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Sociologia, Problemas e Práticas

versão impressa ISSN 0873-6529

Sociologia, Problemas e Práticas  no.83 Lisboa jan. 2017

https://doi.org/10.7458/SPP2017837629 

ARTIGO ORIGINAL

Paisagem, tecnologia e desenvolvimento local: a central solar da Amareleja

Landscape, technology and local development: the solar plant of Amareleja

Paysage, technologie et développement local: la centrale solaire d’Amareleja

Paisaje, tecnología y desenvolvimiento local: la central solar de Amareleja

 

Luís Junqueira*, Ana Delicado** e Mónica Truninger***

* Doutorando, ICS-UL, Av. Professor Aníbal de Bettencourt, 9, 1600-189 Lisboa, Portugal. E-mail: luis.junqueira@ics.ulisboa.pt

** Investigadora auxiliar, ICS-UL, Av. Professor Aníbal de Bettencourt, 9, 1600-189, Lisboa, Portugal. E-mail: ana.delicado@ics.ulisboa.pt

*** Investigadora principal, ICS-UL, Av. Professor Aníbal de Bettencourt, 9, 1600-189, Lisboa, Portugal. E-mail: monica.truninger@ics.ulisboa.pt

 

RESUMO

No estudo dos impactos locais das energias renováveis tem sido dada pouca atenção a tecnologias com menor peso no sistema energético. Este trabalho procura colmatar esta lacuna, através de um estudo de caso sobre a central fotovoltaica da Amareleja, assente em entrevistas com stakeholders e residentes e análise de documentação. A central tem a particularidade de ser parte de uma iniciativa municipal de desenvolvimento regional assente nas energias renováveis. Contudo, apesar de um processo de implantação pouco controverso e de um impacto importante a nível identitário, não atingiu muitas das expectativas dos habitantes a nível económico.

Palavras-chave: energias renováveis, energia solar, controvérsias sociotécnicas, perceções locais.

 

ABSTRACT

The study of the local impacts of renewable energy has given little attention to less implemented technologies. This work seeks to bridge this gap through a case study on the photovoltaic plant in Amareleja, based on interviews with stakeholders and residents and documentation analysis. The plant has the distinction of being part of a local initiative for regional development based on renewable energy. However, although the deployment process faced few controversy and there was some impact on the local identity, the project did not reach the expectation of the population in terms of economic development.

Keywords: renewable energies, solar energy, sociotechnical controversies, local perceptions.

 

RÉSUMÉ

L’étude des impacts locaux des énergies renouvelables n’accorde guère d’attention aux technologies qui ont moins de poids sur le système énergétique. Ce travail vise à colmater cette lacune, au travers d’une étude de cas sur la centrale photovoltaïque d’Amareleja, à partir d’entretiens avec les différentes parties prenantes et les habitants et d’une analyse de documents. La centrale a la particularité de s’inscrire dans une initiative municipale de développement régional axée sur les énergies renouvelables. Cependant, malgré un processus d’implantation peu controversé et un impact important au plan identitaire, cette centrale n’a pas vraiment répondu aux attentes des habitants sur le plan économique.

Mots-clés: nergies renouvelables, énergie solaire, controverses sociotechniques, perceptions locales.

 

RESUMEN

En el estudio de los impactos locales  de las energías renovables se ha dado poca atención  a tecnologías con menor peso en el sistema energético. Este trabajo procura rellenar esta laguna, a través de un estudio de caso sobre  la central fotovoltaica de Amareleja, basado en entrevistas con stakeholders y residentes y el análisis de documentación. La central tiene la particularidad de ser parte de una iniciativa municipal de desenvolvimiento regional basado en las energías renovables. Sin embargo, a pesar de ser un proceso de implantación poco controvertido y de tener un impacto importante en la identidad, no alcanzó muchas  de las expectativas de los habitantes a nivel económico.

Palabras-clave: energías renovables, energía solar, controversias sociotécnicas, percepciones locales.

 

Introdução

As energias renováveis têm ganho nos últimos anos um espaço crescente no discurso político, no desenvolvimento económico e na paisagem de Portugal e de outros países europeus. Mas, se os parques eólicos têm sido alvo de bastante atenção (e inclusivamente controvérsia) pública e científica, já as centrais solares são um objeto pouco estudado, ainda que possam vir a dar um contributo muito relevante para a transição energética e um futuro de baixo carbono. Se a geração de energia renovável é eminentemente uma questão técnica e económica, não deixa de ter uma dimensão social que é crucial para o desenvolvimento de projetos neste domínio. Os impactos, positivos e negativos, das centrais solares nas comunidades onde são instaladas não podem deixar de ter influência sobre a expansão da energia solar.

Este artigo pretende pois debater as perceções locais em torno destas infraestruturas energéticas com base no estudo de caso da central solar fotovoltaica da Amareleja, no concelho de Moura, a qual entrou em funcionamento em 2008. Para além de uma análise das dinâmicas sociais que deram origem à construção desta central, serão examinados os principais vetores de discussão em torno do projeto: os discursos sobre paisagem e identidade local e impacto socioeconómico.

A investigação que sustenta este artigo foi realizada no âmbito do projeto “Consensos e Controvérsias Sociotécnicas sobre Energias Renováveis” (PTDC/CS-ECS/118877/2010) e do projeto de doutoramento “Investigação em Energias Renováveis. Redes, Práticas e Instituições” (SFRH/BD/90561/2012), ambos financiados pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia.

