõe, o problema político da Primeira República portuguesa não esteve nas regras constitucionais estabelecidas em 1911 mas antes no seu sistemático incumprimento”. Quanto ao Estado Novo, a sua maior proximidade temporal — e oposição radical à democracia associada à obsessão por uma ordem de cariz securitário —, gera, inevitavelmente, maior espaço para leituras que não são desprendidas de paixões. Se o seu caráter autoritário e ditatorial está acima de qualquer disputa, a sua caraterização como fascista, segundo o modelo de Mussolini em Itália, é objeto de uma maior controvérsia como reflete a discussão sobre o assunto feita pelos textos de Goffredo Adinolfi e de António Costa Pinto. Por comparação com o caso italiano e alemão, Goffredo Adinolfi (p. 145) afirma que “este utilizou, com muito pragmatismo, as levas do enquadramento totalitário e da retórica de caráter fascista”. Quanto ao seu caráter totalitário, foi sobretudo o de “um totalitarismo fraco, ou, se quisermos, incompleto”, embora existisse também, “na elite política salazarista, a vontade de conquistar todo o espaço político uma vez que o estado orgânico português pedia a exclusividade de pensamento político”.

Numa altura em que o debate sobre a atual Constituição, saída da revolução de 1974, em particular sobre a adequação dos seus arranjos institucionais às necessidades de estabilidade política e bem-estar económico-social voltou a emergir, esta publicação é particularmente oportuna. Isto não significa que os textos editados estejam isentos de polémicas, ou que as interpretações efetuadas não sejam, por vezes, questionáveis, como, aliás, é normal numa obra sobre esta temática. Todavia, permite ao leitor, seja por razões académicas, de curiosidade intelectual, ou de ativismo político, um conhecimento abrangente e com rigor do sistema político português, colocando esse conhecimento em perspetiva face ao passado e face a possíveis soluções alternativas.

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