 

Enquadramento

As energias renováveis têm vindo a ganhar um espaço importante na literatura de estudos sociais de ciência. A energia solar é um tema menos frequente na literatura, não só porque os países que iniciaram mais cedo a expansão de energias renováveis têm poucas condições de exposição solar, mas também porque a macrogeração com base nesta tecnologia é relativamente recente.

Contudo, tem sido dada alguma atenção às políticas públicas de energia e ao seu impacto no crescimento da tecnologia em alguns países europeus, principalmente em Espanha e na Alemanha, que introduziram políticas de incentivo que as tornaram líderes na Europa em termos de potência instalada (De la Hoz et al., 2013; Diner, 2011; Reiche e Bechberger, 2004).

Na literatura sobre controvérsias de instalação, a predominância da energia eólica tem vindo a condicionar, pelo menos em parte, os termos da discussão. As turbinas eólicas são estruturas de elevado impacto visual, geralmente instaladas em zonas montanhosas e pouco habitadas, mas que chocam com valores ambientais e paisagísticos locais (Breukers e Wolsink, 2007; Delicado et al., 2014; Toke, Breukers e Wolsink, 2008; van der Horst e Toke, 2010). No que respeita à energia solar, por um lado, o impacto visual é menor e, por outro, a implantação de parques solares de grande dimensão é um fenómeno relativamente recente. A menor implantação da energia solar parece jogar a favor da sua aceitação, uma vez que alguns estudos têm revelado um efeito de saturação da implantação de energia eólica na perceção das populações (Kaldellis, 2005). Isto reflete-se, na literatura sobre implantação de energia solar, numa escassez relativa de controvérsias e num elevado nível de aceitação face a outras formas de energia renovável (Carlisle et al., 2014; Kaldellis et al., 2013; Ribeiro et al., 2014). As referências à emergência de controvérsias tendem também a desenvolver-se em torno de prioridades diferentes. Enquanto em relação aos parques eólicos as controvérsias mais visíveis têm sido de natureza ambiental ou paisagística, no caso da energia solar estas continuam a fazer parte do espectro da discussão (Mautz, 2007; Miller, Iles e Jones, 2013; Rodríguez, Martín e Roselló, 2010), mas tendem a perder a predominância nas perceções para outras dimensões, como o impacto socioeconómico local e a distribuição de rendimentos provenientes da produção de energia (Velasco, 2010; Zoellner, Schweizer-Ries e Wemheuer, 2008; Slattery et al., 2012).

Os equipamentos de energias renováveis são muitas vezes colocados em zonas rurais, com poucas perspetivas de desenvolvimento. Muitos estudos identificam as perceções sobre benefícios locais como um fator importante na aceitação local das tecnologias de energias renováveis. Estes benefícios podem assumir a forma de ganhos comunitários atribuídos pelos promotores, ou mesmo de participação direta de elementos da população nos rendimentos dos equipamentos, por exemplo nos casos em que estes são instalados por iniciativa de proprietários rurais, de cooperativas, ou pelo poder local (Carlisle et al., 2014; Slattery, Lantz e Johnson, 2011). No entanto, a forma como esses benefícios são repartidos é também um fator importante. As instalações de energias renováveis de grande dimensão tendem a ser encaradas como algo que afeta a comunidade inteira e a inexistência de benefícios ou uma distribuição limitada dos mesmos (por exemplo, para os proprietários dos terrenos) é identificada em alguns estudos como estando associada a perceções de injustiça social ou ambiental (Gross, 2007; Krauss, 2010; Musall e Kuik, 2011). Também importante neste contexto é a discussão em torno das perceções de justiça processual dos projetos de implantação. A falta de transparência nos processos, a falta de comunicação por parte dos promotores e a ausência de canais para a participação das comunidades locais contribui para reforçar sentimentos de desconfiança institucional nos processos de instalação e para menores níveis de aceitação local (Anderson, 2013; Krogh, 2011; Wolsink, 2007).

É especialmente pertinente analisar a implementação das energias renováveis no nosso país devido às transformações socioeconómicas por que têm passado as zonas rurais em Portugal, sobretudo desde finais dos anos 60. Segundo os autores clássicos da sociologia rural portuguesa (Cavaco, 1993; Oliveira Baptista, 1993) estes espaços já deixaram de estar confinados à agricultura, verificando-se um processo de esvaziamento de pessoas e de atividades agrícolas e um envelhecimento demográfico. Estes fenómenos, acelerados pelas políticas e reformas sucessivas da PAC e pela entrada do país na União Europeia em 1986, acentuaram a dissociação do rural da sua função tradicional produtiva, tornando-o num espaço multifuncional, isto é, que vai além da agricultura (Figueiredo, 2013).

 

Metodologia

Este artigo baseia-se num estudo de caso desenvolvido sobre a central solar da Amareleja. O trabalho de campo decorreu entre junho de 2013 e julho de 2014 e incluiu recolha documental (atas do executivo e da Assembleia Municipal, documentos do processo de licenciamento, imprensa local, protocolos de colaboração), entrevistas semiestruturadas, observação etnográfica e registo fotográfico. No total, foram realizadas 33 entrevistas a autarcas e outros representantes do poder local (n = 5), representantes de associações locais (n = 3), elementos das empresas promotoras (n = 3), o diretor de projetos da Lógica E.M., o diretor do jornal/rádio local e moradores (n = 21).[1] Tendo em conta estudos prévios que apontam para a importância do estatuto socioeconómico na formação das perceções sobre infraestruturas de energias renováveis (van der Horst e Toke, 2010), a maioria das entrevistas a residentes foram feitas através da abordagem em espaço público em dois locais diferentes (um central e outro periférico) em cada uma das duas localidades. Quatro (duas em cada localidade) das entrevistas foram feitas a proprietários de estabelecimentos locais. Todas as entrevistas foram integralmente transcritas e sujeitas a análise de conteúdo sistemática através do software MAXQDA. Foi ainda realizado um workshop em Moura, em junho de 2014, mas, apesar do esforço de divulgação (convites diretos aos stakeholders entrevistados, notícias na imprensa e na rádio local), teve uma participação da população local muito fraca. A passagem do tempo poderá ter contribuído para uma desmobilização da controvérsia em torno da central, acrescida pelo facto de o workshop ser sobretudo um espaço de partilha de opiniões sem consequências práticas. Além disso, deve acrescentar-se que Portugal tem níveis baixos de participação cívica (Carvalho, 2014) e que a mobilização está geralmente associada à defesa de interesses particulares (Barca e Delicado, no prelo; Matias, 2004).

 

A central solar da Amareleja

O setor das energias renováveis em Portugal conheceu um crescimento assinalável nas últimas décadas, sendo um dos poucos indicadores que posicionam o país bem acima da média europeia. Segundo dados do Eurostat, Portugal é o sexto país da UE28 que detém maior percentagem de energias renováveis no consumo final bruto de energia, com 26% em 2013.[2] Porém, este valor fica aquém da meta assumida pelo país, de assegurar que, em 2020, 31% do consumo final bruto de energia seja proveniente de fontes renováveis. Quando a análise se centra na fração de energia elétrica que é produzida através de fontes renováveis, Portugal sobe na ordenação europeia, assumindo a terceira posição entre os países que maior percentagem de fontes renováveis apresentam (49% em 2013).[3] Aliás, em menos de uma década Portugal passou de 28% de penetração de fontes renováveis na eletricidade para quase 50%.

O desenvolvimento das energias renováveis em Portugal nas últimas décadas deve-se em larga medida à energia eólica. A energia solar fotovoltaica triplicou o seu peso nesta distribuição, mas ainda é responsável por apenas 3% da energia renovável no país. O crescimento bem mais gradual da energia solar é fruto de uma política menos incisiva, com tarifas feed-in mais vantajosas que a energia eólica, mas com limites baixos para a ligação à rede estabelecidos pelo governo (50 MW em 2001, 150 MW em 2005), e com um ritmo mais lento de acréscimo de rentabilidade económica. Face às duas centenas e meia de parques eólicos atualmente existentes no país, há apenas 44 centrais solares fotovoltaicas com potência instalada superior a 250 kW[4] e, ao contrário de Espanha, não existem centrais de energia solar concentrada. Apenas uma destas centrais tem uma dimensão assinalável: a Central Solar Fotovoltaica da Amareleja, no concelho de Moura.

Moura é um concelho do Alentejo interior, localizado na fronteira com a Espanha e na margem direita do Guadiana. O concelho (com 15.167 habitantes) partilha muitas das características associadas aos concelhos do Alentejo Interior (Carmo, 2010; 2013): perda de população, um índice de envelhecimento acima da média nacional e uma taxa de desemprego elevada.

 A economia do concelho assenta sobretudo no setor terciário. Os setores tradicionais, nomeadamente, o primário e o secundário ligado ao setor agroalimentar (agricultura e indústria articulada à transformação de produtos agrícolas, dos quais se destacam o azeite e o vinho), apesar da sua importância (que era ainda muito maior nos anos 80), assumem um peso menor na estrutura económica do concelho. De facto, desde os anos 90 que o terceiro setor, nomeadamente, as atividades ligadas à restauração, comércio e turismo, tem dominado a atividade económica.

O concelho está dividido entre as duas freguesias da sede do município, predominantemente urbanas, e as restantes freguesias de características rurais.[5] Amareleja é a maior, mais populosa e urbanizada destas freguesias.[6] O povoamento é característico das zonas rurais do Alentejo, com grande parte da população concentrada na vila homónima e sede de freguesia, que é rodeada por uma extensa área de montado alentejano e terrenos de cultivo, e pela zona arborizada do Baldio das Ferrarias. As tendências de declínio demográfico no concelho reforçam-se na freguesia da Amareleja.

A central fotovoltaica ocupa 250 hectares a sul da vila e é constituída por 2520 seguidores solares, com um total de 262.080 módulos fotovoltaicos instalados e com uma potência de 45,8 MW, tendo entrado em funcionamento em 2008. O espaço ocupado corresponde a parte do Baldio das Ferrarias, o terreno do aeródromo Cifka Duarte, desativado desde os anos 90 e propriedade da Junta de Freguesia, e alguns terrenos comprados pela empresa promotora a proprietários locais.

 

 

 

A central fica a cerca de 300 m do extremo da localidade e tem um impacto visual significativo na paisagem. Este impacto é modelado pelas diferenças de visibilidade a partir de diferentes pontos da localidade. A elevação do terreno e o edificado “escondem” a vista da central do centro da vila, onde está localizada a maioria dos estabelecimentos comerciais, o edifício da Junta de Freguesia e as associações locais, mas por outro lado acentuam a visibilidade da central a partir da zona sul, sobretudo residencial.

O processo que deu origem à central fotovoltaica da Amareleja é bastante particular no contexto nacional. Enquanto a construção dos grandes parques eólicos teve origem numa atribuição de licenças feita a nível nacional, as quais ficaram na posse de grandes empresas do setor energético, a central da Amareleja foi impulsionada (pelo menos na sua fase inicial) por uma dinâmica local centrada na ação de uma pequena empresa (Amper Solar) por iniciativa da Câmara Municipal de Moura e do seu presidente — José Maria Pós-de-Mina (em funções até setembro de 2013).

A iniciativa do projeto parte de Mário Baptista Coelho e Aníbal Lamy, através da criação da empresa Renatura Networks, em 2000. No ano seguinte, a Renatura entra numa parceria com a Câmara Municipal de Moura através da assinatura de um acordo de consórcio com vista ao desenvolvimento de projetos na área da energia solar. A parceria é consolidada em 2001 com a apresentação do Plano Integrado de Desenvolvimento Sustentável do Concelho de Moura e da Região (PIDSCMR), um ambicioso projeto de desenvolvimento regional com base na energia solar, que seria impulsionado pela instalação da central. O PIDSCMR conta já com a participação de um terceiro parceiro, a BP Solar, na altura um dos principais produtores de células fotovoltaicas,[7] motivada pelo objetivo de vir a explorar a fábrica de módulos fotovoltaicos prevista no projeto, cuja viabilidade inicial ficaria assegurada pela encomenda de painéis para a central. Em 2002, é criada a Amper, Atividades Múltiplas de Energias Renováveis, uma empresa com capital da Câmara Municipal de Moura e da Renatura, onde se irá concentrar a atividade da Câmara Municipal em torno do projeto.

 

 

 

 Nos anos seguintes, a Câmara de Moura e a Amper Solar vão estabelecer contactos institucionais com um leque bastante diverso de entidades com o objetivo de reforçar a viabilidade do projeto. Por um lado, com as empresas do setor energético e a banca, no sentido de encontrar investidores para o financiamento da construção da central e, por outro, junto do Ministério da Economia e das agências governamentais na área da energia, na negociação das condições para a licença de ligação à rede. O processo acaba por se arrastar por mais três anos, dificultado por sucessivas mudanças na pasta ministerial responsável pelo processo. As dificuldades em negociar a licença repercutem-se também na incapacidade de atrair investimento. Embora a Amper encontre algumas demonstrações de interesse, dada a incerteza quanto ao valor das tarifas atribuídas à produção estas não se traduzem em compromissos efetivos com o projeto. O processo de licenciamento é finalmente concluído em 2005 mas em condições menos favoráveis do que as previstas inicialmente, o que, juntamente com as fragilidades da indústria europeia do setor face à entrada intensiva da China no mercado da produção de painéis fotovoltaicos, contribuiu para o abandono do projeto por parte da BP.[8] Assim, a Câmara Municipal de Moura e a Renatura são forçadas a procurar outro parceiro empresarial. A dificuldade de assegurar investimento nacional obrigaria à venda da Amper Solar a uma multinacional de origem espanhola — a Acciona. Esta empresa detém vários parques eólicos em Portugal, contabiliza já cerca de 68 MW de fotovoltaicos instalados em Espanha e é proprietária da maior central termossolar do mundo nos EUA. A construção da central é iniciada em outubro de 2007, entrando em atividade no final do ano seguinte. Desde o planeamento da central até à sua materialização no terreno decorreram cerca de sete anos. Este acabou por ser um longo caminho de implementação com alguns percalços e alguma resistência por parte de atores locais.

 

Paisagem, património e identidade

O impacto na paisagem é um dos temas que tem marcado a discussão sobre a implantação de parques de energias renováveis. Múltiplos estudos (Toke, Breukers e Wolsink, 2008; van der Horst e Vermeylen, 2011; Warren e McFadyen, 2010) têm apontado a emergência de resistência às alterações provocadas por este tipo de estruturas, sobretudo a implantação extensiva de parques de energia eólica.

Também neste caso são tecidas críticas ao enquadramento paisagístico da central. Alguns habitantes da Amareleja destacam o impacto visual negativo e a descaracterização da paisagem, que toma a forma nas alcunhas de tom jocoso que são usadas para denominar a central, como o “olival de lata” ou “olival de ferro”. Alguns habitantes em Moura e na Amareleja descrevem também a central como um elemento “esteticamente muito feio” ou como “uma coisa grande” que “estraga um bocado a paisagem”. O atual presidente da Junta de Freguesia, uma das vozes mais críticas do projeto, mostra a sua preferência pelos elementos da paisagem rural do Alentejo.

Com isso digo tudo, não vale a pena dizer mais, prefiro os chaparros a painéis, naturalmente, até as estevas são mais bonitas que os painéis. [Entrevista, presidente da Junta de Freguesia].

A perceção do presidente da Junta de Freguesia é contraposta pela dos promotores do projeto, que destacam a atenção dada à integração da construção nas várias dimensões da paisagem alentejana, como a construção do edifício de controlo com “fachadas a imitar um monte alentejano”, a preservação e replantação de espécies de flora local e o uso de um rebanho de ovelhas de uma espécie autóctone para controlo da vegetação, que contribuem para a central ter “o seu enquadramento” ou para estar “perfeitamente integrada”. Um interlocutor da Câmara Municipal de Moura destaca as características de “sublime tecnológico” (Afonso e Mendes, 2012) do projeto, como um elemento paisagístico que cria um “espetáculo quase cenográfico” e com “interesse do ponto de vista fotográfico”. Esta perceção é também partilhada por alguns elementos da população da Amareleja. Segundo um dos moradores da zona mais exposta ao impacto visual da central, a presença desta “não incomoda nada”. Um outro minimiza o impacto por este ser localizado e ter a visibilidade limitada e porque a central “não tem aquele impacto que poderia ter se fosse construída, por exemplo, à volta da população”. Outros destacam a subjetividade do julgamento estético sobre a mesma, argumentando que “depende do ponto de vista”, que “certas pessoas não gostaram, os outros não se importam”, ou que “aqui no povo deu diferentes opiniões para diferentes pessoas”.

Apesar da divisão da comunidade sobre o impacto visual da central fotovoltaica, as perceções negativas não se mostram suficientemente fortes para terem gerado mobilização contra a implementação da central. As razões por detrás da aceitação da implementação de estruturas de energias renováveis têm sido bastamente estudadas, embora sobretudo nos países do Norte da Europa. Alguns estudos (Toke, Breukers e Wolsink, 2008; Velasco 2010) apontam a ausência de valorização da paisagem tradicional por parte das populações rurais espanholas como explicação para a ausência do tipo de resistência que o mesmo género de infraestruturas enfrentou em outros contextos nacionais, particularmente o britânico. Os depoimentos de alguns dos habitantes da Amareleja apontam para atitudes semelhantes, com alguns habitantes a referirem-se ao valor paisagístico dos terrenos ocupados pela central como algo que “estava abandonado e não interessava para nada” ou “umas oliveiras velhas”.

Por outro lado, as perceções locais revelam uma imagem mais complexa da relação entre a população e a paisagem. Alguns estudos têm apontado um efeito de normalização da presença das energias renováveis na paisagem e uma mudança das perceções locais com o contacto com alguns benefícios associados a estas infraestruturas (Eltham, Harrison e Allen, 2008; Kontogianni et al., 2014; Pasqualetti, 2001). De facto, o discurso dos stakeholders e da população local mostra uma perceção de impacto positivo da central na paisagem, no sentido de ser um elemento de atração de visitantes.

Vamos lá ver, Alentejo rural há por este Alentejo acima e abaixo. Alentejo com um bocadinho de tecnologia ou uma coisa diferente porque até em termos, vamos lá ver, em termos proporcionar boas fotografias, é um bom sítio para quem, para os turistas, as pessoas tiram uma boa fotografia com aquela paisagem. [Entrevista, Associação Local 1]

Este efeito de desenvolvimento e promoção de um turismo tecnológico remete para um sentido de valorização da paisagem enquanto recurso que não rejeita a introdução destes artefactos tecnológicos de elevado impacto paisagístico, mas tenta tirar partido deles como recurso local (Frantál e Kunc, 2011; Pasqualetti, 2004). O facto de a central se ter tornado um elemento de atração de excursões, de dignatários estrangeiros e de atenção dos media terá contribuído para a sua valorização por parte da população local. Alguns entrevistados destacam que a central “colocou o nome da terra no mundo” ou “tornou a Amareleja mais conhecida”. A visibilidade dada pela construção da central é igualmente o mote para modas sobre a central, de autoria local, que foram incluídas reportório dos grupos corais locais.

Amareleja és falada Em calor não tens igual Bela terra abençoada Amareleja és falada Pois já nasceu a central[9]

Esta perceção é partilhada até por alguns dos críticos do impacto paisagístico da central. A expressão “Os outros vendem o queijo, os outros vendem o presunto, nós vendemos o Sol” é utilizada pelo atual presidente da Junta de Freguesia para justificar o uso do Sol e da central fotovoltaica como elementos de promoção turística. A central solar dinamiza assim a constituição de uma marca regional, em que a Amareleja é promovida como “Terra do Sol”. A imagem do Sol é usada no logotipo da localidade, nos materiais de promoção disponibilizados no posto de turismo local, e dá o mote para um percurso turístico pedestre — a Rota do Sol — que percorre os principais pontos de interesse da localidade, incluindo uma paragem com vista para a central, devidamente complementada com um painel informativo (Delicado et al., 2015). A aceitação do impacto paisagístico da central e a importância atribuída ao seu aproveitamento para promoção turística devem ser enquadradas no contexto de um concelho do interior em que as oportunidades de desenvolvimento são escassas e a criação de emprego é muito valorizada. De facto, muitos dos stakeholders e habitantes referem o impacto visual como “um custo que tem de se pagar” ou contrapõem-no à necessidade de “aproveitarmos os recursos que temos”.

A discussão sobre o impacto da central solar cria alguma mobilização entre a população da Amareleja com a extensão da área ocupada para o terreno do aeródromo Cifka Duarte. Ao adquirir o projeto à Camara Municipal de Moura através da compra da Amper Solar, o novo promotor fez uma alteração da tecnologia utilizada na central, a troca de painéis fixos por seguidores solares, o que implicou uma extensão da área ocupada pelo projeto.

Do ponto de vista dos promotores do projeto o aeródromo “estava desativado há muito tempo” e não trazia valor económico para a vila ou para o concelho, mas para uma parte da população da Amareleja o aeródromo tinha relevância a nível simbólico e era um elemento importante da identidade local. O aeródromo é descrito como “um património da terra”, uma construção “do tempo dos meus pais, dos meus avós” ou “uma coisa antiga”. Estava também associado a práticas de lazer, como a sua utilização como local de organização de festas nos períodos em que esteve ativo.

A divergência sobre o aeródromo acabou por motivar uma discussão numa reunião da Assembleia Municipal, em que alguns amarelejenses acusam o executivo municipal de ter “acabado” com o aeródromo. Esta discussão não pode deixar de ser enquadrada na dinâmica política da localidade, em que os candidatos do Partido Comunista Português e do Partido Socialista têm alternado na presidência da Junta de Freguesia (reproduzindo aproximadamente a dinâmica a nível municipal). Os principais porta-vozes na crítica da ocupação do aeródromo são identificados com a oposição durante o mandato do PCP, que promoveu a implantação da central.

A questão do aeródromo remete também para uma discussão sobre a forma como o processo foi conduzido por parte dos promotores. A perceção de justiça processual é apontada como um elemento importante nas perceções locais sobre infraestruturas de energias renováveis. Processos abertos e participativos tendem a gerar confiança entre as populações e a reduzir a perceções negativas das instalações (Anderson, 2013; Wolsink, 2007; Zoellner, Schweizer-Ries e Wemheuer, 2008).

Portanto, houve na verdade, isto em resumo, houve na verdade, há uma discussão pública mas sempre escondendo que o terreno do aeródromo seria utilizado também para a central, isso foi escondido da população. [Entrevista, presidente da Junta de Freguesia]

eu nem quero dizer que não fosse, não acabassem com o campo, mas pelo menos consultassem o pessoal ou aqui o povo da Amareleja. [Entrevista, residente na Amareleja 3]

O processo de implementação prolongado permitiu à Câmara Municipal organizar sessões de esclarecimento e vários eventos de promoção do projeto, mas a mudança de tecnologia que motivou a ocupação do espaço do aeródromo só aconteceu após a venda ao novo promotor. A ausência de uma discussão sobre o aeródromo é encarada como uma quebra de confiança da Câmara Municipal na condução do processo.

 

Tecnologia e desenvolvimento local

Como já referido, a central foi concebida como parte de um projeto de desenvolvimento regional. De facto, introduzir benefícios locais visíveis é geralmente uma condição importante para a aceitação local de infraestruturas deste tipo (Rogers et al., 2008; Walker, et al., 2010). O projeto da central solar partilha algumas características com outros contextos em que a instalação de energias renováveis está associada a dinâmicas locais (Selman, 2010; Bulkeley e Kern, 2006), no sentido em que foi um projeto de iniciativa municipal com objetivos de modernização tecnológica, que tentou envolver a população e o tecido económico local. Acresce ainda que o projeto assenta na construção de uma central de grande dimensão explorada por uma empresa do setor energético, situação que tende a ser identificada na literatura com impacto socioeconómico limitado no longo prazo (del Río e Burguillo, 2009; Llera Sastresa et al., 2010). Para o presidente da Câmara Municipal, a central é uma oportunidade de diversificar e modernizar a atividade económica no concelho, através da introdução na região de um setor dinâmico a nível económico e tecnológico.

Procurando aproveitar as condições que havia do ponto de vista da tarifa, na sequência do programa E4 e da legislação complementar, e procurando garantir que além da central teria de haver outras contrapartidas, […] a construção de uma unidade de assemblagem de painéis fotovoltaicos, que fosse o início de um cluster ligado ao setor, juntamente com a central. E uma componente de um fundo que desse apoio do ponto de vista e intervenção social, do ponto de vista da investigação, e do ponto de vista do apoio à própria instalação de unidades de microgeração por parte dos cidadãos, da comunidade e das entidades locais. [Entrevista, presidente da Câmara Municipal de Moura]

A implementação dos objetivos definidos no PIDSCMR só arranca efetivamente com os fundos que ficam disponíveis com a venda da licença da central à Acciona em 2006. O primeiro destes projetos foi o da construção de uma fábrica de montagem de painéis solares (que no plano inicial, mais ambicioso, seria uma unidade de fabrico e não só de montagem). A fábrica é o projeto principal no que toca ao impacte direto sobre a criação de emprego, gerando cerca de 100 novos postos de trabalho em Moura.

O segundo projeto consistiu na criação de um programa de financiamento da instalação de painéis solares em edifícios particulares. Os painéis fotovoltaicos são instalados para vender a produção elétrica à rede e são financiados a 100% pela Câmara Municipal, que recupera o investimento através de uma quota sobre o rendimento dos painéis que dura até que a totalidade do investimento seja recuperado. Embora os fundos alocados pela Câmara para este apoio tenham sido esgotados, este dinamismo manteve-se devido ao interesse na microgeração promovido pelo programa que motivou a procura de outros apoios à instalação por parte dos residentes de Moura.

Por último, o terceiro projeto resultante da venda da central foi a criação da Lógica, na qual a Câmara investiu três milhões de euros. A Lógica é criada em 2008 enquanto empresa municipal com as funções de gerir o tecnopolo, fornecer serviços de certificação de equipamentos fotovoltaicos e desenvolver atividades de I&D na área da energia solar. A Lógica é uma empresa ligada às universidades portuguesas e que participa em projetos internacionais como o SKA (Square Kilometer Array), um telescópio internacional de grande dimensão para o qual a Lógica contribuiu com investigação sobre as tecnologias de produção fotovoltaica que irão alimentar o telescópio.

As várias dimensões do PIDSCMR tiveram alguns impactos na economia local, dos quais o mais relevante foram os postos de trabalho criados pela fábrica de painéis fotovoltaicos instalada em Moura. Contudo, a venda da central coincidiu com o início da crise financeira de 2007/2008 que, juntamente com a mudança para um governo menos favorável em 2011, veio dificultar a concretização dos aspetos mais ambiciosos do projeto, como o desenvolvimento do tecnopolo e a construção de novas centrais solares. O tecnopolo entrou eventualmente em funcionamento, mas com um impacto socioeconómico reduzido, devido à contração do setor e consequente ausência de empresas interessadas em instalar-se na região. Também a fábrica de montagem de painéis solares esteve inativa durante alguns meses.

No entanto, a dimensão tecnológica do projeto é bastante valorizada pelas elites locais em Moura, que partilham com a Câmara Municipal uma apreciação positiva dos projetos financiados com os fundos da venda da central. Neste sentido, a central solar é valorizada como “investimento em alta tecnologia” e a Lógica pelo “seu percurso muito interessante e importante a nível de energias renováveis” e pelo trabalho “de topo a nível de investigação”. Partilham também uma perceção positiva dos impactos indiretos do programa de microgeração na dinamização do setor das instalações elétricas, sobretudo pela criação de emprego qualificado.

O impacto destes projetos assenta sobretudo em dinâmicas que ficam restritas à cidade de Moura. A Lógica, a Fábrica Solar e as empresas de instalações elétricas que cresceram com o programa de microgeração financiado pela Câmara Municipal estão sediadas em Moura e dão emprego sobretudo aos seus habitantes. É também em Moura que se encontra o grosso da indústria ligada ao turismo da região, sobretudo a nível de hotelaria. Tudo isto contribui para que estas dimensões do projeto, que tiveram algum impacto efetivo a nível económico, principalmente na criação de emprego, raramente sejam enquadradas pelos habitantes da Amareleja como benefícios associados à construção da central, onde estas dimensões, sobretudo a criação de oportunidades de emprego qualificado no concelho, apenas tendem a ser valorizadas pelos residentes mais novos. Para a restante população da Amareleja são sobretudo importantes os impactos a nível da localidade. O elevado valor atribuído ao emprego gerado durante o período de construção da central e aos postos de trabalho criados na sua manutenção, é expectável no quadro das fragilidades socioeconómicas do concelho, que se acentuaram no atual contexto de crise.

Sei que trabalhou aí muita gente e que é o que é preciso é trabalho. [Entrevista, residente na Amareleja 4]

Eu acho que foi positivo. Andaram ali muita gente a trabalhar, nas obras, enquanto teve que fazer, e agora foram mais, sei lá, dez ou doze postos de trabalho. [Entrevista, residente na Amareleja 6]

A perceção de impacto socioeconómico positivo não é unânime. Identifica-se na população uma perceção de injustiça sobre a forma como são repartidos os benefícios associados à implantação da central, em particular no balanço entre o emprego criado a nível da freguesia e do concelho.

mas que cria postos de trabalho, não tantos como poderia ter criado porque depois houve a tal parte de criar a fábrica dos painéis noutro sítio que não a Amareleja. [Entrevista, associação local 1]

Pois, não é mudarem as coisas para Moura. Isto não tem pés nem cabeça. Começaram aqui e era aqui que continuava. [Entrevista, residente na Amareleja 8]

A forma como os rendimentos são distribuídos entre as duas instâncias do poder local é também objeto de contenção. Segundo a Câmara Municipal, a renda paga pelo aluguer dos terrenos do aeródromo representa um reforço significativo do orçamento da Junta de Freguesia. Mas na opinião do presidente da Junta de Freguesia, os rendimentos obtidos com o aluguer dos terrenos não asseguram uma justa distribuição de benefícios.

o grande dividendo foi para a Câmara de Moura. […] Eu entendo que a central fotovoltaica da Amareleja devia ter tido muito mais benefícios para a Amareleja, eu acho que foi extremamente mal negociada, especialmente para a Junta de Freguesia, acho que foi um investimento que se devia ser feito, que está feito e ainda bem que está feito, só que eu acho que foi extremamente mal negociado. [Entrevista, presidente da Junta de Freguesia]

A crítica à negociação de benefícios para a freguesia reflete-se também no discurso dos residentes da localidade, que mais uma vez remete para uma perceção negativa de justiça processual associada ao projeto. Na opinião destes residentes a Câmara Municipal não assegurou um justo pacote de contrapartidas que beneficiassem diretamente a população.

… essa negociação podia ter sido melhor porque, por exemplo, normalmente quando se instala uma fábrica ou qualquer outra coisa que seja numa terra em que se usufrui do espaço e da própria localidade, existem contrapartidas que aqui neste caso não foram negociadas. [Entrevista, residente na Amareleja 7]

Quem acabou por ganhar foi Moura. É que Moura fizeram lá as oficinas para fazer os painéis […]. Agora aqui, aquilo não mete, aqui não tem ninguém a trabalhar praticamente. Tem aí dois ou três que fazem aí a manutenção daquilo, mais nada. Em Moura é que têm as oficinas. [Entrevista, residente na Amareleja 2]

Os residentes entrevistados referem frequentemente a expectativa de benefícios no acesso à energia elétrica ou até de abastecimento direto da central, o que aliás foi identificado em estudos semelhantes (McLachlan, 2010). Também destacam outros exemplos de contrapartidas que poderiam ser negociadas como o apoio por parte do promotor a associações locais ou à Junta de Freguesia. O programa de microgeração incluído no PIDSCMR tinha justamente o objetivo proporcionar rendimentos adicionais à população, através da venda de eletricidade produzida por painéis fotovoltaicos instalados nos telhados das residências e financiados através de um empréstimo da Câmara Municipal. Mas, apesar do sucesso do programa na disseminação da microgeração fotovoltaica, as restrições orçamentais do programa limitaram o acesso a ele por parte da população.

 

Conclusão

Embora os argumentos em torno da preservação estética da paisagem natural ou rural tenham bastante peso na discussão em torno da instalação destas grandes infraestruturas de energias renováveis na produção académica, estes não parecem particularmente relevantes no caso da central fotovoltaica da Amareleja. Alguns elementos da população local expressam descontentamento com o impacto visual da central, mas o impacto paisagístico não parece ter sido em algum momento um fator de mobilização. Ele é até associado a algumas perceções positivas que enquadram a central como um recurso paisagístico que pode ser explorado enquanto fator de atração de um turismo tecnológico (Frantál e Kunc, 2011; Pasqualetti, 2004). O projeto da central contribuiu para criar uma ligação simbólica entre a localidade e o desenvolvimento tecnológico, que não só está presente no discurso dos habitantes e em expressões culturais como o cante, como também é usada pela Junta de Freguesia para efeitos de promoção turística.

O fator que acaba por mobilizar alguma contestação em torno da construção da central é a ocupação do aeródromo Cifka Duarte. Este aeródromo, desativado há vários anos, é visto pela autarquia como economicamente inviável, mas é enquadrado pela população local como um elemento de identificação da localidade e recordado como local de lazer. Acresce que a ocupação do terreno do aeródromo contribuiu para uma perceção de injustiça processual, em que a população se sentiu excluída da tomada de decisão. Neste sentido, a combinação de uma perceção de ameaça à identidade local com uma de injustiça processual tem paralelos com muitos outros contextos estudados (Breukers e Wolsink, 2007; Toke, Breukers e Wolsink, 2008; van der Horst e Evans, 2010). A diferença prende-se com o alvo dos laços afetivos locais, que neste caso se dirigem principalmente a um elemento do património edificado e não do património paisagístico.

Apesar do envolvimento da Câmara Municipal na promoção do projeto e da tentativa de extrair alguns benefícios em termos desenvolvimento local e da perceção positiva das elites do concelho em termos do seu caráter tecnológico, as atitudes da população da Amareleja não indiciam uma posição entusiástica face ao impacto socioeconómico do projeto. O tipo de atitude que Pasqualetti (2004) denomina PIMBY (Please in my backyard), uma transição para atitudes locais entusiastas das energias renováveis motivada pelos benefícios associados à sua instalação, pode estar a emergir em contextos onde as populações locais têm recursos que tornem possível a participação direta nos rendimentos da geração de energia (Breukers e Wolsink, 2007; Musall e Kuik, 2011). O discurso dos habitantes da Amareleja reflete antes um cenário em que os benefícios locais ficam limitados pela incapacidade de negociar com as grandes empresas do setor energético (del Río e Burguillo, 2009; van der Horst e Vermeylen, 2011). À exceção dos que foram ocupar os postos de trabalho criados e dos que conseguiram participar nos programas de apoio à microgeração, para a maioria dos habitantes a central está relativamente desligada das dinâmicas socioeconómicas da localidade e teve um impacto limitado na melhoria das suas condições de vida, sendo manifestas as perceções de injustiça com a distribuição de recursos no discurso local.

 

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Receção: 9 de novembro de 2015 Aprovação: 24 de maio de 2016

 

Notas

[1] As entrevistas com os representantes do poder local não incluem membros do principal partido da oposição, que se mostraram indisponíveis para participar neste estudo.

[2] Eurostat, 2015, Share of renewable energy in gross final energy consumption, Code: t2020_31.

[3] Eurostat, 2015, Share of renewable energy in electricity, Code: nrg_ind_335a.

[4] INEGI & APREN (2015), E2p Database of electric power plants based on renewable energy sources, em: http://e2p.inegi.up.pt/ (consultado em 09/03/2015).

[5] INE, Censos 2011 e TIPAU 2014 — Relatório Técnico.

[6] INE, TIPAU 2014 — Relatório Técnico.

[7] PV Status Report 2004 — Arnulf Jäger-Waldau, Comissão Europeia.

[8] A BP Solar acabaria por encerrar as suas atividades em 2011.

[9] Amareleja Plena de Sol: autoria de Carlos Poeiras, interpretação pelo Grupo Coral da Sociedade Recreativa Amarelejense, transcrito da versão em áudio do álbum Grupo Coral da Sociedade Recreativa Amarelejense (2007).

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